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ConJur – Artigo: Interpretação judicial equivocada da Lei 13.786/18 nos distratos imobiliários – Por Diego Amaral

08-07-2022

Em meio à crise econômica vivenciada pelo país entre 2014 e meados de 2019, foi sancionada a Lei 13.786/18, que regulamentou várias questões relativas aos “distratos” imobiliários, dentre elas a fixação do percentual de fruição a ser retido pelo loteador nos casos de rescisão contratual por iniciativa e culpa do adquirente. O dispositivo de Lei, em regra, não abarca margem para interpretações, porém, não raro há decisões do poder Judiciário interpretando o texto de forma equivocada, forçando a tentativa de (in) justiça e chancelando uma proteção legislativa ao arrepio do que estabelece o diploma legal. 

A Lei 13.786/18 talvez tenha sido a mais importante atualização legislativa dos últimos dez anos em relação ao mercado imobiliário brasileiro, tendo em vista o momento em que se deu sua sanção pelo ex-presidente Michel Temer: no apagar das luzes do seu mandato, no final do ano de 2018, no pico de uma crise sem precedentes para o mercado imobiliário, conhecida como crise dos “distratos”, que já se perdurava desde meados de 2014.

A pressão por parte do mercado, por meio das instituições que o representam nos mais diversos segmentos, era grande há anos e, desde a entrada de Temer na Presidência — em razão do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff — várias soluções já haviam sido pensadas, inclusive a possibilidade de uma medida provisória que regulasse os “distratos” por um determinado tempo, mas que não foi efetivada.

Os números do que chamamos equivocadamente de “distratos”, tendo em vista que o que na verdade se discutia no judiciário eram e ainda são Resoluções Contratuais e não Resilição Contratual — espécie de Rescisão Contratual onde se encontra a modalidade conhecida como Distrato — eram alarmantes e se mantiveram, entre 2014 e 2018, na casa de 40% dos imóveis que eram vendidos no país. Segundo dados de pesquisa do Secovi/SP, em novembro de 2016, houve o pico do número de Resoluções Contratuais no país, com 44% de rescisões.

Era necessária uma lei que regulamentasse a questão, já que cada vez mais os julgados dos quatro cantos do país formavam jurisprudência regulando a matéria em percentuais específicos, independente do bem adquirido pelo consumidor via contrato de promessa de compra e venda ou compromisso de compra e venda, ou seja, lotes ou casas e/ou apartamentos, qual sejam: 10% de retenção pelo empreendedor e 90% de devolução para o adquirente, o que causava um desequilíbrio do negócio jurídico em desfavor do empreendedor, loteador ou incorporador imobiliário.

Em 2016, o Secovi/Goiás contratou a empresa Tendências Consultoria para analisar qual deveria ser o percentual correto de retenção por parte do empreendedor nos casos de rescisão contratual, que não gerasse prejuízos ao desenvolvedor imobiliário. A pesquisa focou no segmento de loteamentos, tendo sido encontrado um percentual médio de retenção de 37% como o adequado para os casos de loteamentos onde houvesse rescisões contratuais por iniciativa do adquirente.

Para complicar o período relatado, em agosto de 2015 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou e aprovou a súmula 543, que por muito tempo foi interpretada equivocadamente pelo judiciário e aplicada de forma errônea, já que a mesma é clara e expressa em dizer que sua aplicabilidade se dá em relação aos contratos de “promessa de compra e venda”, para “resoluções contratuais” e por tantas vezes foram observados julgados que aplicaram a súmula em compromissos de compra e venda e em resilições contratuais.

A Súmula em questão prevê que a devolução do percentual (que ela deixa em aberto), para casos de iniciativa do consumidor, deve se dar de forma imediata, tendo prejudicado sobremaneira o caixa de inúmeras empresas do segmento durante o período de crise, tendo em vista o percentual elevado de rescisões contratuais.

A súmula 543, somada ao momento econômico vivenciado pelo país no período pós-impeachment, causou um verdadeiro caos no mercado, com várias imobiliárias, incorporadoras e loteadoras fechando suas portas ou com pedidos de recuperação judicial.

Porém, em dezembro de 2018 nasceu a tão esperada Lei 13.786, conhecida popularmente como Lei dos Distratos. Além de regulamentar os percentuais a serem retidos para os casos de rescisão contratual por culpa ou iniciativa do consumidor, nas incorporações e nos loteamentos, ela também regulamentou várias outras questões, como a possibilidade de atraso de obra por até 180 dias, o direito de arrependimento de sete dias, o padrão contratual com um rol de informações que devem constar no quadro resumo do instrumento contratual, multa, fruição, entre outras questões. Já em 2019, o efeito da nova Lei foi sentido positivamente pelo mercado, com uma redução média de, aproximadamente, 30% do número de “distratos” no país. 

Sobre a fruição, estabeleceu a mencionada Lei que, para incorporações, essa seria de 0,5% do valor atualizado do contrato, pro rata die e que, para loteamentos, o percentual seria de 0,7% sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo seria contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador.

No caso do artigo 32. A, da Lei em questão, que acrescentou tal dispositivo à Lei. 6.766/79, é expresso o momento da contagem do prazo: “contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador”. O artigo do texto de Lei em questão não faz qualquer referência à existência de construção ou não, ou existência de projeto construtivo ou não. Ele fala em posse, pura e simplesmente.

Podemos discutir aqui sobre o momento da posse, se passa a existir quando da assinatura do contrato de compromisso de compra e venda ou da entrega das obras de infraestrutura do empreendimento, o famoso TVO (Termo de Verificação de Obra). O TVO é um documento emitido pela Prefeitura após a conclusão das obras de divisão do terreno e infraestrutura em loteamentos. Ele serve para comprovar que a empresa responsável cumpriu todas as etapas previstas quando o empreendimento foi planejado e autorizado, mas nunca discutir sobre a existência ou não de construção, ou juridicamente, “realização/obtenção do efeito pretendido pelo consumidor”.

Entretanto, o poder judiciário, por meio de variados julgados, tem realizado de forma muito equivocada essa interpretação da Lei, indo de encontro ao que foi determinado pelo legislador e tentando forçar uma justiça à revelia do que estabelece a legislação própria aplicada à matéria.

Além desses julgados, que estabelecem a tese para negar a fruição, total ou parcial, no pleno uso do bem econômico, em razão da não edificação no bem, há outros que da mesma forma não aplicam a interpretação correta, por entenderem que a fruição caberia somente após eventual inadimplemento por parte do adquirente. O que é um verdadeiro absurdo e clara inovação interpretativa, já que não há essa previsão na legislação.

Salvo melhor juízo, parece cristalina a falha na interpretação, que, se não combatida nas instâncias superiores, se consolidará como uma verdade por meio da jurisprudência, invertendo a ordem lógica das fontes do Direito, onde a jurisprudência se sobrepõe à Lei. Estabelece o artigo 140 do Código de Processo Civil que o juiz não pode se eximir de julgar o conflito, ainda que não exista lei expressa prevendo aquela hipótese verificada nos autos, alegando lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico. Para tanto, deverá valer-se da jurisprudência, da doutrina estrangeira, dos usos e costumes, mas não lhe é dado deixar de arbitrar o conflito.

De igual modo e com mais razão, não pode o magistrado deixar de aplicar a lei quando a situação de fato é clara a demonstrar a ocorrência da hipótese prevista pelo legislador. Se assim não for operado, caímos na vala da insegurança jurídica tão temida pelos mais diversos segmentos da economia e que tanto prejudica os andamentos saudáveis dos negócios realizados em nosso país.

*Diego Amaral é advogado, especialista em Direito Imobiliário e Civil, professor de pós-graduação em Direito Imobiliário e conselheiro jurídico da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção).

Fonte: ConJur