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ConJur – Artigo: Enunciado 669 da 9ª Jornada de Direito Civil e direito real de laje – Por João Hora Neto

06-07-2022

Induvidosamente, uma das mais importantes leis do ordenamento jurídico é a conhecida Lei de Introdução sobre às normas do Direito Brasileiro (Lindb), outrora denominada de Lei de Introdução ao Código Civil, que se presta a regular a introdução do direito como um todo e não apenas ao Código Civil, uma vez que detém uma abrangência maior, “com características de verdadeiros textos normativos de sobredireito” [1]. A despeito de não integrar propriamente o Código Civil, as regras nelas contidas têm como corolário diversas outras leis, quaisquer que sejam, como as penais, as empresariais, as fiscais, as processuais[2], sendo, pois, um conjunto de normas sobre normas, que atinge diversos ramos do Direito Privado ou mesmo do Direito Público.

A Lindb é um código de normas, merecendo destaque, para o objeto deste estudo, a aplicação da lei no tempo, à luz da teoria da não retroatividade das leis, isto é, a questão da irretroatividade da lei como princípio constitucional [3].

Recentemente, na 9ª Jornada de Direito Civil, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, foi aprovado o Enunciado 669, com a seguinte redação, verbis:

“ENUNCIADO 669 – Artigo 1.510-A: É possível o registro do direito real de laje sobre construção edificada antes da vigência da lei, desde que respeitados os demais requisitos previstos tanto para a forma quanto para o conteúdo material da transmissão.

Referido Enunciado se reporta à norma posta, o artigo 1.510-A do Código Civil, assim expressa:

Artigo 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente constituída sobre o solo.”

Na justificativa do Enunciado, permite-se que o titular da construção-base regularize sua laje edificada, previamente existente, mediante um novo registro imobiliário, “mesmo sem que com isso tenha de transmiti-la a terceiro”, sob o argumento de que poderá implicar em redução do valor global do IPTU (artigo 156, §1º, I, CF), entendendo, ainda, não ser ilícito a constituição de uma nova laje, “mesmo que em nome do titular da construção-base”.

À luz da doutrina, interpretar é buscar o sentido e o alcance da lei, sendo a hermenêutica a teoria cientifica da arte de interpretar, pois o Direito precisa transformar-se em realidade eficiente e concreta, no interesse coletivo e individual [4].

A meu sentir, o Enunciado muito mais confunde do que elucida a norma posta (artigo 1.510-A), consoante os argumentos seguintes:

A um, observe-se que, em sede de direito intertemporal ou da aplicação da lei no tempo, vige no direito pátrio, desde o Império, o princípio constitucional da irretroatividade da lei, assim expresso no artigo 179, nº 3, da Constituição do Império, fundado na ideia de segurança, a fim de coibir abusos por parte do Poder Público [5], devendo ser observado que o princípio da segurança jurídica, não obstante não expresso na Carta Magna, existe de forma implícita (artigo 5º, II, XXXIX, XL), além do inciso XXXVI (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”), pois todos esses incisos “têm como objetivo garantir ou a estabilidade das relações jurídicas pretéritas ou a previsibilidade para as relações jurídicas futuras, ou ambas” [6].

O processo legislativo é permeado de várias etapas, e, como cediço, a lei torna-se obrigatória após a sua publicação, passando a ter eficácia imediata e geral (artigo 6º, caput, Lindb), não podendo a lei nova retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, o que significa dizer que “a cláusula da irretroatividade da lei nova convive com outro preceito de direito intertemporal, que é o da eficácia imediata da lei nova” [7].

O princípio da irretroatividade da lei, assim consagrado na Constituição (artigo 5º, XXXVI) e no artigo 6º caput (Lindb), significa dizer que quando a nova lei passa a viger, ela tem eficácia direta e imediata, somente atingindo os fatos pendentes (facta pendentia) e os futuros (facta futura), não abrangendo os fatos pretéritos (facta paeterita), estes últimos protegidos pela cláusula constitucional da irretroatividade [8].

Não se deve confundir, portanto, a eficácia imediata que toda lei nova tem, que atinge os negócios jurídicos em curso, com a retroatividade da lei, proibida pelo sistema jurídico, haja vista que o efeito imediato não é o efeito retroativo [9].

Ressalte-se, contudo, que o princípio da irretroatividade não é absoluto, podendo a lei nova retroagir em alguns casos, inclusive para atingir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (retroação máxima), desde que a novel lei guarneça interesses de ordem pública [10], como é o caso, por exemplo, da lei penal material apta para desfazer a coisa julgada, desde que para beneficiar o réu (artigo 5º, XL, CF) ou, ainda, a lei que concede a anistia política, que retroage à data da cassação do servidor público [11]ou mesmo a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888 e que marca o fim da escravidão no Brasil [12].

Pois bem.

O direito real de laje foi criado pela Lei 13.456, de 11 de julho de 2017, depois inserido no rol dos direitos reais (artigo 1.225, XIII, CC).

Ocorre que, à luz do Enunciado 669, admite-se a sua retroação, isto é, está autorizada a possibilidade da retroação dessa lei — o que ressoa inconcebível — posto que se trata de uma lei de natureza privada, de mero interesse particular, não se tratando de uma lei cogente, imperativa, de ordem pública, isto é, uma lei que albergue “interesses superiores do bem público” [13].

A retroatividade dessa lei é impossível, a meu sentir.

Tal qual os demais direitos reais elencados no rol taxativo do artigo 1.225, I a XIII, CC, o direito real de laje tem uma natureza jurídica privatística, não comportando retroação, de sorte que não pode o titular da construção-base constituir um direito real de laje de uma laje já edificada e anterior à vigência da lei que criou o novel direito real.

A dois, em sendo o direito real de laje uma modalidade do direito real de superfície, ou seja — o direito de sobrelevação ou superfície em segundo grau — já previsto no artigo 21, §1º, Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), na verdade representa um mero desdobramento do direito real de superfície, e que este exige, imperiosamente, a presença de dois sujeitos de direito, ou seja, o dono do solo (titular do domínio pleno), também denominado de fundeiro ou concedente e o titular do domínio sobre as construções ou plantações, o chamado de superficiário ou concessionário (artigos 1.369 a 1.377, CC), como também assim é previsto esses dois sujeitos de direito para o direito real de laje (artigo 1.510-A, caput, CC), isto é, a presença do proprietário da construção-base e do titular da laje (lajeário).

Juridicamente, inexiste a possibilidade de constituição do direito real de superfície com um único sujeito de direito. Também, em igual raciocínio, inconcebível é a constituição do direito real de laje sem que haja a transmissão a terceiros, isto é, mesmo que em nome do titular da construção-base, como assim autoriza o Enunciado referido, posto que tal negócio jurídico se configura num autocontrato ou contrato consigo mesmo (artigo 117, CC), o que é vedado pelo ordenamento pátrio (passível de anulação), uma vez que detém manifesto conflito de interesses, em razão de o dono do solo/concedente (construção-base) passar a figurar, simultaneamente, como superficiário/lajeário/concessionário.

Reitere-se, pois, ser inadmissível a constituição do direito real de laje para si próprio, ou seja, ‘mesmo sem que com isso tenha de transmiti-la a terceiro’/ ‘mesmo que em nome do titular da construção-base’, conforme consta da justificativa do Enunciado — à vista do notório conflito de interesses, fundamento maior da vedação ao chamado autocontrato, que é uma “causa objetiva de anulabilidade” [14].

De mais a mais, para que o autocontrato seja válido, além da inexistência do conflito de interesses entre o representante e o representado, impõe-se sua autorização pela lei ou pelo contrato [15] — 16], o que não se vê no regramento legal do direito real de laje, diferentemente, portanto, da ‘procuração em causa própria’, expressamente prevista no art. 685, CC, de sorte que o autocontrato, no direito pátrio, é acolhido com reservas, consoante se constata pelo comando do artigo 51, VIII, CDC e da Súmula 60 do STJ: “É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutante, no exclusivo interesse deste” [17].

A meu sentir, a transmissão do direito real de laje para si próprio é algo inadmissível, sendo, tal contrato, muito mais do que anulável, mas, sim, nulo de pleno direito.

A três, em razão de a segunda parte do Enunciado ser meramente redundante e desnecessária, isto é, ‘desde que respeitados os demais requisitos previstos tanto para a forma quanto para o conteúdo material da transmissão’, mormente porque qualquer negócio jurídico deve obedecer a tricotomia ‘existência-validade-eficácia’, conhecida como ‘Escada Ponteana’, razão por que, primeiramente, o negócio tem que existir, para depois ser válido e, por fim, eficaz.

Consoante abalizada doutrina [18], no plano de existência verifica-se o suporte fático do negócio jurídico, ou seja, os agentes, a vontade, o objeto e a forma, também denominados de ‘pressupostos de fato’ [19], não se cogitando de invalidade ou eficácia do fato jurídico, mas apenas da realidade da existência [20]. No segundo plano, o da validade, perquire-se se os agentes são capazes, se a vontade é livre e sem vícios, se o objeto é lícito, possível, determinado ou determinável e se a forma é prescrita e não defesa em lei, fazendo-se uma “triagem entre o que é perfeito (que não tem qualquer vício invalidante) e o que está eivado de defeito invalidante” [21]. Já no terceiro plano, o da eficácia, examina-se os efeitos do negócio jurídico em relação às partes e em relação a terceiros.

No caso in concreto, vê-se que é despicienda a segunda parte do Enunciado, haja vista que a observância da Escada Ponteana já faz parte, ope legis, do sistema jurídico pátrio.

Às claras, percebe-se que, muito mais do que inválido o negócio jurídico, por ser o autocontrato anulável (artigos 117 c/c 172, CC), em verdade o Enunciado dispõe sobre um negócio jurídico inválido, por nulidade de pleno direito, em face de o objeto ser ilícito (artigo 166, II, primeira figura, CC), isto é, a constituição de um direto real de laje envolvendo uma mesma pessoa (o dono da construção-base), simultaneamente concedente e concessionário, aplicando-se, por conseguinte, o instituto da confusão (artigo 381, CC), da espécie pessoal. Ademais, referido negócio jurídico é também nulo em razão de preterição de solenidade que a lei considera essencial para sua validade (art. 166, V, CC) e por ter por objetivo fraudar lei imperativa (artigo 166, VI, CC), haja vista que a constituição do direito real de laje, que é uma das formas de apresentação do direito real de superfície [22], somente se faz possível envolvendo um terceiro, à luz de interpretação literal do artigo 1.369, caput, CC, em igual sintonia com o regramento da laje no artigo 1.510-A, caput, Código Civil.

Sob a perspectiva da Escada Ponteana, o direito real de laje aventado no Enunciado, não obstante existir juridicamente (plano de existência), ele guarnece um vício intrínseco, um defeito invalidante, não passando pela triagem do plano da validade, por ser inaceitável a sua constituição sem que haja a transmissão a terceiros, o que o torna nulo de pleno de direito e não apenas anulável, como se um autocontrato fosse.

Em suma, a meu juízo, atesta-se que o Enunciado 669, muito aquém de aclarar o controverso instituto do direito real de laje, também por mim analisado e criticado, de forma amiúde, no artigo ‘Direito Real de Laje e suas Fissuras’, publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, jan./fev. 2022, nº 106, doravante lança sobre ele uma pá de cal, tornando-o ainda mais inoperante.

Notas

[1] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 219.

[2] CARVALHO SANTOS, J.M.de. Código Civil interpretado: introdução e parte geral. 14 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, p. 12, v. 1.

[3] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil: introdução, parte geral e teoria dos negócios jurídicos. 6 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988, p. 157-177, v.1.

[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.1-6.

[5] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil: introdução, parte geral e teoria dos negócios jurídicos. 6 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988, p. 161-168, v.1.

[6] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021, p. 240.

[7] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 226.

[8] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 226.

[9] DELGADO, Mário Luiz. Problemas de direito intertemporal no Código Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 25.

[10] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 10 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1953, p. 77.

[11] DELGADO, Mário Luiz. Problemas de direito intertemporal no Código Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 29.

[12] HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1165.

[13] CARVALHO SANTOS, J.M.de. Código Civil interpretado: introdução e parte geral. 14 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, p. 52, v. 1.

[14] TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República: parte geral e obrigações. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 236.

[15] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 558.

[16] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos, teoria geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 178, v.4.

[17] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v. 1.

[18] TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 431-432, v.1.

[19] SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; DE MELO, Marco Aurélio Bezerra; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 84.

[20] MELLO, Marcos Bernardo de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 163.

[21] MELLO, Marcos Bernardo de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 164.

[22] SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; DE MELO, Marco Aurélio Bezerra; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 1270.

*João Hora Neto é doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS), juiz de Direito do Estado de Sergipe e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT).

Fonte: ConJur