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ConJur – Artigo: O direito de retomada e a insinceridade nos contratos agrários – Por Por Flavia Trentini, Vitor G. T. de Batista e Gabriel Fernandes Khayat

19-11-2021

Inicialmente, ressalta-se que o direito de retomada do proprietário para explorar diretamente ou por intermédio de descendente o imóvel rural cedido em contrato agrário é previsto pelos artigos 95, V[1], e 96, II[2], do Estatuto da Terra. Além disso, conforme artigo 22, parágrafo 2º do Decreto 59.566/66, o exercício dessa retomada é condicionado ao envio de notificação extrajudicial no prazo de seis meses antes do vencimento do contrato[3].

Nesse sentido, a notificação extrajudicial deve ser enviada pelo proprietário por Cartório de Títulos e Documentos. Todavia, não basta o mero pedido de retomada, posto que esse deve ser intencionado. A intenção, por seu turno, deve ser dada pela exploração ou cultivo direto do próprio proprietário ou pela exploração ou cultivo direto de seu descendente.

Para esclarecer, na exploração direta “o beneficiário da exploração assume riscos do empreendimento, custeando despesas necessárias”, conforme o artigo 7º, do Decreto 59.566/66[4]. Desse modo, o “cultivo direto e pessoal”, trazido no artigo 8º[5] do mesmo texto normativo, é espécie da qual a exploração direta é gênero, uma vez que mais restrito. Salienta-se que, na exploração direta, é possível que o proprietário estabeleça contratos de trabalho para exploração do imóvel, pois, ainda assim, custearia e assumiria os riscos da atividade rural

A partir dessa perspectiva, tem-se que o pedido de retomada deve ser fundado em argumentos verdadeiros, sob pena de invalidação por simulação[6] e condenação do proprietário em indenização por danos materiais, conforme parágrafo 4º, do artigo 22, do Decreto 59.566/66[7]. Por ocasião ressalta-se que é a falta de argumentos verdadeiros no pedido de retomada que se dá o nome de “insinceridade”.

É importante destacar que a boa-fé e a sinceridade do pedido de retomada do proprietário comportam presunção relativa. Com isso, o ônus probatório da insinceridade cabe ao possuidor direto – arrendatário ou parceiro outorgado – que poderá se valer de qualquer meio de prova para demonstrá-la. No mais, a constatação da insinceridade só é cabível após a retomada do imóvel rural, uma vez que é com a sua devolução que será possível notar o desvio, ou não, da função informada no pedido.

Nesse âmbito temporal, a legislação não definiu o prazo para que se inicie a exploração direta, tampouco o período em que se deve manter tal exploração. Em razão disso, considera-se a aplicação analógica[8] do artigo 44, II, da Lei 8.245/1991, que considera insincera a retomada do imóvel pelo locatário para uso próprio quando não é feita em 180 dias após a entrega do imóvel e pelo prazo mínimo de um ano[9].

No entanto, para considerar a lógica própria dos contratos agrários, deve-se considerar o desenvolvimento, completo ou parcial, do ciclo biológico como critério de manutenção exploratória. Isso porque, conforme a Teoria da Agrariedade de Antonio Carrozza[10], é o desenvolvimento desse ciclo biológico o fator distintivo da empresa rural.

Desse modo, para não se configurar a insinceridade do pedido de retomado nos contratos agrários, a exploração direta deve ocorrer em até 180 dias pelo período mínimo necessário para o desenvolvimento de parte ou de todo o ciclo da atividade econômica, não necessariamente de 01 ano. Nesse sentido, Wellington Pacheco de Barros entende que a exploração direta pelo proprietário deve ocorrer até o período de safra imediatamente posterior[11].

Por fim, é preciso destacar que, para a retomada do imóvel rural, várias atividades rurais podem ser concebidas à luz do paradigma da multifuncionalidade. Nesse sentido, a exploração direta poderá englobar, além das clássicas definidas, as atividades que visem à conservação e à manutenção de ciclos biológicos. Portanto, as atividades rurais devem ser entendidas, em seu sentido amplo, incluindo a conservação dos valores ambientais sem a necessidade de ligação com atividades agrícolas propriamente ditas[12].

Notas:

[1]Art. 95, V – os direitos assegurados no inciso IV do caput deste artigo não prevalecerão se, no prazo de 6 (seis) meses antes do vencimento do contrato, o proprietário, por via de notificação extrajudicial, declarar sua intenção de retomar o imóvel para explorá-lo diretamente ou por intermédio de descendente seu.

[2]Art. 96, II – expirado o prazo, se o proprietário não quiser explorar diretamente a terra por conta própria, o parceiro em igualdade de condições com estranhos, terá preferência para firmar novo contrato de parceria

[3]Art 22, §2º – Os direitos assegurados neste artigo, não prevalecerão se, até o prazo 6 (seis meses antes do vencimento do contrato, o arrendador por via de notificação, declarar sua intenção de retomar o imóvel para explorá-lo diretamente, ou para cultivo direto e pessoal, na forma dos artigos 7º e 8º dêste Regulamento, ou através de descendente seu (art. 95, V, do Estatuto da Terra).

[4] Art 7º Para os efeitos dêste Regulamento entende-se por exploração direta, aquela em que o beneficiário da exploração assume riscos do empreendimento, custeando despesas necessárias. § 1º Denomina-se Cultivador Direto aquêle que exerce atividade de exploração na forma dêste artigo. § 2º Os arrendatários serão sempre admitidos como cultivadores diretos.

[5] Art 8º Para os fins do disposto no art. 13, inciso V, da Lei nº 4.947-66, entende-se por cultivo direto e pessoal, a exploração direta na qual o proprietário, ou arrendatário ou o parceiro, e seu conjunto familiar, residindo no imóvel e vivendo em mútua dependência, utilizam assalariados em número que não ultrapassa o número de membros ativos daquele conjunto. Parágrafo único: Denomina-se cultivador direto e pessoal aquêle que exerce atividade de exploração na forma dêste artigo.

[6] Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados. § 2º Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.

[7] Art. 22, § 4º A insinceridade do arrendador poderá ser provada por qualquer meio em direito permitido, importará na obrigação de responder pelas perdas e danos causados ao arrendatário.

[8] O artigo 92, §9º, do Estatuto da Terra e o artigo 88, do Decreto 59.566/66 preveem a aplicação do Código Civil para as omissões legais. À época, estava vigente o Código Civil de 1916, que continha disposições para as locações de imóveis, urbanos e rústicos, nos artigos 1.200 a 1.215. Desde 1991, a locação de imóveis urbanos passou a ser regulada pela Lei 8.245/1991, que é aplicável aos contratos agrários por analogia. Outro argumento a favor da analogia é a semelhança do arrendamento rural com a locação de imóvel rural, tanto que ambos os contratos envolvem a cessão do imóvel e a remuneração é estipulada em aluguel. A aplicação analógica é autorizada pelo artigo 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

[9] Art. 44. Constitui crime de ação pública, punível com detenção de três meses a um ano, que poderá ser substituída pela prestação de serviços à comunidade: I – recusar – se o locador ou sublocador, nas habitações coletivas multifamiliares, a fornecer recibo discriminado do aluguel e encargos; II – deixar o retomante, dentro de cento e oitenta dias após a entrega do imóvel, no caso do inciso III do art. 47, de usá – lo para o fim declarado ou, usando – o , não o fizer pelo prazo mínimo de um ano.

[10] CARROZZA, A. Lezioni sul diritto agrario. Elementi di teoria generale. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1988. p. 29.

[11] BARROS, Wellington Pacheco. Curso de Direito Agrário. 2a. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, v. 1

[12] TRENTINI, Flavia. Teoria geral do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012.

Autores:

Flavia Trentini é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e do programa de mestrado da mesma instituição, pós-doutora pela Scuola Superiore Sant’Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP, Pisa, Itália), com bolsa Fapesp, pós-doutora em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP.

Vitor G. T. de Batista é bolsista do Programa Unificado de Bolsas da Universidade de São Paulo (PUB-USP) pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) em Direito Agrário e bolsista PEEG da Universidade de São Paulo (USP) em Direito Agrário: Teoria Geral e Política Agrária.

Gabriel Fernandes Khayat é advogado e mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

Fonte: ConJur