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ConJur – Artigo: Código Civil: vinte anos depois, regras e princípios atestam resiliência – Por Luiz Edson Fachin
Vinte anos desde a sanção transcorreram para o Código Civil. Regras e princípios atestam resiliência no Brasil de um século de codificação desde 1916.
O Código Civil é obra de um pensamento estruturado, que emerge de um sistema de normas de direito privado, correspondente às aspirações de uma dada sociedade. O Direito Civil contemporâneo, nesse influxo, é reflexo de um tempo que se firma a partir da segunda metade do século XX, e mais diretamente, entre nós, a partir da Constituição de 1988, que redemocratizou o País1.
A forma “código”, portanto, é ícone próprio do direito privado moderno, cujo “mindset” é arrostado diante dos desafios hermenêuticos da Constituição de 1988 e de uma sociedade livre, aberta, justa e plural.
Nunca é demais reafirmar que a transformação do governo jurídico do tríplice vértice fundante do privado — as titularidades, o trânsito jurídico e o projeto parental — pode ser reconhecida em duas travessias2. Encontramos a primeira no decurso de tempo contido entre o Código Civil de 1916 e 5 de outubro de 1988. A segunda ainda está em curso. Trata-se da ponte que a hermenêutica crítica está a pavimentar, descortinando o liame contido entre a codificação de 2002 que ora celebramos e a principiologia axiológica de índole constitucional.
O Código de 1916 é produto do século XIX, ainda que tenha entrado em vigor na segunda década do século XX. Já o Código de 2002, embora sancionado nos primeiros anos do século XXI, reflete o pensamento jurídico cristalizado na década de 19703.
Rememoramos o mestre Orlando Gomes, que sublinhou que a primeira etapa da travessia se cumpriu na incorporação de ideias e de aspirações da camada mais ilustrada da população, em verdadeiro descompasso entre o Direito escrito e a realidade social4.
Nada mais justo, portanto, que intentar, para a segunda travessia, que o percurso seja mais democrático, fulcrado nos princípios constitucionais, com especial ênfase para a dignidade da pessoa humana.
A abertura semântica vivenciada no meio jurídico brasileiro, a partir da década de 1970, deu ênfase à heterogeneidade social, à força criativa dos fatos e ao pluralismo jurídico, cuja síntese normativa somente se tornou possível por meio da reestruturação dos princípios.
Emerge da crescente valorização dos princípios constitucionais o farol que guia a hermenêutica do direito privado, nesta reviravolta que pôde ser alcunhada de Virada de Copérnico.
Esta Virada tem sido objeto de constantes debates no Supremo Tribunal Federal. Apenas para lembrar os desafios que essa mudança de percepção trouxe à jurisdição constitucional: ADPF 132 e ADI 4.277, que assentaram o reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar; a ADI 4.275, que reconhece a identidade de gênero como livre expressão da personalidade e a possibilidade de alteração do registro civil independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização; a ADPF 828-MC, que determinou a suspensão das ordens de despejo durante a pandemia; o RE 1.010.606, que declarou a inexistência no direito brasileiro do chamado direito ao esquecimento, ainda que, em abstrato, a discussão não tenha se encerrado; o RE 898060, que fixou tese no sentido de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios; o RE 878694, que reconheceu a inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002; o RE 1038507, que declarou a impenhorabilidade da pequena propriedade rural familiar constituída de mais de um terreno, desde que contínuos e com área total inferior a quatro módulos fiscais.
O diálogo entre a legislação civil e o direito constitucional ainda tem encontros marcados para a solução de questões relevantíssimas aos contornos dos direitos de personalidade e de propriedade: no RE 845.779, que debate o direito ao uso de banheiro público por transgêneros; ADI 5543, sobre o reconhecimento do direito à doação de sangue por homossexuais; RE 1.307.334, acerca da impossibilidade de penhora do bem de família do fiador de locação comercial; e ADPF 403, que debate o reconhecimento da criptografia como ferramenta para a proteção à privacidade e à liberdade de expressão online.
Os vinte anos de vigência do Código Civil representam, portanto, apenas o início da trajetória já pavimentada, que almeja, agora, pelos desafios do porvir. O trabalho está em permanente construção. Não há conclusão do esforço com a mera edição da nova lei. Ao contrário. O poeta Drummond já alertava: As leis não bastam.
O arcabouço teórico e legislativo somente ganha vulto na aplicação prática, que deve, necessariamente, passar pelo crivo crítico da doutrina. Assim, a dimensão prospectiva do Direito Civil toma a interpretação como questão constituinte desse mesmo Direito Civil. Haure-se das possibilidades hermenêuticas da aplicação das normas de Direito Civil a força construtiva dos fatos por intermédio da doutrina e da jurisprudência.
Este contributo os civilistas brasileiros vêm prestando, sem descanso.
Permito-me enaltecer, dentre muitos, grandes civilistas que compuseram o Supremo Tribunal Federal: Orozimbo Nonato, Hahneman Guimarães e Moreira Alves.
Na década de 1940, Orozimbo Nonato e Hahneman Guimarães, ao lado de Philadelpho Azevedo, elaboraram um anteprojeto de Código de Obrigações. Na década de 1960, Orozimbo Nonato também participou da revisão do projeto de Código Civil elaborado por Orlando Gomes. Moreira Alves é autor da parte geral do Código em vigor, fruto do trabalho da comissão elaboradora e revisora coordenada por Miguel Reale.
Os caminhos indicados pelo Direito Civil brasileiro lançam desafios. É preciso reconhecer o rearranjo social dos modelos no universo de conceitos e formas migrantes, cientes de que se deve considerar a problemática jurídica como questão social, suscetível de análise crítica de seus reflexos, não apenas na legislação, mas também na doutrina e na jurisprudência.
As duas décadas desde a sanção da Lei 10.406 configuram importante marco, que devemos reverenciar. Eis, afinal, no Código-fonte do Direito Civil clássico a tradição e o movimento que, entre sístoles e diástoles, em tudo traduz homenagem a Moreira Alves, cuja cadeira originária em Oswaldo Trigueiro tenho a honra de ocupar hoje no Supremo Tribunal Federal.
Os dias correntes, como sabemos, se põem numa plataforma complexa, volátil, incerta e ambígua, e, por isso, mesmo registrar e celebrar as duas décadas do novo Código é evento que relembra memorabilia e descortina compromissos com o futuro.
Nas décadas vindouras, o Código Civil, iluminado pelos princípios constitucionais, continuará a singrar desafios, na viagem do redescobrimento, em jornada que é permanente e se volta para o horizonte teórico e dele parte, para ampliação de confins.
Notas:
1 FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Renovar: Rio de Janeiro, 2015, p. 22.
2 Nota prévia do atualizador. In: GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. 6ª tiragem, revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 2.
3 FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Renovar: Rio de Janeiro, 2015, p. 44.
4 GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 45.
*Luiz Edson Fachin é ministro do Supremo Tribunal Federal, vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral, e formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Fonte: ConJur