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ConJur – Artigo: Do contrato de cessão de direitos possessórios para fins de usucapião – Por Rafael Hector Censi

08-02-2023

Conceito de usucapião

O professor Júlio Cesar Sanchez define que usucapião “é a forma de se apropriar de algo que não é seu e, pelo tempo, tornar-se o novo dono (…) A usucapião é a forma originária de aquisição imobiliária, por meio da qual o possuidor, após cumprimento de alguns requisitos legais, torna-se legítimo proprietário do bem, móvel ou imóvel, sem que haja a necessidade de transmissão do imóvel de uma pessoa para outra” (Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar, pág. 13, Editora Mizuno)

Usucapião na história

O instituto da usucapião não é novo, aliás, tem historicidade jurídica milenar e tem em Roma seu nascedouro, berço e desenvolvimento. As raízes de tal instituto tem origem na Lei das 12 Tábuas, por volta do ano 450/455 antes de Cristo, que após forte pressão dos plebeus, o Senado romano criou um conjunto de regras (leis latu sensu) estabelecendo normas, garantias e princípios democráticos aos cidadãos romanos.

Historiadores tradicionalistas atribuem ao tribuno plebeu Gaio Arsa a criação de uma magistratura no ano de 461 a. C. encarregada de redigir uma forma de lei que diminuísse o arbítrio dos cônsules, nascendo, assim, a Lei das 12 Tábuas.

Os prazos para usucapir naquela época, de acordo com a Lei das 12 Tábuas, era de dois anos para bens imóveis e um ano para bens móveis e outros direitos (Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar, pág. 13, Editora Mizuno).

“TÁBUA SEXTA

Do direito de propriedade e da posse (…)

5. As terras serão adquiridas por usucapião depois de dois anos de posse, as coisas móveis depois de um ano.”

Com o passar do tempo, os próprios juristas romanos se ocuparam de desenvolverem o instituto da usucapião, esmiuçando seu conceito e forma, criando, assim, as bases jurídicas para o que temos hoje em nossa legislação.

Eneu Domício Ulpiano (150-223, a.C), festejado jurista romano, cujo trabalho influenciou substancialmente o Direito Romano e Bizantino, definiu o instituto da usucapião como “a aquisição do domínio do lapso temporal”, ou seja, “usucapio est autem domini adeptio per continuationem possessionis anni vel bienni: rerum mobilum anni, imombilum bienni” (A usucapião é transferência do domínio ao outro pela continuação da posse por um ano ou dois: coisa móvel ano, imóvel dois anos).

Todavia, a usucapião codificada pela Lei das 12 Tábuas estava longe de ser o instituto que atualmente conhecemos, pois, não permitia a aquisição originária da propriedade de imóveis provinciais (aqueles imóveis distantes de Roma, localizados nas longínquas províncias romanas), que por décadas não eram ocupadas ou reivindicadas, quer fosse por Roma ou seu proprietário patrício.

Para os casos acima, fora criado o instituto da “praescriptio longis temporis” (prescrição de longo tempo), o instituto da prescrição. Para esses casos, a propriedade provincial poderia ser adquirida pela posse temporal qualificada de dez anos de bem móvel ou por 20 anos de bem imóvel.

Foi o imperador romano Justiniano que fundiu a usucapio com a praescraptio longis temporis em um único instituto, passando a abranger a prescrição aquisitiva com a prescrição extintiva, pois, no seu entender, toda aquisição de propriedade por meio do decurso de um prazo determinado, nada mais era senão uma forma de prescrição (Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar, pág. 14, Editora Mizuno).

Com a evolução do Direito o instituto da usucapio (aquisitiva ou extintiva) foi se ramificando e se auto regulando, como, por exemplo, a exigência de boa-fé e justo título por parte do possuidor, bem como, proibição de usucapir coisa furtada, roubada, bens públicos, etc.

Usucapião no Brasil

O instituto da usucapião, como forma originária de aquisição de propriedade móvel ou imóvel, através do exercício possessório contínuo e qualificado, por um determinado lapso temporal, podendo ou não ser lastreado por justo título, ter ou não em sua gênese boa-fé do possuidor, tem sua positivação oficial no Código Civil de 1916, através do seu artigo 530, inciso III, que assim dispunha:

“Art. 530. Adquire-se a propriedade imóvel:

(…)

III – Pelo usucapião.”

O atual Código Civil, disciplina o instituto em seu Título II, Capítulo II, Seção I, para bens imóveis e Capítulo II, Seção I, para bens móveis.

A forma originária de aquisição de propriedade imóvel está disciplinada no artigo 1.238 e seguintes do Código Civil e, do mesmo modo, para aquisição destinada a aquisição de bens móveis, artigo 1.260 e seguintes, do mesmo código.

O Código Civil regula diversas formas de aquisição originária da propriedade (usucapião) e todas tem uma característica simétrica e imprescindível: prescrição aquisitiva, ou seja, qualquer que seja a modalidade da usucapião, a prescrição (interstício temporal legalmente pré-determinado) será requisito inafastável, do possuidor.

A doutrina e legislação contemporânea não permite, tão somente, o ordinário exercício da posse por determinado tempo como meio hábil, único e absoluto para a aquisição da propriedade através da usucapião.

Há outros requisitos, como, por exemplo, a qualificação da posse através do decurso do prazo prescricional aquisitivo. Há que se ter a posse ad usucapionem com animus domini, que é posse qualificada que permite a aquisição do bem através da usucapião.

O possuidor deve ter o animus domini de, pelo efetivo e contínuo exercício da posse sobre determinada coisa (móvel ou imóvel), adquirir-lhe a propriedade, comportando-se, desde o início, como se proprietário já fosse do respectivo bem.

Então, até aqui temos, em linhas gerais, que o possuidor ad usucapionem, precisa, necessariamente, cumprir com dois requisitos: (1º) prescrição aquisitiva por determinado lapso temporal, que será disciplinado pela legislação; (2º) a posse exercida dentro do lapso temporal que consolidará a prescrição aquisitiva deve ser qualificada, ou seja, o possuidor deve ter animus domini ad usucapionem, exercitando, assim, a posse de forma qualificada, com clara, nítida e pública intenção de adquirir a propriedade daquela coisa sobre o qual está exercendo a posse, ou seja, o mundo exterior deve vê-lo como se proprietário fosse ou, no mínimo, que se comporta como tal.

A posse com animus domini ad usucapionem deve, necessariamente, ser justa, isto é, não decorrer de violência — física ou moral, ou esbulho —, clandestinidade — obtida às escondidas, de maneira oculta — ou precaria — obtida com abuso de confiança ou de direito, pois, segundo o artigo 1.208 do Código Civil, a posse injusta não produz efeitos para fins de usucapião. (Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar, pág. 169, Editora Mizuno)

Para fins deste singelo artigo, nos debruçaremos na usucapião de bem imóvel.

Da usucapião extraordinária

O instituto da usucapião que reclama apenas dois requisitos está disciplinado no artigo 1.238 do Código Civil, denominado usucapião extraordinário, vejamos:

“Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.”

Observamos que o legislador elegeu duas condições ao possuidor, para os casos da usucapião extraordinária: (1ª) prescrição aquisitiva de 15 anos (reduzindo-se para dez caso tenha no local estabelecido moradia habitual, ou, ter realizado obras ou serviços de caráter produtivo); (2ª) posse qualificada, ou seja, com animus domini ad usucapionem, sem necessidade de justo título e boa-fé.

Preenchido os requisitos acima, adquirir-se-á de forma originária a propriedade, agora usucapida pelo possuidor, através da modalidade extraordinária. O possuidor, findo ao processo (judicial ou não), passará a ser o proprietário fático e de direito do respectivo imóvel ou, como diria Uliano, conquistou a aquisição do domínio do lapso temporal.

A usucapião extraordinária é a clássica fusão dos antigos institutos romanos onde podemos encontrar a prescrição aquisitiva e extintiva do direito de propriedade. Aquela primeira pelo uso da regular posse por parte do indivíduo sobre determinado imóvel e a segunda a perda do domínio do proprietário sobre o respectivo bem por desídia ao seu direito.

A usucapião é a materialização da função social do direito (inciso XXIII do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988).

Da usucapião ordinária

Avançando a passos largos para o título deste singelo artigo, nos debrucemos ao requisito necessário à todas as modalidades de usucapião ordinária ou especial (urbana ou rural), qual seja: justo título, que inexoravelmente é acompanhado pela boa-fé.

Diferentemente da usucapião extraordinária, aqui estamos tratando das espécies em que a presença do justo título, acompanhado da boa-fé são requisitos indispensáveis para usucapir o bem imóvel, ou seja, não basta o preenchimento do lapso temporal destinado a prescrição aquisitiva, mas, concomitantemente, há que se ter o justo título e boa-fé, que estão umbilicalmente ligados um ao outro.

A usucapião ordinária está disciplinada no artigo 1.242 do Código Civil, vejamos:

“Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.”

O justo título é tido como qualquer documento hábil a comprovar a cadeia de sucessão ininterrupta da prescrição aquisitiva qualificada, sempre de forma mansa, pacífica e de boa-fé, de um indivíduo para outro.

O professor Júlio Cesar Sanchez, em seu festejado livro Usucapião, Editora Mizzuno, capitulo 21, página 173, leciona que: “trata-se de instrumento hábil para transmitir o domínio ou outro direito real passível de ser usucapido, e que esteja formalmente em ordem, isto é, que esteja intrinsicamente apto a transmitir o direito real pretendido, embora padeça de um vício extrínseco”.

O instrumento a que faz menção o citado professor pode ser um contrato de promessa de venda e compra, carta de arrematação de um imóvel num leilão judicial ou não, que não fora arrematada e, inclusive, o contrato de cessão de direitos possessórios e afins, objeto deste breve artigo.

Do contrato de cessão de direitos possessórios como instrumento hábil a transmitir o domínio do imóvel (justo título)

Estima-se que no Brasil há cerca de 35 milhões de imóveis irregulares, dentre a maioria em situação exclusiva ou singular de pura posse, ou seja, o possuidor, aqui tido como precário proprietário, é senhor e proprietário da posse qualificada, em todos os seus termos e alcance, sobre determinado bem imóvel, porém, não tem o domínio registral do mesmo, ou seja, segundo a Lei de Registros Públicos não é o proprietário de legal daquele imóvel.

Qual seria o instrumento hábil para que o mesmo possa “vender” ou, em termos jurídicos, transmitir de forma onerosa ou não seus direitos possessórios a um terceiro, numa típica transação negocial? A própria legislação assim nos responde.

O artigo 1.205 do Código Civil disciplina outras formas de aquisição da posse, vejamos:

“Art. 1.205. A posse pode ser adquirida:

I – pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante;

II – por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação.”

Este singelo articulista divide a aquisição da posse em duas modalidades, assim como se faz no estudo sobre aquisição da propriedade, ou seja, adquire-se a posse de forma originaria e outra decorrente.

Forma originária de aquisição da posse

A forma originária de se adquirir a posse é aquela que é exercida direta e fisicamente pelo possuidor (domínio fático) sobre determinado bem. Está disciplinada no artigo 1.204 do Código Civil. Aqui temos a figura do típico posseiro que, adentrando em terra ou imóvel desconhecidos, sem oposição ou resistência de seus proprietários, passa a exercer não só o domínio fático, mas, sobretudo, a posse ad usucapionem com animus domini e, após transcorrido mais dez anos de contínua posse qualificada no imóvel, que de sua moradia o fez, adquiriu o direito de o mesmo usucapir, segundo dispõe o artigo 1.238, parágrafo único, do Código Civil.

Em nossa didática casuística, o possuidor reúne todas as qualidades para requerer (extra ou judicial) a usucapião extraordinária com prazo reduzido, porém, por questões alheias, não o faz e resolve negociar seus direitos.

Forma derivada de aquisição da posse

O legislador deixou claro, ainda que de forma implícita, que a posse e seus efeitos são transacionáveis e transmissíveis, quer seja pela própria pessoa que pretende adquiri-la, como, também, por seus representantes, terceiros e mandatários, conforme se extrai da leitura do artigo 1.205 do CC.

E dentro desse quadrante, o instrumento adequado para tanto é a cessão de direitos possessórios, pois, este é o instituto jurídico hábil, eficaz e correto para se transmitir direitos de um para outro, pois, em verdade, o possuidor não pode, em termos legais, vender/alienar o imóvel ao qual só exerce a posse, por lhe faltar o basilar requisito para tanto, qual seja: o domínio registral, que reclama ato formal.

Só pode alienar aquele que, de fato e de direito, exerce o domínio sobre aquilo que se pretende vender. Aqui ainda estamos tratando dos efeitos qualificadores da posse que, após o devido processo legal ou extrajudicial, outorgará o domínio ao possuidor, através de uma sentença declaratória de propriedade ou decisão equivalente pelo oficial de registro de imóvel.

O contrato de cessão de direitos possessórios (aqui tido como oneroso, para fins de nossa casuística) é a forma derivada de aquisição da posse e seus efeitos.

Todo indivíduo pode, através do contrato de cessão de direito possessórios e afins, adquirir a posse de um imóvel com todos os seus correlatos efeitos, inclusive aquela ad usucapionem com animus domini e, assim fazendo, adquirir-lhe-á de maneira derivada.

A própria legislação que disciplina a usucapião ordinária explicita tal possibilidade, consoante se infere no artigo 1.243 do Código Civil, vejamos:

“Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.

(…)

Art. 1.207. O sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais.”

Os dispositivos acima, em perfeita consonância com o entendimento esposado no artigo 1.205 do CC, deixa explicito que a posse, além de poder ser transmissível (onerosa ou gratuita) soma-se àquela exercida ao novo possuidor, sem perder a qualidade de contínua e ininterrupta.

O contrato de cessão de direitos possessórios e afins, quando executado dentro dos contornos legais, tem o condão e a capacidade jurídica de transmitir décadas de posse num único ato, para aquele que acabou de adquirir tais direitos, mas que nunca tenha exercido, até então, a posse fática sobre o correlato imóvel, este é o instituto do acessio possessionis.

O acessio possessionis é a sucessão da posse ad usucapionem com animus domini de um indivíduo a outro, possibilitando que este último, novo adquirente da posse (Cessão de Direitos Possessórios), reúna em si todas as qualidades que o cedente obteve, após anos de efetivo exercício da posse, através de uma única transação negocial.

O recém adquirente dos direitos possessórios ad usucapionem com animus domini (forma derivada de aquisição da posse) pode, inclusive, requerer no mesmo dia em que se concretizou o negócio, a correlata usucapião, seja judicial ou extrajudicial, agora como forma originária de aquisição de propriedade.

A guisa de conhecimento prático, vale trazer a luz parte do V. Acórdão proferido nos autos da apelação nº 1000888-08.2021.8.26.0586, preferido pela Colenda 1ª Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 12/12/2022, os Ínclitos Desembargadores, por unanimidade, reconheceram o contrato de cessão de direitos possessórios como instrumento hábil de transmissão da posse para fins de usucapião, vejamos:

“Aliás, o objeto do contrato é exatamente a cessão de direitos possessórios, de modo que não há margem a qualquer equivoco por parte dos cessionários.

É texto expresso dos artigos 1.228 e 1.245 do Código Civil, que a propriedade imobiliária se adquire pelo registro, de natureza constitutiva. Isto não significa, porém, que não possa haver a alienação judicial dos direitos possessórios sobre bem imóvel.

Não há dúvida que a posse integra direito patrimonial, pois gera uma série de efeitos jurídicos positivos ao possuidor. Assim como a propriedade, a posse tem valor econômico, embora com certa depreciação, por ser uma situação de fato e não de direito.”

Assim, temos que, aquele que tem a posse com animus domini e já percorreu o lapso temporal necessário para a correlata usucapião do imóvel, poderá aliená-la através de competente cessão de direitos possessórios (cedente), transmitindo todas as qualidades ao novel adquirente (cessionário), que poderá utilizar tal documento como justo título, agora sim usucapir o bem, na modalidade ordinária ou extraordinária, quer pela via judicial ou extrajudicial.

*Rafael Hector Censi é advogado atuante na advocacia contenciosa civil e imobiliária, ex-assessor parlamentar na Câmara Municipal de Jundiaí, pós-graduando em Direito imobiliário, Civil e Constitucional, cursando especialização em usucapião pela ESU (Escola Superior Universitária), ministrada pelo professor Júlio Cesar Sanchez.

Fonte: ConJur