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ConJur – Artigo: Direito de acesso aos arquivos históricos da Igreja Católica – Por Marcos Paulo de Souza Miranda
Como consequência de antigos acordos celebrados entre a Santa Sé e o Reino de Portugal, desde a descoberta do Brasil, em 1500, até o ano de 1890, teve vigência em nosso território o sistema do padroado, segundo o qual a Coroa Portuguesa recebia delegação papal para arrecadar os dízimos eclesiásticos e, com eles, prover o funcionamento das igrejas, sustentando obras religiosas e remunerando párocos.
Essa simbiose entre poder político e poder religioso fazia com que muitas das atividades desenvolvidas pela Igreja Católica, em contrapartida, fossem, a princípio, próprias do poder público, a exemplo dos registros de nascimento (batismo), casamento e óbito, que eram feitos em livros das antigas paróquias. Historiadores afirmam que no Brasil, durante o século 18, por exemplo, os sacerdotes eram autênticos servidores da monarquia [1].
No final do século 19, com o fortalecimento dos ideais que pregavam a separação das atividades do Estado das da Igreja, começaram a surgir iniciativas legislativas sobre a realização de registros de atos em cartórios civis, a exemplo do Decreto nº 9.886, de 7 de março de 1888, que previa:
“Art. 1º — O registro civil comprehende nos seus assentos as declarações especificadas neste Regulamento, para certificar a existencia de tres factos: o nascimento, o casamento e a morte.
Art. 2º — E’ encarregado dos assentos, notas e averbações do registro civil, em cada parochia, o Escrivão do Juiz de Paz do 1º ou unico districto, sob a immediata direcção e inspecção do Juiz respectivo, a quem cabe decidir administrativamente quaesquer duvidas que occorrerem, emquanto os livros do registro se conservarem no seu Juizo.”
Contudo, mesmo com a extinção formal do padroado em nosso país [2], somente com o advento do Código Civil de 1916 restou institucionalizada a obrigatoriedade da realização do registro civil dos principais fatos relacionados às pessoas naturais (artigo 12).
Em razão disso, durante cerca de quatro séculos a Igreja Católica era a entidade depositária de todos os registros relacionados ao nascimento, casamento e óbito dos integrantes da sociedade brasileira, independentemente da sua classe social.
Além dos tradicionais registros citados, também podem ser encontrados nos arquivos religiosos processos de habilitação para o casamento, registros de sepultamentos realizados no interior de templos, além da transcrição de testamentos de última vontade em que, não raras vezes, eram feitos reconhecimentos de paternidade. Esses documentos também podem ser inseridos no campo dos denominados registros civis, em seu sentido mais amplo.
Com efeito, é nas dependências arquivísticas de antigas capelas, paróquias e cúrias que iremos encontrar um dos mais importantes e extensos acervos documentais de valor histórico do nosso país, fontes primárias imprescindíveis para a reconstituição e o esclarecimento de fatos relacionados aos primórdios de nosso povo.
Não por outra razão que a Lei 8.159/91, ao disciplinar a política nacional de arquivos públicos e privados, estabeleceu:
“Art. 16 — Os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos anteriormente à vigência do Código Civil ficam identificados como de interesse público e social.”
Referida declaração implica reconhecimento expresso de que tais documentos são relevantes para a história, a cultura e o desenvolvimento nacional e sujeita os respectivos acervos a um regime jurídico próprio que, conquanto não acarrete a sua transferência para instituição arquivística pública, impõe o dever de adequada guarda e preservação em relação a eles, bem como os submete à vigilância do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), nos termos dos artigos 22 a 28 do Decreto nº 4.073, de 3 de janeiro de 2002.
Vale ressaltar, inclusive, que ações que ocasionem destruição, deterioração ou inutilização de tal patrimônio arquivístico, por ação ou omissão, ficam sujeitas a sanções criminais, nos termos do artigo 62 da Lei 9.605/98, com previsão de pena de reclusão de um a três anos e multa.
Mas aspecto que merece especial atenção, a nosso sentir, diz respeito à possibilidade de acesso ao conteúdo dos documentos religiosos acima referidos, pois de nada adianta preservá-los se não constituírem ferramentas aptas a contribuírem para a cultura, o desenvolvimento científico e social, além de servirem de elementos de prova e informação.
Com efeito, não se concebe que os arquivos religiosos de interesse público — detentores de extremo significado cultural e essenciais para a reconstituição e difusão de nossa história – se transformem em reles depósitos inacessíveis de antigos documentos. Ao contrário, a política de preservação só se completa com a possibilidade de fruição acesso a eles.
O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística não descuida de, reconhecendo a disseminação como uma das funções dos arquivos, registrar o dever de fornecimento e difusão dos acervos por meio de canais formais de comunicação [3].
Dentro desse contexto, vale ressaltar que a Pontifícia Comissão para o Patrimônio Cultural da Igreja, órgão instituído pelo Vaticano incumbido de ditar diretrizes sobre o zelo em relação aos bens culturais religiosos, reconhece expressamente [4]:
“Os arquivos, como parte do patrimônio cultural, devem ser oferecidos principalmente ao serviço da comunidade que os produziu. Mas com o tempo assumem um destino universal porque se tornam patrimônio de toda a humanidade. O material armazenado não pode ser, de fato, vedado àqueles que dele podem aproveitar para conhecer mais sobre a história do povo cristão, suas ações religiosas, civis, culturais e sociais.
Os responsáveis devem zelar para que o uso dos arquivos da Igreja seja ainda mais facilitado, não só para os interessados que têm direito de acesso, mas também para um leque maior de pesquisadores, sem prejuízo de suas origens religiosas ou ideológicas, seguindo o melhor Tradição da Igreja, mas respeitando as devidas normas de proteção oferecidas pelo direito universal, bem como os regulamentos do bispo diocesano.
Tal atitude de abertura desinteressada, acolhimento amável e serviço competente deve ser considerada cuidadosamente para que a memória histórica da Igreja seja oferecida a toda a sociedade.”
No campo do ordenamento jurídico brasileiro as recomendações acima guardam a natureza de dever dos detentores, pois a nossa Constituição Federal agasalha o princípio da fruição coletiva do patrimônio cultural, a respeito do qual já tivemos a oportunidade de escrever [5]:
“Este princípio decorre diretamente do art. 215, caput, da Constituição Federal, que dispõe: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Como os bens culturais são, à toda evidência, ‘fontes de cultura’, o acesso ao conhecimento sobre eles deve ser assegurado à coletividade, não podendo se lhes dispensar o mesmo tratamento dado aos bens não-culturais.
Aliás, o artigo XXVII da Declaração Universal dos Diretos do Homem, já dispunha: Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. E a Carta da Organização dos Estados Americanos de 1948 também no mesmo sentido preceitua em seu art. 48:
Os Estados membros dispensarão especial atenção à erradicação do analfabetismo, fortalecerão os sistemas de educação de adultos e de habilitação para o trabalho, assegurarão a toda a população o gozo dos bens da cultura e promoverão o emprego de todos os meios para o cumprimento de tais propósitos.
Obviamente que o fato de um bem particular ser reconhecido como integrante do patrimônio cultural brasileiro não implica na sua transformação em um bem público. Mas fato é que seja a propriedade pública ou particular, os bens culturais ficam submetidos a um especial regime jurídico, integrando uma nova categoria de bens que a doutrina denomina bens de interesse público. O gozo público ou a fruição coletiva dos bens culturais materiais concretiza-se basicamente no direito de visita e no direito de informação, que devem ser assegurados à comunidade.”
Vale destacar ainda que, em nível infraconstitucional, o Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010, promulgou o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008:
Segundo dispõe expressamente o artigo 6º do Acordo:
“As Altas Partes reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro, e continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio cultural e artístico.
§ 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da cooperação, reconhece que a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste artigo deve ser salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem prejuízo de outras finalidades que possam surgir da sua natureza cultural.
§ 2º. A Igreja Católica, ciente do valor do seu patrimônio cultural, compromete-se a facilitar o acesso a ele para todos os que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos.”
Verifica-se, pois, que os antigos documentos depositados nos arquivos da Igreja Católica em nosso país são bens formalmente reconhecidos como integrantes do patrimônio cultural brasileiro (portanto, são bens de natureza difusa e fruição coletiva), devendo os seus detentores, nos termos do que preconiza a nossa Constituição Federal e ordenamento subjacente que lhe complementa, cumprirem o dever não só de organizá-los e conservá-los, mas também o de viabilizar o acesso amplo ao seu conteúdo, adotando as medidas concretas e adequadas de gestão necessárias para tanto.
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[1] VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva. 2000. p.467.
[2] Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890 – Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias
[3] Arquivo Nacional (Brasil) Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. p. 71.
[4] Item 4.1 do documento denominado “A função pastoral dos arquivos eclesiásticos”. Vaticano, 11 de março de 1997 – Prot. 274/92/118.
[5] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i. 2021. p. 75-76.
*Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor de Direito de Patrimônio Cultural e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos-Brasil).
Fonte: ConJur