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ConJur – Artigo: Lições da pandemia e as saídas para a crise da moradia e da cidade – Por Edésio Fernandes
Vivemos em um mundo em crise, crise essa que tem diversas dimensões — sanitária, energética, ambiental, econômica, fiscal, social, política, jurídica —, que são intrinsecamente articuladas, ainda que com ritmos distintos. Vivemos também em um mundo cheio de tensões geopolíticas — antigas, novas ou renovadas —, que em um número crescente de casos têm levado a conflitos e processos de separatismo, devolução, ocupação, guerra… Instituições político-jurídicas tradicionais ainda hegemônicas — democracia liberal representativa, Estado-Nação, independência dos Poderes, autodeterminação dos povos — estão cada vez mais em xeque.
Faltam autoridades e instituições globais efetivas para enfrentar diversos problemas que são intrinsecamente globais, como vimos durante a pandemia e estamos começando a perceber no processo de aceleramento das mudanças climáticas. Ao esvaziamento generalizado dos processos de mobilização social tradicionais — sindicatos, associações, movimentos sociais — tem correspondido o aumento generalizado das desigualdades socioeconômicas e da pobreza.
Como a pandemia também deixou claro, em que pesem suas muitas expressões, em última análise a crise global é a crise da cidade e da moradia: o “problema da moradia” é global. Em todas as suas dimensões, a crise se dá sobretudo na cidade, é da cidade, é da moradia, se dá na moradia. Nesse contexto, a precariedade habitacional — jurídica, econômica, material — é cada vez mais a regra, sendo que suas dimensões de raça, gênero, etnia e idade — crianças, jovens e idosos sendo mais diretamente afetados — ficaram ainda mais evidentes com a pandemia.
Esse enorme fenômeno histórico não pode ser ignorado. Dentre as principais lições da pandemia está a necessidade de maior compreensão sobre a centralidade da questão da moradia, bem como da urgência de se fazer a crítica do modelo dominante de urbanização excludente e segregador correspondente que tem produzido a precarização da moradia: em especial, a questão fundiária que está na base desse modelo ficou escancarada e não pode mais ser subestimada. A pandemia nos mostrou a relação entre terra, moradia e saúde, entre políticas fundiárias, políticas de moradia e políticas de saúde, e revelou com dureza como as pessoas vivem, trabalham e se deslocam nas cidades, bem como a importância dos espaços públicos, áreas livres e verdes para a saúde humana.
Também é fundamental que lições sejam urgentemente tiradas em face da previsão de novas pandemias no curto prazo, bem como para dar conta dos desafios contemporâneos decorrentes das mudanças climáticas em curso que têm provocado desastres cada vez mais extremos e mais regulares — inundações, alagamentos, deslizamentos, terremotos, ciclones, assim como secas, queimadas, poluição… —, inclusive em áreas urbanas densamente ocupadas.
Dentre outros efeitos de tais mudanças, o crescimento da insegurança alimentar e o aumento da fome têm colocado em questão a natureza do modelo produtivo e de distribuição de alimentos dominante. Tudo isso tem sido agravado pelo avanço dos conflitos fundiários que se expressam por toda parte em remoções, despejos e aumento da população em situação de rua, bem como em disputas em torno do acesso e controle de recursos naturais, especialmente da água. Além das formas tradicionais da imigração política e econômica, está crescendo globalmente de maneira assustadora também a imigração por razões ambientais — sendo que os “refugiados ambientais” têm aumentado a pressão pelo acesso à moradia nas cidades dos países para onde se deslocam.
Desde 2008 a população do mundo já é majoritariamente urbana e o processo de urbanização global tem crescido em ritmo impressionante especialmente na África, Ásia e Oriente Médio. Em contextos já urbanizados como a América Latina tem havido mudanças no ritmo da urbanização, com crescimento das cidades médias e pequenas, assim como com a metropolização crescente da economia — e da pobreza. O mesmo padrão histórico de segregação socioespacial e concentração de serviços e equipamentos tem levado à periferização crescente da população urbana agora na esfera global, e o acesso informal crescente ao solo urbano e à moradia tem aumentado a precariedade habitacional. Mais de um bilhão de pessoas já vivem atualmente em assentamentos informais precários.
Também nas cidades o contexto político-econômico mais amplo tem causado impactos, com o avanço do neoliberalismo, a redução da produção habitacional de interesse social pelo poder público e privatização de serviços e empresas públicos, bem como com a adoção de diversas estratégias questionáveis de envolvimento do setor privado na gestão pública que têm gerado deslocamentos recordes de recursos públicos — terras, construções, créditos construtivos, subsídios, isenções, anistias, etc — para o setor privado.
Mais do que nunca, cabe perguntar “políticas habitacionais para quem?” — já que o conjunto de créditos, subsídios, condições de financiamento e exigências variadas criado pelo poder público certamente não têm beneficiado os mais pobres, aqueles que efetivamente mais precisam das políticas públicas. As políticas públicas — econômicas, financeiras, urbanísticas e fundiárias — não chegam perto das possibilidades da maioria da população mais pobre, que tem de recorrer aos processos informais para acesso ao solo e à moradia nas cidades.
Estratégias de “affordable housing” através do setor privado não têm funcionado e, pelo contrário, têm gerado novos problemas — e em muitas cidades há sérios problemas de manutenção dos estoques habitacionais públicos de interesse social existentes. A globalização crescente do mercado imobiliário tem determinado novos papeis para as cidades na nova economia pós-industrial e de serviços financeiros, e novos e obscuros atores têm surgido nesse contexto — fundos de investimento, fundos de pensão, fundos abutres… A financeirização da terra, da moradia e da cidade tem levado à formação de conglomerados poderosos de proprietários e mesmo o aluguel tem se tornado proibitivo em muitas cidades, afetando especialmente os mais jovens.
A preocupação crescente com as implicações desse modelo perverso, insustentável, ineficiente, irracional e injusto de crescimento urbano tem provocado debates sobre como mudar o rumo do processo. Infelizmente, de modo geral efeitos têm sido tomados por causas e as novas políticas urbanas têm causado novos problemas. Nos mais diversos contextos, a resposta dominante a tantos desafios têm sido a liberalização e flexibilização das regras urbanísticas de forma incentivar mais construções, com críticas às políticas tradicionais de zoneamento e busca de uma “cidade compacta” que tem se dado em muitos casos pelo avanço da urbanização por áreas livres e cinturões verdes das cidades.
Contudo, as “novas” políticas habitacionais continuam dissociadas das políticas fundiárias e outras, especialmente políticas de transporte, e não resolvem a crise da moradia — pelo contrário, fomentam o crescimento da informalidade. A proposta recorrente de produção de unidades cada vez menores de lotes e construções tampouco resolve a questão, já que a maior densidade física não significa uma maior densidade demográfica: o aumento de unidades vazias é generalizado nas cidades. Esse processo tem sido agravado em diversas cidades pelas práticas crescentes de trabalho remoto geradas pela pandemia, com o esvaziamento de centros e escritórios tradicionais. Muitas mudanças têm sido permitidas pelos avanços tecnológicos — mas, para quem? Quem tem se beneficiado das novas possibilidades — e que tipos de cidades têm sido geradas?
Mesmo nos raros casos em que existe uma política pública de moradia com uma escala significativa — Chile, África do Sul, México, Brasil — as causas do problema habitacional não têm sido devidamente atacadas, especialmente porque a estrutura fundiária das cidades não tem sido enfrentada. De modo geral, novos conjuntos habitacionais são construídos apenas nas áreas periféricas desprovidas de serviços e infraestrutura e sem a devida integração socioespacial. Terras e construções vazias — privadas e públicas — não têm cumprido uma função social, inclusive aqueles em áreas centrais. Soluções jurídicas coletivas de posse e propriedade não são consideradas. A informalidade habitacional continua crescendo, já que é a única solução possível de acesso à terra e à moradia nas cidades para tanta gente — em que pesem os muitos problemas de várias ordens que decorrem da informalidade.
Pelas mesmas razões, também os poucos programas de regularização de assentamentos informais consolidados existentes — que em muitos casos são a única política habitacional existente, e não uma dimensão de uma política mais ampla e articulada como deveriam ser — não têm conseguido mudar o rumo do processo de urbanização e pelo contrário acabam por provocar novas distorções.
Buscar novas soluções e novos caminhos, então, é essencial. Nesse contexto, em diversos países têm surgido algumas pistas interessantes e promissoras, começando com o reconhecimento da necessidade da promoção de mais e melhor produção habitacional em programas articulados de crédito, financiamento, subsídios e exigências variadas, a serem conduzidos não apenas pelo Estado, mas também por novos atores como cooperativas, associações, Community Land Trusts — CLTs/Termos Territoriais Coletivos. Autogestão e escala são fatores fundamentais, assim como a melhor utilização do patrimônio público existente. Políticas de aluguel — controle do aluguel, teto do aluguel, aluguel social, leasing — também têm sido adotadas em diversas cidades de diferentes países.
No Brasil, os diversos processos de ocupações urbanas têm colocado o dedo nesse desafio da política fundiária. O enorme déficit habitacional do país convive com um número gigantesco de vazios urbanos com serviços, construções públicas e privadas vazias e/ou subutilizadas, bem como um enorme estoque de terra pública ociosa. O papel elitista, burocrático e segregador da legislação urbanística não pode mais ser ignorado.
Se por um lado centenas de municípios têm reconhecido nas suas leis um número crescente de Zonas de Interesse Social (Zeis) correspondentes aos assentamentos informais existentes, a dificuldade de se criar no país Zeis em áreas vazias para possibilitar a produção habitacional de interesse social tem de ser superada. Estamos longe de um cenário plena aplicação do Estatuto da Cidade, especialmente porque não há esforços mínimos no sentido da recuperação pelo Poder Público da enorme valorização imobiliária gerada pela ação pública — através de obras, serviços e equipamentos, bem como pelas leis urbanísticas —, mas que tem sido gratuitamente apropriada pelos proprietários de imóveis.
Outra pista importante da experiência internacional é que é inegável que soluções coletivas devem ser buscadas para problemas coletivos, inclusive no que diz respeito as políticas de moradia e especialmente quanto aos direitos envolvidos. Há tendências interessantes — “co-living“, novas dinâmicas familiares, outras formas de moradia coletiva, novos arranjos entre jovens/estudantes e idosos, em alguns casos “volta ao campo” — que devem ser acompanhados.
A lição fundamental certamente é que uma ampla e profunda mudança paradigmática é fundamental e urgente. A promoção de Reforma Urbana requer a materialização do princípio constitucional da função social da posse, da propriedade e da cidade, a afirmação do valor social da terra, o reconhecimento da moradia como direito e não como mera mercadoria, bem como da Importância das Zeis para que se dê a territorialização adequada do direito social à moradia digna. Tem ganhado força o movimento que vê a “cidade como bem comum”, cenário que requer um novo marco de governança da terra urbana com participação direta de novos atores além do Estado.
Além da questão central da produção habitacional, maior ênfase tem sido colocada na necessidade de mais espaços públicos, hortas comunitárias, planos urbanísticos comunitários, novas formas de mobilidade urbana e outras estratégias integradas que sejam democraticamente concebidas dentro de um novo marco de Governança da Terra Urbana e responsabilidade territorial do Estado. Tudo o que é estatal é público, mas nem tudo o que é público é estatal, e o devido enfrentamento da crise das cidades e da moradia requer a construção de uma ampla e sólida esfera comunitária que seja plenamente traduzida também no território.
*Edésio Fernandes é jurista, urbanista, professor e consultor.
Fonte: ConJur