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ConJur – Artigo: Lei 14.382/2022 e adjudicação compulsória extrajudicial de imóvel – Por Gleydson K. L. Oliveira

01-08-2022

A Constituição Federal, em seu artigos 5º, XXIII, 170, III, e 182, estabelece o princípio da função social da propriedade, pelo qual o exercício dos poderes inerentes à propriedade — uso, fruição e gozo — pelo seu respectivo titular deve se operar à vista da obtenção dos fins econômico e social para o qual se destina a coisa (bem móvel ou imóvel).

Trata-se do aspecto funcional do direito de propriedade, fazendo com que, dentro do seu elemento definitório, haja a noção de que a propriedade obriga o proprietário a utilizar da coisa de acordo com os fins econômicos e sociais a que se destina, a exemplo que fizera a Constituição de Weimar de 1919, que, em seus artigos 153 e 155, estabelecia que a propriedade acarreta obrigações. Seu uso deve ser igualmente no interesse geral, e que o proprietário territorial tem, em face da comunidade, o dever de cultivar e de explorar o solo.

Por sua vez, a adjudicação compulsória consiste no direito subjetivo de que o promitente comprador, tendo efetuado o pagamento do preço previsto no contrato de promessa de compra e venda de imóvel, e deparando-se com a recusa injusta do promitente vendedor de assinar a escritura pública de compra e venda, de exigir a celebração do contrato de compra e venda, servindo de título translativo do direito de propriedade perante o cartório de registro de imóveis.

Por força do Decreto-lei 58/1937, em seu artigo 16, pelo qual “Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura definitiva no caso do artigo 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória“, da Lei 4.591/1964, em seu artigo 32, §2º, pelo qual “Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra“, da Lei 6.766/1979, em seu artigo 25, pelo qual “São irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito a adjudicação compulsória, e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros“, e do Código Civil, em seu artigos 463 e 464, pelos quais “Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra pra que o efetive“, e “Esgotado o prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar“, verifica-se que, numa perspectiva instrumental, a ação de adjudicação compulsória pode ser proposta pelo promitente comprador, que, tendo efetuado o pagamento do preço, contra o promitente vendedor, com o propósito de obter sentença que, substituindo a vontade das partes, tenha a aptidão de gerar a transferência da propriedade sobre o bem imóvel.

No contexto funcional do direito de propriedade, mercê da incidência da respectiva função social, a recente Lei 14.382, de 27 de junho de 2022, ao emprestar a redação ao artigo 216-B da Lei 6.015/1973, passou a contemplar a hipótese de a adjudicação compulsória do imóvel, objeto do contrato de promessa de compra e venda, se operar extrajudicialmente perante o cartório de registro de imóveis, podendo ser, para tanto, requerida pelo promitente comprador, promitente cessionário, ou seus sucessores, bem como pelo promitente vendedor, com os seguintes documentos em requerimento subscrito por advogado dirigido ao oficial de registro imobiliário, a saber: 1) instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão; 2) prova da recusa pelo promitente vendedor consubstanciado na não celebração do título de transmissão da propriedade mediante notificação extrajudicial realizada pelo oficial do registro imobiliário; 3) certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel; 4) comprovante de pagamento do imposto de transmissão de bem imóvel (ITIV ou ITBI); e 5) procuração com poderes específicos outorgado a advogado. Embora não mencionado explicitamente, tem-se que o requerimento deve ser instruído também com a prova da quitação pelo promitente comprador do preço objeto da promessa de compra e venda.

A exegese a ser emprestada ao artigo 216-B da Lei 6.015/1973, com a redação dada pela Lei 14.382/2022, deve permitir a adjudicação compulsória extrajudicial de imóvel, seja oriundo da Lei 6.766/1979 (Lei de Parcelamento e Loteamento), seja oriundo da Lei 4.591/1964 (Incorporação Imobiliária), seja oriundo do Código Civil (demais imóveis que não sejam oriundos de parcelamento/loteamento).

A implementação da adjudicação compulsória extrajudicial, seguindo a orientação jurisprudencial adotada no Superior Tribunal de Justiça, prescinde do registro do contrato de promessa de compra e venda perante o cartório de registro imobiliário, nos termos da Súmula 239, pela qual “O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis“. Assim como a eventual situação de irregularidade fiscal do promitente vendedor não configura óbice à adjudicação compulsória, a exemplo do que já se manifestara a jurisprudência (TJ-SP, AC 1000685-20.2018.8.26.0370, relator desembargador Francisco Loureiro; TJ-PR, APL 0009371-40.2018.8.16.0194, relator desembargador Paulo Cezar Bellio).

Por conseguinte, com a inovação trazida pela Lei 14.382/2022, o contrato de promessa de compra e venda de imóvel não inserto em loteamento, quando acompanhado da prova da quitação, passa a ser considerado título translativo da propriedade imobiliária, a exemplo do que preceitua o artigo 26, §6º, da Lei 6.766/1973, com a redação que lhe foi dada pela Lei 9.785/1999.

Em seguida, à vista dos documentos anteriormente mencionados, o oficial de registro de imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel é obrigado a proceder ao registro da propriedade em nome do promitente comprador, servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão.

Portanto, cuida-se de importante e relevante alteração legislativa que, fundada no postulado da função social da propriedade, permite que se operacionalize a adjudicação compulsória do imóvel extrajudicialmente, quando presentes os requisitos de trata o artigo 216-A da Lei 6.015/1973.

*Gleydson K. L. Oliveira é mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, professor da graduação e mestrado da UFRN e advogado.

Fonte: ConJur