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ConJur – Artigo: Crédito de carbono enquadrado como categoria de valor mobiliário – Por Cláudio Luiz de Miranda
A disciplina regulamentar do mercado de créditos de carbono no Brasil, finalmente, teve início por meio do Decreto nº 11.075/22. A iniciativa, que atribui segurança jurídica e incentiva o desenvolvimento desse mercado, traz, contudo, algumas questões que devem ser objeto de aprimoramento.
Ponto importante — e ainda pouco explorado pelos especialistas na matéria — consiste na possibilidade de enquadramento dos ativos mencionados no aludido decreto na categoria de valor mobiliário, atribuindo-lhes, por consequência, a disciplina da Lei nº 6.385/76 e a atuação fiscalizatória, regulamentar, normativa e sancionadora da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Com efeito, ao definir o objeto do decreto, o artigo 2º desse diploma legal, estabelece que:
“Art. 2º. Para fins do disposto neste Decreto, consideram-se:
I – crédito de carbono – ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado;
II – crédito de metano – ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de metano, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado;
III – crédito certificado de redução de emissões – crédito de carbono que tenha sido registrado no Sinare;
[…]
XI – unidade de estoque de carbono – ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo da manutenção ou estocagem de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, assim compreendidos todos os meios de depósito de carbono, exceto em gases de efeito estufa, presentes na atmosfera.”
Verifica-se ser indiscutível o enquadramento do “crédito” como ativo, funcionando como bem jurídico, passível de troca e, ao representar valores, apto a circular no mercado, fomentando o desenvolvimento de ambiente propício para suas negociações. Todavia, não há referência à modalidade de ativo que tal crédito faria parte ou se seria valor mobiliário.
É importante registrar que a disciplina da matéria não foi esgotada pelo Decreto nº 11.075/22, havendo referência expressa à regulamentação a ser feita ao tema por ato conjunto dos ministros de estado do Meio Ambiente e da Economia sem, contudo, referenciar diretamente a CVM como parte dessa regulação. Ainda assim, o debate acerca de sua qualificação como valor mobiliário pode ser realizado com base nos elementos já disponíveis sobre o tema.
A questão em apreço já foi objeto de apreciação pelo colegiado da autarquia em precedente, no âmbito do qual se discutiu a caracterização das Reduções Certificadas de Emissão (RCEs) — comumente denominadas “créditos de carbono” — enquanto contratos de investimento coletivo, à luz do artigo 2º, IX, Lei nº 6.385/76.
Breve relato do precedente
Nos termos do voto do então diretor da CVM, Otávio Yazbek, no processo administrativo CVM nº RJ2009/6346 [1], as RCEs podem ser entendidas como títulos decorrentes da adoção por países com metas menos rígidas de redução de emissões de gases do efeito estufa, de projetos de redução ou remoção desses gases em seus territórios, dando origem a créditos passíveis de aquisição pelos países com metas mais rígidas para fins de atingi-las.
Tratando-se de um mecanismo desenvolvido no âmbito do Protocolo de Quioto, sua implementação prática gerou, nos diversos países signatários, dúvidas acerca da definição legal e regulatória do título, sobretudo quando se tem em vista sua negociabilidade em mercado.
No Brasil, a questão permeou, principalmente, a possibilidade desse título ser enquadrado como valor mobiliário sujeito à Lei nº 6.385/76 e às atividades de fiscalização e regulação pela CVM, discutindo-se seu enquadramento enquanto derivativo ou contrato de investimento coletivo.
O precedente em tela, de pronto, afastou a caracterização desse instrumento como derivativo [2] e passou a examinar sua qualificação como contrato de investimento coletivo, concluindo, igualmente, pela não adequação do conteúdo da RCE a esse conceito.
Nessa linha, o diretor relator comparou a situação desse instrumento com aquela verificada no âmbito das Cédulas de Crédito Bancário (CCBs) e dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs), concluindo “que se, no caso dos CEPACs ou das CCBs, foi possível, ante as condições concretas, caracterizar aqueles instrumentos como valores mobiliários, o mesmo não se pode fazer para os créditos de carbono“, com base nas seguintes justificativas:
“Primeiro porque aqui se está tratando de títulos ‘resgatáveis’ (destinados ao resgate em um determinado tipo de bem ou de direito, como acima esclarecido) e não em instrumentos geradores de um rendimento financeiro propriamente dito. No Processo CVM nº RJ 2003/499, a linha adotada pelo diretor relator foi distinta, adotando-se a interpretação de que a existência de um mercado secundário, em que se podem alienar com ganho os títulos, permitiria o reconhecimento do caráter lucrativo dos instrumentos. Entendo que esse caráter lucrativo deveria dizer respeito ao próprio título, estando diretamente relacionado à sua natureza de instrumento de investimento. Em segundo lugar, e a distanciar os créditos de carbono dos Cepacs, reforçando — agora de forma marcante — o ponto acima, deve-se destacar que, uma vez emitidas, as RCEs passam a existir desvinculadas do agente que implantou o correspondente projeto de MDL, não sendo a ele oponíveis. Em outras palavras, todos os créditos de carbono emitidos acabam sendo fungíveis entre si. Não há que se falar, assim, naquelas relações ‘de participação, de parceria ou de remuneração’. Este ponto é bem destacado no Memorando que sustenta o presente voto. O fato é que, (i) não havendo a manutenção de vínculo, em razão da aquisição de uma RCE, entre o adquirente desta e o agente econômico que implantou o projeto de MDL; e (ii) não se destinando as RCEs a corporificar um investimento propriamente financeiro, não há que se falar na caracterização dos créditos de carbono em si como valores mobiliários também por força do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76.”
O aludido precedente, em resumo, tende à conclusão de que os créditos de carbono não são considerados contratos de investimento coletivo por não serem instrumentos geradores de um rendimento financeiro propriamente dito.
É importante, contudo, ressaltar que esse entendimento deve ser avaliado à luz de cada caso concreto. Um dos fundamentos deduzidos no voto do relator para afastar a caracterização do crédito de carbono como valor mobiliário, vale lembrar, foi “não ser destinando às RCEs corporificar um investimento propriamente financeiro“, entretanto, o Artigo 2º do Decreto considera o crédito de carbono como ativo financeiro.
A esse fato, acresce-se as iniciativas recentes no sentido de criação de bolsas específicas para a negociação de crédito de carbono [3], passando a fazer com que esse ativo financeiro possa corporificar um investimento propriamente dito, por si mesmo. Há plataformas que conectam pessoas que desejam comprar crédito de carbono a outras que desejam vendê-los. Neste caso, apesar de utilizar plataforma pública, entende-se que seriam negociações bilaterais, não abertas à economia popular.
Isto posto, apesar do entendimento objetivo de não se tratar de valor mobiliário, a efetiva qualificação dependerá da análise casuística de cada crédito, inclusive no que diz respeito à forma e ao local em que poderá ser negociado.
Conclusões
O Decreto nº 11.075/22 buscou regular o mercado de créditos de carbono no Brasil, definindo o que seriam as diretrizes básicas para a sua caracterização e configuração. O decreto, todavia, não esgota a disciplina jurídica da matéria, seja por deixar ao Poder Executivo margem para regulamentação detalhada de seu conteúdo (vide artigo 8º do Decreto), seja por deixar em aberto questões importantes acerca do tema.
No que diz respeito à caracterização, ou não, desse ativo como valor mobiliário (contrato de investimento coletivo), à luz do artigo 2º, IX, Lei nº 6.385/76 — tema que não foi sequer ventilado no Decreto nº 11.075/22 — entende-se permanecer vigente o entendimento da CVM, afastando o seu enquadramento, a priori, nessa relevante categoria jurídica.
É importante registrar, no entanto, que a análise para fins de categorização do título, envolvendo a atração, ou não, da fiscalização e regulação da CVM é casuística, variando de título em título, de forma que, a depender das características específicas de cada emissão e para sua negociação, a conclusão acima poderá ser alterada.
Recomenda-se, portanto, que haja o enfrentamento adequado da matéria, com a atualização do posicionamento da CVM a respeito da matéria, à luz das novas características trazidas ao tema pelo Decreto nº 11.075/22, cotejando-se tais análises com a realidade do mercado de capitais brasileiro, por meio da análise empírica de cada título e dos impactos em potencial no mercado.
Notas
[1] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Processo CVM nº RJ 2009/6346. Relatora: Superintendência de Desenvolvimento do Mercado (SDM). Data de Julgamento: 7 jul. 2009.
[2] Em resumo, a fundamentação para essa conclusão encontra-se a seguir reproduzida: “Em linhas muito gerais – e observadas as diferenças que podem surgir quando se fala de instrumentos concretos – essa é a lógica que rege o surgimento dos instrumentos derivativos, não apenas para o hedge, mas também para a especulação, que é uma outra possível finalidade para tais operações. Ora, dizer que um determinado instrumento é um derivativo remete, então, no mínimo, àquele processo de formação de preços. Neste sentido, entendo que os créditos de carbono nada têm a ver com os derivativos. Se eles são instrumentos ‘resgatáveis’, no sentido de serem passíveis de transformação em um determinado tipo de vantagem econômica concreta, eles não são derivativos, mas os próprios ativos — inexiste ativo subjacente, sendo negociados os próprios ativos-objeto. Coisa distinta ocorreria se aqui se estivesse tratando de opções de crédito de carbono, por exemplo. Desnecessário dizer que, ao contrário do que têm afirmado alguns autores, não cabe, também, falar em finalidades de hedge quando se está tratando desse tipo tão peculiar de ativo. Isso porque um agente compra créditos de carbono, como já se viu, porque a legislação ou a regulamentação competente lhe permite utilizar este tipo de ativo como meio alternativo de cumprimento de um determinado tipo de obrigação. Não é de hedge que se cuida aqui — e gostaria de deixar tal ponto realçado ante a facilidade com que tal conceito (que tem um conteúdo técnico e cuja utilização produz importantes efeitos), vem sendo adotado nos últimos tempos, muitas vezes sem maior rigor. Entendo, desta maneira, que os créditos de carbono não são instrumentos derivativos, não se lhes podendo considerar como valores mobiliários para os fins dos incisos VII e VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76” (BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Processo CVM nº RJ2009/6346. Relatora: Superintendência de Desenvolvimento do Mercado (SDM). Data de Julgamento: 7 jul. 2009. Voto do Diretor Otavio Yazbek, p. 3).
[3] A esse respeito, destaca-se a iniciativa em desenvolvimento por parte a intenção do estado do Rio de Janeiro criar uma Bolsa de Crédito de Carbono (https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-03/rio-tera-bolsa-de-valores-para-compra-de-creditos-de-carbono)
*Cláudio Luiz de Miranda é doutorando e mestre em Direito Empresarial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e de outras instituições de ensino superior e sócio responsável pela área de Societário e Mercado de Capitais do Chalfin, Goldberg e Vainboim Advogados.
Fonte: ConJur