Notícias
ConJur – Artigo: CNMP consagra importância do Direito Internacional dos Direitos Humanos – Por Cesar Henrique Kluge e Rafael Osvaldo Machado Moura
No último dia 28 de fevereiro, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) emitiu a Recomendação nº 96/2023 — direcionada a todos os ramos e unidades do Ministério Público brasileiro (MP) — prescrevendo a observância dos tratados, convenções e protocolos internacionais de direitos humanos, das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Inicialmente, pode-se indagar se o CNMP se limitou a dizer o óbvio, tendo em vista a gramática de direitos humanos adotada pela Constituição de 1988 e as atribuições do MP, que, por si sós, já abririam as janelas ministeriais para o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Para aqueles que entendem que se está diante de um mero truísmo sem grande relevância, é importante lembrar que nem sempre o poder do óbvio deve ser ignorado ou visto de forma negativa. Muitas vezes, o óbvio é colocado na penumbra ou deixado de lado. Assim, é necessário iluminar o que está obscurecido ou um tanto esquecido.
Essa recomendação carrega uma ideia jurídica — demonstrada em seus diversos “considerandos” — cujo tempo há muito chegou: não se pode mais, em nenhum âmbito do sistema de justiça brasileiro, deixar de considerar o Direito Internacional dos Direitos Humanos e, em especial, as diretrizes jurídicas emanadas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH).
O remédio para a ignorância são os encontros com o diferente. Por isso, ouvir com atenção o que o outro tem a dizer é fundamental. É uma forma de escutar-se a si mesmo, de descobrir as próprias falhas, incompletudes e sombras. Não é possível ser salubremente nacional sem estar sinceramente aberto ao universal, deixando-se tocar pelo que acontece em outros lugares e por outras culturas, “nem se solidarizar com os dramas dos outros povos” [1].
A coexistência de diferentes sistemas de justiça — com destaque para o nacional e interamericano — pairando sobre os países da América Latina e sobre o Brasil como consequência do funcionamento do SIDH, formado pelas CIDH e Corte IDH, tem fomentado a criação de um constitucionalismo multinível na região, corporificado pelo florescer de um Constitucionalismo Regional Transformador — também conhecido como Ius Constitutionale Commune na América Latina (ICCAL). Essa articulação de sistemas tem gerado, na prática, parâmetros jurídicos mínimos de proteção aos direitos humanos, por intermédio da coparticipação de autoridades dos sistemas nacionais de Justiça de cada país e do SIDH.
A título exemplificativo, decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal [2]; Superior Tribunal de Justiça [3] e Tribunal Superior do Trabalho [4], indicam a necessidade de os operadores do direito, incluindo os membros(as) do MP, assumirem o protagonismo que lhes cabem nesse cenário.
O MP brasileiro — que também pode ser reconhecido como um MP interamericano [5] — não pode assistir ao desenvolvimento do SIDH como mero espectador, mas deve engajar-se nessa rede dialogal, por meio do exercício do controle de convencionalidade, recebendo influência dos parâmetros definidos nesse ambiente e aportando suas contribuições para a formação dos standards comuns aos países que compõem essas esferas em articulação.
Além disso, a efetiva implementação dos parâmetros mínimos em matéria de direitos humanos, passa pela valorização e implementação das deliberações dos órgãos internacionais com atribuição para análise de violações de direitos humanos, em especial aquelas deliberações às quais o tratado internacional atribui caráter obrigatório. E, nesse aspecto, o Ministério Público tem muito a contribuir, seja no campo promocional, extrajudicial ou judicial [6].
Daí ser imprescindível aos(às) membros do MP entenderem e saberem manejar os conceitos, mecanismos e efeitos teóricos e práticos do funcionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos que podem lhes ser úteis no desempenho de suas respectivas atribuições ministeriais.
A respeito do teor da Recomendação nº 96/2023, ela pode ser vista como um passo adiante àquele dado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Recomendação nº 123/2022, de objeto similar.
Em seus “considerandos”, que traduzem o fundamento da norma, destaca-se a expressa menção ao princípio pro persona como critério hermenêutico a ser observado, tanto na fixação do sentido de determinado dispositivo normativo, quanto na solução de antinomia de normas.
O ato normativo editado pelo CNMP indica que o MP, em todas as áreas de atuação, deve considerar não só as normas imperativas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o efeito vinculante das decisões da Corte IDH (nos casos em que o Brasil é parte) e a sua jurisprudência (nos casos dos outros Estados), mas também as recomendações ao Estado brasileiro expedidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) — especialmente quanto às medidas cautelares. E a Recomendação do CNMP vai além, indicando que até mesmo declarações e outros documentos internacionais de direitos humanos, quando adequados ao caso, deverão ser levados em conta pelo MP.
A Recomendação reconheceu, outrossim, um controle de convencionalidade mais amplo, em todas as áreas de atribuição (judicial e extrajudicial), que vai além do controle normativo (leis) para alcançar todas as “práticas internas”.
Ainda, o texto da Recomendação do CNMP traz outros pontos importantes: faculta a todos e todas os e as integrantes do Ministério Público a utilização de opiniões consultivas na fundamentação de manifestações, pareceres e peças processuais ou extrajudiciais; preconiza a criação, no CNMP, de prêmio de monografias e teses relacionadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua jurisprudência; prevê a instituição de programa de residência de membros do MP na Corte Interamericana de Direitos Humanos, mediante adesão de ramos e unidades do Ministério Público brasileiro [7], bem como de projeto para divulgação e difusão dos atos da Corte Interamericana de Direitos Humanos; e, por fim, prevê a promoção de cursos, seminários e atividades de formação sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua jurisprudência.
Há que se salientar que os termos da Recomendação nº 96/2023 do CNMP não significam um bloqueio intelectual dos e das membros do MP brasileiro, que estariam forçados a acatar acriticamente todos os sentidos normativos emitidos pelo SIDH. Ao contrário, o diálogo sugerido pelo CNMP eleva em dignidade as funções ministeriais, que passam a ser exercidas por intermédio de uma sofisticada caixa de novas ferramentas jurídicas para a melhor proteção da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Valendo-se da lúcida visão de Ana Carolina Olsen e de Katya Kozicki, é possível dizer que os juízes domésticos interamericanos — e, pelos mesmos motivos, também os promotores e procuradores — possuem uma espécie de “liberdade vigiada”, que lhes dá “direito ao dissenso, porém não à indiferença” [8]. Eventual posicionamento divergente em relação à jurisprudência da Corte IDH ou às recomendações da CIDH deve ser fundamentado pelo agente ministerial de modo a se livrar do ônus argumentativo oriundo das razões de decidir do SIDH — o que deve ser feito considerando a possibilidade de o posicionamento doméstico ser futuramente sindicado pelas CIDH e Corte IDH, com possível condenação do Estado brasileiro. Assim, deve, desde já, apresentar argumentos que possam indicar à CIDH e à Corte IDH que o posicionamento interno é o mais favorável à proteção dos direitos humanos.
Pertinente, aqui, falar sobre o “diálogo antecipatório” de Gonzalo Aguilar Cavallo, isto é, o diálogo entre cortes e instituições — interamericana e domésticas — em que o juiz, o promotor ou procurador nacional devem se pronunciar antes do controle de convencionalidade efetuado pela autoridade internacional, seja em relação a temas sobre os quais o órgão internacional tenha se pronunciado anteriormente ou não [9]. Esse modo de concretizar o diálogo multinível é consectário do princípio internacional da subsidiariedade, segundo o qual os tribunais internacionais só poderão coadjuvantemente intervir após o exaurimento dos mecanismos internos de solução do problema [10]. Por isso, o sistema regional somente é acionado quando o sistema de justiça interno fracassou no dever de promover a adequada proteção do ser humano — razão pela qual este tem a possibilidade de antecipar a interpretação mais protetiva em comparação com o que tem sido fixado pelo SIDH.
Em razão disso, Antonio Tizzano aponta como realmente importante quem tem a primeira palavra, e não quem tem a última [11]. Mesmo quando já existam parâmetros fixados na matéria a ser apreciada pela autoridade nacional, esta pode operar por intermédio de uma “interpretação extensiva”, fazendo subir o nível de proteção dos direitos humanos [12].
Essa Recomendação do CNMP formaliza o necessário mergulho do MP brasileiro na lógica do pluralismo dialógico jurídico e institucional [13], visando à construção de um direito único, em permanente construção e aberto a influências multipolares. Daí falar-se em “multidimensionalidade dos diálogos judiciais no ICCAL”, de modo que os fluxos dialógicos podem correr desde a Corte IDH às cortes nacionais (top-down) ou desde as cortes internas até o SIDH (bottom-up). Por isso mesmo, essa visão pluralista se diferencia do uso do direito comparado, feito mediante a mera utilização de precedentes jurisprudenciais estrangeiros.
A promoção, fiscalização e tutela do ordenamento jurídico de proteção [14], com o domínio dos padrões internacionais mínimos em matéria de direitos humanos, pelos operadores do direito, em especial membros do Ministério Público, é um requisito essencial para a construção de uma sociedade mais justa, livre, democrática e solidária.
Enfim, essa abertura do MP brasileiro ao SIDH representa uma chamada existencial, por intermédio da qual um novo e mais arejado jeito de pensar, focado nas vítimas (num conceito amplo), dedicado a diminuir o sofrimento humano e preocupado com a democracia e institucionalidade, seja incorporado e posto em prática.
_______
[1] FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. Tipografia Vaticana, 2020.
[2] Em uma rápida consulta ao sistema de pesquisa jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, com os termos de busca “Corte Interamericana”; Corte IDH e Comissão Interamericana foram encontrados, sem análise qualitativa, os seguintes resultados: 117 decisões (Corte Interamericana); três decisões para Corte IDH e 37 decisões (Comissão Interamericana). Pesquisa realizada em 09 de março de 2023.
[3] Em uma rápida consulta ao sistema de pesquisa jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, com os termos de busca “Corte Interamericana”; “Corte IDH” e “Comissão Interamericana” foram encontrados, sem análise qualitativa, os seguintes resultados: 31 decisões (Corte Interamericana); sete decisões (Corte IDH); quatro decisões que mencionam Comissão Interamericana. Pesquisa realizada em 09 de março de 2023
[4] BELTRAMELLI NETO, Silvio; MARQUES, Mariele Torres. Controle de Convencionalidade na Justiça do Trabalho brasileira: análise jurisprudencial quantitativa e qualitativa. Revista Opinião Jurídica (Fortaleza), Fortaleza, v. 18, nº 27, p. 45-70, fev. 2020. ISSN 2447-6641. Disponível aqui. Acesso em: 09 mar. 2023. doi. Nesse artigo, os autores concluíram que a Justiça do Trabalho, à semelhança dos demais ramos do Poder Judiciário, faz uso do controle de convencionalidade de modo pontual e seletivo.
[5] A respeito do tema: KLUGE, Cesar Henrique. A atuação do ministério público brasileiro no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: perspectiva nacional e internacional. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.
[6] O Conselho Nacional do Ministério Público tem proposta de resolução em trâmite para criação do Comitê Permanente Nacional de Monitoramento da Implementação de Decisões de órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (CONADH), com a finalidade de acompanhar as medidas adotadas pelo Ministério Público para o cumprimento das decisões da Corte IDH e CIDH que digam respeito ao Estado brasileiro, bem como prestar apoio aos órgãos do MP incumbidos de tal encargo. Disponível aqui. Acesso em: 09 mar. 2023.
[7] O CNMP já possui programa de intercâmbio profissional com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, regido pelas disposições contidas no Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre o CNMP e a Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos.
[8] OLSEN, Ana Carolina Lopes; KOZICKI, Katya. O papel da corte interamericana de direitos humanos na construção dialogada do ius constitutionale commune na américa latina. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 9, p. 302-363, 2019.
[9] CAVALLO, Gonzalo Aguilar. Juiz constitucional e diálogo jurisdicional multinível: a experiência chilena. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 6, nº 1, p. 61-89, jan./abr. 2019.
[10] SHAW, Malcolm. International law. 7ª edição. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 254/255 e 730-732.
[11] TIZZANO, Antonio. Les Cours européennes et l’adhésion de l’Union à la CEDH. Rivista Il Diritto dell’Unione Europea, Torino, vol. 47, nº 1, p. 29-57. 2011.
[12] ALCALÁ, Humberto Nogueira. Diálogo Interjurisdiccional, control de convencionalidad entre los tribunales nacionales y la Corte Interamericana de Derechos Humanos en Chile. In: Estudios Constitucionales. Año 10, nº 2, 2012. P. 57-140.
[13] Sobre a superação do padrão dicotômico pela perspectiva pluralista-iterativa de pensar a soberania estatal, a Constituição e o Direito Internacional: BELTRAMELLI NETO, Silvio. Curso de Direitos Humanos. 6 ed. Sâo Paulo: Atlas, 2021, p. 105-118.
[14] De acordo com Antônio Augusto Cançado Trindade, no campo de proteção dos direitos humanos, as normas jurídicas, tanto de origem interna como internacional, que devem estar em constante interação, em prol da dignidade humana, formam um “ordenamento jurídico de proteção“. (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 506. v. I).
Autores:
Cesar Henrique Kluge é mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e procurador do Trabalho.
Rafael Osvaldo Machado Moura é promotor de Justiça do MPPR e doutor em Direito pela PUC-PR.
Fonte: ConJur