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ConJur – Artigo: Direito à nacionalidade de crianças nascidas em meio à guerra – Por Márcia Elisa Abreu e Tatiana Bruhn Gomes

07-06-2022

Em fevereiro deste ano de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia, o que fez com que milhares de pessoas abandonassem o país e cruzassem fronteiras para a Polônia, Romênia, Hungria e Eslováquia ou para outras cidades do país em busca de segurança e proteção.

Um mês após o início do conflito, quase um quarto da população do país já estava deslocada, segundo informações do Acnur, (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), e, destes milhões de deslocados, a grande maioria é de mulheres e crianças, uma vez que os homens são instruídos a permanecer e lutar pelo seu país. Dessas mulheres, milhares estão grávidas ou tiveram seus filhos na Ucrânia em meio à guerra, ou nos países limítrofes, sem escolha, sem acompanhamento, jogadas à própria sorte [1]. Estima-se que mais de 63 mil bebês tenham nascido na guerra da Ucrânia nos últimos meses [2].

Para a Ucrânia, as regras são claras, filhos de ucranianos nascidos fora do país possuem o direito a nacionalidade ucraniana, mas esta não é automática. Para adquirirem a nacionalidade reconhecida necessitam de um processo para tanto, e esse processo poderá ser complicado em meio a uma guerra. A Ucrânia bem como seus países fronteiriços utilizam o princípio do jus sanguinis, pelo qual a nacionalidade é atribuída a uma pessoa de acordo com sua ascendência e origem étnica, ou seja pelo direito de sangue. Desta forma, pelo não reconhecimento de um nascimento jus solis, perpetuando-se assim o critério sanguíneo, muitas crianças nascerão apátridas, uma vez que não terão uma nacionalidade reconhecida [3].

O último censo na Ucrânia de dez anos atrás registrou 82.550 apátridas residindo no país e, segundo perspectiva do Acnur, haveria mais de 35.875 apátridas e pessoas com nacionalidade indeterminada em 2021. Desde 2014 que o número de crianças e pessoas apátridas nascidas na Crimeia, Luhansk e Donetsk tem aumentado. Há estimativas de que mais de 999 mil pessoas com idade maior de 15 anos não possuam uma carteira de identidade nacional. Frisa-se que a apatridia ainda é uma realidade injusta. Apátridas são pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. Uma das maiores razões da apatridia é a falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando da sua independência, ou por conflitos de leis e deslocamentos forçados [4].

Nesse sentido, tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto a Convenção dos Direitos da Criança estabelecem que todo indivíduo tem direito a uma nacionalidade. Nacionalidade é um vínculo jurídico que liga o indivíduo a um Estado, que desde os primórdios, conforme ensina Eric Hobsbawm desvela uma perspectiva governamental dos Estados e das sociedades, em se preocuparem com a nação e nacionalidade, ou seja, com arranjos sociais e políticos com aqueles que lhes entregam lealdade [5].

Pois bem, retornando à questão ucraniana, evidencia-se que de 10 a 20% dos ciganos não possuem documentação civil a fim de adquirir ou confirmar sua nacionalidade ucraniana, assim como também os ex-cidadãos da antiga União Soviética que não conseguiram provar residência permanente na Ucrânia em 1991. Em tais condições, por não conseguirem adquirir qualquer nacionalidade podem tornar-se apátridas e, consequentemente, repassar a apatridia para seus filhos [6].

Porquanto, é latente que a grande maioria dos apátridas que vivem na Ucrânia não tem qualquer documentação que comprove a sua situação e isso representa barreiras intransponíveis para aqueles que tentam se deslocar dentro e fora do país, impactando desta forma na sua segurança, mesmo que esta seja relativa neste momento de conflito. Essas pessoas que não conseguem comprovar residência na Ucrânia, necessariamente precisarão solicitar refúgio ou outra forma de proteção, a exemplo do que se tem visto, no formato de vistos humanitários.

Segundo a Diretiva de Proteção Temporária da UE (TPD) aplicada por diferentes países, desde 4 de março foi concedida proteção imediata na UE a cidadãos ucranianos e aqueles que tiveram proteção internacional na Ucrânia antes de 24 de fevereiro de 2022 [7].

Outra questão vital a ser observada é que, em meio a guerra e o desespero, um grande número de mulheres ucranianas estão sendo forçadas a ter seus filhos em países fronteiriços, os nascidos alhures por conta do conflito. Denota-se um elevado contingente de crianças nascendo na Polônia, onde a lei de nacionalidade é baseada na regra jus sanguinis. Porém, desde 2011 houve alteração nas regras de concessão de nacionalidade polonesa. Apesar da nova lei continuar sendo fundamentada no princípio de sangue, adotou-se recentemente também o princípio do jus soli onde se passou então a permitir que a criança nascida ou encontrada em território da República da Polônia, adquira a nacionalidade polonesa mesmo que ambos os pais não sejam nacionais e/ou se no caso forem desconhecidos. Isto traz maior segurança a prole de estrangeiros que nascem em território polonês [8].

Contudo, o mesmo não acontece na Romênia que se manifesta resiliente na adoção do critério sanguíneo, não admitindo temperanças com o critério territorial, portanto, a criança nascida na Romênia filha de pais estrangeiros não será considerada romena. Todavia, caso a criança esteja desacompanhada, e seus pais forem desconhecidos, a lei romena no seu artigo 5º a reconhece como cidadã romena [9].

Firma-se que, segundo a Unicef, até 12 de maio deste ano, mais de 912.090 ucranianos chegaram à Romênia. A cada segundo, reporta-se que uma criança ucraniana tornou-se refugiada desde o início da guerra. As estimativas apontam que 34% dos refugiados ucranianos na Romênia são crianças. Desde 24 de fevereiro, cerca de 2.700 crianças desacompanhadas adentraram em terras romenas, das quais 255 estão agora no sistema de proteção estatal [10]. Todas essas crianças refugiadas não são adotáveis, pois seguem como nacionais e cidadãs ucranianas, ou seja, elas estão sendo atendidas pelo Estado romeno a pedido do governo ucraniano, com foco numa posterior devolução ao seu país de origem, quando a situação estiver segura [11].

Destaca-se que, outro país que tem recebido muitos ucranianos é a Hungria. Apesar de sua população estar diminuindo nos últimos 40 anos, e seu povo cada vez envelhecendo mais, com uma baixa taxa de natalidade, o primeiro-ministro está convencido de que pode mudar isso em seu governo, mesmo rejeitando a imigração. A lei da nacionalidade húngara baseia-se também no princípio do jus sanguinis. A nacionalidade húngara pode ser acessada por descendência de um pai húngaro (via paterna) ou por naturalização. Uma pessoa nascida na Hungria de pais estrangeiros, não está elegível em receber tal nacionalidade. E por esse fato, algumas crianças nascidas na Hungria, filhas de estrangeiros podem chegar ao mundo apátridas, como foi o caso de um refugiado recém nascido, que foi registrado sob os termos de “nacionalidade desconhecida” [12].

Nota-se assim que face a esse universo de problemas que envolvem questões de nacionalidade, as crianças recém nascidas, filhas de pais que foram forçados a se deslocarem de seu país de origem, são as principais prejudicadas. É preocupante pois essas crianças nascerão sem uma identidade local, tampouco, constituirão vínculos imediatos com o país de nascimento e necessitarão solicitar refúgio para obterem proteção e direitos, pois não terão os direitos básicos e essenciais a uma nacionalidade, o direito que lhe dará direitos. Ademais as questões de documentações exigidas para tanto e provas neste momento crítico e imediato estão comprometidas, haja vista que seu país de naturalidade está em conflito. São os verdadeiros bebês da guerra, que desembarcam neste mundo, com um dos seus principais direitos desatendidos.

Concluí-se que a perfectibilização do Direito Internacional na prática ainda é algo distante. Mas, não custa esperarmos em Habermas, que no mundo dominado por Estados nacionais se encontre uma condição propícia para a transição da chamada constelação pós-nacional da sociedade mundial, principalmente diante de tempos tão hostis [13].

Referências

[1] ONU. Um mês após o início da guerra na Ucrânia, quase um quarto da população do país está deslocada. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Disponível aqui. Acesso em: mai. 2022.

[2] ONU. Ukraine refugee situation. Operational Data Portal. Disponível aqui. Acesso em: mai. 2022.

[3] UCRÂNIA. Law on citizenship, 2001. Law on Ukrainian Citizenship. Disponível em: https://www.legislationline.org/documents/id/7179. Acesso em: mai. 2022.

[4] ONU. More than 63.000 babies born into war in Ukraine and uncertain future in two months of fighting — Save the Children. Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários. Disponível em: https://reliefweb.int/report/ukraine/more-63000-babies-born-war-ukraine-and-uncertain-future-two-months-fighting-save. Acesso em: mai. 2022.

[5] HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. 8ª ed. Tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. São Paulo: Paz e Terra, 2020, p. 115.

[6] UNIÃO EUROPEIA. Stateless people and refugees fleeing Ukraine. EU Law analysis. Disponível em: http://eulawanalysis.blogspot.com/2022/03/stateless-people-and-refugees-fleeing.html. Acesso em: mai. 2022.

[7] UNIÃO EUROPEIA. Stateless people and refugees fleeing Ukraine. EU Law analysis. Disponível em: http://eulawanalysis.blogspot.com/2022/03/stateless-people-and-refugees-fleeing.html. Acesso em: mai. 2022.

[8] POLÔNIA. A legislação sobre a cidadania polonesa. Polish citizenship. Disponível em: https://polishcitizenship.pl/pt-pt/lei-cidadania-polonesa/. Acesso em: mai. 2022.

[9] ROMÊNIA. Romanian Citizenship Law. The Law n.21 of March the 1st 1991, regarding Romanian citizenship, republished on August 13th 2010. Disponível em: https://www.legislationline.org/download/id/5943/file/Romania_Citizenship_law_2010_en.pdf. Acesso em: mai. 2022. ONU.

[10] UNICEF support in Romania for refugee children, women and families coming from Ukraine. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Disponível em: https://www.unicef.org/romania/stories/unicef-support-romania-refugee-children-women-and-families-coming-ukraine. Acesso em: mai. 2022.

[11] UNIÃO EUROPEIA. Infographic – EU temporary protection for displaced persons. Conselho Europeu. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/temporary-protection-displaced-persons/. Acesso em: mai. 2022.

[12] ONU. Lacuna jurídica na Hungria deixa refugiado recém-nascido sem cidadania. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2011/12/29/lacuna-juridica-na-hungria-deixa-refugiado-recem-nascido-sem-cidadania/. Acesso em: mai. 2022.

[13] HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradução de Márcio Selligman-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.

Autoras:

Márcia Elisa da Costa Abreu é advogada com experiência em Direito Migratório, com especialização em Direito Internacional Público e Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Imigração, Segurança e Justiça pelo Centro de Excelência Jean Monnet da Universidade de Lisboa, monitora do Grupo de Estudos em Direito Internacional Migratório da ESA/OAB-RS, integrante da Comissão da Criim/OAB-RS e colaboradora do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire) e do Cibai Migrações.

Tatiana Bruhn Parmeggiani Gomes é advogada com experiência em questões de nacionalidade, professora de Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília), líder do Grupo de Estudos em Direito Internacional Privado e União Europeia na mesma instituição, professora convidada do curso de especialização “O Novo Direito Internacional” da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutoranda e mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora do livro “Cidadania da União Europeia no processo de europeização: em defesa da cidadania pós-nacional”, publicado pela Arraes Editores.

Fonte: ConJur