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ConJur – Artigo: Casamento no exterior: flowers, buffet e regime de bens? – Por Laís Tavares e Amanda Cañizo

20-09-2021

James e Lilian, brasileiros, se casaram em Palm Beach, Flórida. Nos Estados Unidos, não é praxe que conste da certidão de casamento o regime de bens e eles não fizeram pacto antenupcial (prenuptial agreement). Assim, a certidão americana foi transcrita em cartório no Brasil com essa lacuna: “Regime de Bens: não consta”. De volta ao país, o casal decidiu financiar um imóvel, o que não foi aprovado pelo banco em razão de não constar na certidão o regime de bens aplicável.

Decidiram, assim, ajuizar ação de retificação de certidão de casamento realizado no exterior requerendo a inclusão do regime de comunhão parcial de bens, nos termos da legislação brasileira. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), em sede de apelação, confirmou o entendimento do juízo de primeira instância e entendeu pela incompetência do juiz brasileiro para fazer a inclusão de regime de bens em certidão estrangeira, aduzindo que isso só poderia ser feito pela autoridade norte-americana que emitiu o documento original [1].

Quando se analisa a jurisprudência brasileira acerca do tema, fica evidente que o caso de James e Lilian não foi isolado. Os tribunais nacionais têm decidido por não incluir um regime de bens em uma certidão estrangeira omissa [2]. O entendimento tem sido que qualquer alteração deve ser feita primeiramente no registro estrangeiro, incluindo pedido de inserção de regime de bens aplicável, para somente depois ser averbado junto ao cartório competente no Brasil [3]. Essa é uma realidade desconhecida por muitos brasileiros que não analisam o regime de bens aplicável antes de se casarem no exterior.

A princípio, a lei brasileira parece clara: “O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal” (v. artigo 7º, § 4º, da LINDB). Contudo, deve-se considerar que existem países que não possuem um regime de bens legal ou que não incluem o regime de bens na certidão de casamento. Com a falta dessa informação e considerando que os cartorários só podem transcrever os dados constantes da certidão ou de documentos comprobatórios que a acompanhem, a certidão de casamento realizado no exterior, sem constar o regime de bens aplicável, encontra entraves na produção de efeitos jurídicos no Brasil.

Em decorrência disso, são diversas as implicações que podem afetar a vida desses casais que não têm um regime de bens definido no Brasil. Um caso real foi o anteriormente explanado, relativo à negativa de financiamento de imóvel, mas outros cenários também podem ser cogitados, como possíveis restrições para compra e venda de imóveis no geral, abertura de empresas, prestação de fiança ou aval e dificuldades na partilha dos bens em caso de divórcio ou falecimento de um dos cônjuges.

Retificação de certidões omissas quanto ao regime de bens

Quando as certidões estrangeiras não estabelecem o regime de bens, o primeiro passo a ser dado, na prática, deve ser a análise do regime de bens legal (ou default) do domicílio dos nubentes ou do primeiro domicílio dos cônjuges. Existindo esse regime, a informação pode ser apresentada ao cartório brasileiro, por exemplo, por meio de declaração emitida pela representação consular do referido país [4].

Nesse caso, pela leitura do artigo 13, §3º, da Resolução 155/2012 do CNJ, percebe-se que desde logo se afasta a necessidade de autorização judicial, possibilitando a averbação do regime mediante apresentação da documentação comprobatória [5].

Com relação aos casamentos realizados em países que não possuem um regime de bens legal (ou default; notadamente em sistemas de common law), a situação pode ser mais complexa. Nessa hipótese, uma solução prática a ser adotada é verificar, perante a autoridade consular, se no referido país haveria a possibilidade de reenvio, de forma a adotar a legislação de nacionalidade dos cônjuges (caso ambos sejam brasileiros, por exemplo) para determinação do regime de bens. Assim, a autoridade consular poderia emitir uma declaração que, por fim, levaria à conclusão de ser aplicável o regime legal brasileiro (o da comunhão parcial de bens).

Em um caso singular, o TJ-SP analisou pedido de fixação de regime requerido por um casal que se casou na Inglaterra, onde não há prévia fixação de regime de bens. A 1ª Câmara de Direito Privado entendeu que seria possível estabelecer um regime para produção de efeitos no Brasil — exatamente pelo fato de não haver um regime legal de bens na Inglaterra —, mas que não seria possível alterar a transcrição do assento do casamento em cartório, já que deve constar exatamente o que está no registro original. Merece destaque trecho do voto da relatora Christine Santini:

Em verdade, o que pretendem as partes não é ‘alterar regime de bens’. No casamento realizado na Inglaterra não houve expressa fixação do regime de bens. Naquele país, regido pela ‘Common Law’, não há a fixação prévia de um regime de bens no casamento, devendo a participação final dos aquestos ser decidida apenas quando da dissolução da sociedade conjugal.

Logo, o que pretendem os autores não é qualquer alteração de regime pré-fixado, mas em verdade estabelecer um regime na lacuna existente no assento de casamento, para acordarem o regime a ser adotado e evitar problemas na prática de negócios com terceiros. Não há nenhum indício de fraude, ao contrário. Simplesmente é conveniente que se autorize a explicitação por meio do Poder Judiciário, do regime acordado, em face da omissão do assento de casamento.

A declaração do regime vigente, portanto, é possível.

Mas, não há falar em expedição de alvará para lavratura de escritura ou sequer de alteração do assento de casamento. A expedição de alvará é desnecessária, bastando que os autores extraiam certidão de objeto e pé do processo e apresentem nos atos negociais. Saliente-se, ainda, que a alteração do assento é incabível, já que o ato foi lavrado na Inglaterra, e não no Brasil, simplesmente indicando o traslado fielmente o ato, o que é de rigor” [6].

Trata-se, portanto, de precedente interessante, apesar de a questão não estar pacificada. Verifica-se, ainda, que o tipo de pedido a ser feito perante os tribunais brasileiros (se alteração ou inclusão de regime de bens) e os fundamentos (se há ou não regime legal no país em questão) serão essenciais para eventual êxito em demanda judicial.

Alteração de regime de bens de casamento realizado no exterior

No que tange à alteração do regime de bens previsto na certidão do casamento realizado no estrangeiro, ou seja, quando não há uma lacuna, percebe-se que tais casos, a princípio, dependem de elementos especiais. Em julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), um casal conseguiu alterar regime de bens de casamento celebrado no Japão, vez que, no caso em comento, a 1ª Câmara Cível entendeu que o regime de separação de bens foi imposto aos cônjuges, sem possibilidade de escolha de outro regime no ato do casamento. Em face dessa obrigatoriedade, viu-se por bem alterar o regime de bens a pedido dos requerentes [7].

Parece-nos, ainda, que o ordenamento jurídico brasileiro, lido e interpretado de maneira unitária, possibilita a alteração do regime de bens de casamento realizado no exterior quando os cônjuges possuírem bens tão somente no Brasil e tiverem retornado para o país definitivamente. Isso porque o artigo 1.639 do Código Civil e o artigo 734 do Código de Processo Civil preveem a possibilidade de alteração de regime de bens do casamento, desde que justificada e ressalvados os direitos de terceiros.

Além disso, a autoridade judiciária brasileira tem competência exclusiva, nos termos do artigo 23, II e III, do CPC, para proceder à partilha de bens situados no Brasil em matéria de sucessão hereditária e de divórcio, separação judicial e dissolução de união estável. Desse modo, ainda que competência e legislação aplicável não se confundam no Direito Internacional Privado, questiona-se se, assim como a autoridade judiciária brasileira tem competência exclusiva para julgar casos de partilha de bens situados no Brasil, poderia ser competente também para determinar a alteração de regime de bens que influenciará diretamente na partilha desses bens.

De qualquer forma, como não há jurisprudência brasileira pacífica sobre a possibilidade de alterar, no Brasil, o de regime de bens de casamento realizado no exterior, uma solução prática seria verificar a possibilidade de alteração do regime no país onde o casamento foi realizado e, posteriormente, registrar a alteração junto ao cartório brasileiro.

Pacto pós-nupcial: até que ponto é uma solução?

É importante observar, ainda, que mesmo que os cônjuges alterem o registro de bens no país em que foi celebrado o casamento ou celebrem um acordo pós-nupcial (postnuptial agreement) validado pela legislação estrangeira, tem-se que, quando do seu registro no Brasil, eventuais bens adquiridos antes dessa alteração não serão alcançados pelo novo regime. Isso porque tal modificação só passará a produzir efeitos no território brasileiro após o trânsito em julgado da sentença que a reconhecer (ex nunc), conforme entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça [8].

Considerações finais

Conclui-se que a preparação de um casamento a ser realizado no exterior deve ir muito além da escolha de flowers e buffet: os noivos precisam analisar e, se possível, escolher qual será o regime de bens aplicável antes de se casarem. Isso porque, em alguns casos, pode ser recomendável a celebração de um pacto antenupcial (prenup agreement), para resguardar direitos e garantir o regime de bens que melhor lhes convier.

Em casos em que a escolha não foi feita antecipadamente, será importante verificar a existência de regime legal de bens no país de celebração ou do (primeiro) domicílio dos cônjuges. Ou, ainda, a possibilidade de alteração do regime no país de origem ou a celebração de pacto pós-nupcial, a fim de evitar o ajuizamento de demandas judiciais no Brasil, especialmente considerando a cautela que os tribunais brasileiros adotam quando se discute regime de bens de casamentos realizados no exterior.

Referências:

[1] TJSP, DJ 01.03.2019, Apelação nº 1017353-27.2017.8.26.0071, 8ª Câmara de Direito Privado, des. Rel. Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho.

[2] Nesse sentido, além dos julgados do TJSP já mencionados, TJGO, DJ 14.08.2018, Apelação nº 5399843.21.2017.8.09.0076, 5ª Câmara Cível, des. Rel. Marcus da Costa Ferreira; TJPR, DJ 19.05.2010, Apelação nº 631.166-8, 11ª Câmara Cível, des. Rel. Vilma Régia Ramos de Rezende.

[3] TJSP, DJ 26.01.2021, Apelação nº 1007495-79.2020.8.26.0066, 2ª Câmara de Direito Privado, des. Rel. Penna Machado.

[4] Wrobel e Boselli trazem também a possibilidade de apresentação da lei aplicável devidamente traduzida (como artigos do Código Civil do país, por exemplo) ou até mesmo certificação de dois advogados em exercício no país cuja lei seja aplicável, nos termos do artigo 409 do Código de Bustamante. WROBEL, M. C. de S.; BOSELLI, K. M. F. R. A omissão do regime de bens e a regência dos aspectos patrimoniais nos casamentos de brasileiros celebrados no exterior. In: MONACO, G. F. de C.; CAMARGO, S. de; DIZ, K. M (org.). Direito Internacional Privado: Teoria geral, processo, relações familiares. IBDIPr: São Paulo, 2021.

[5] § 3º Faculta-se a averbação do regime de bens posteriormente, sem a necessidade de autorização judicial, mediante apresentação de documentação comprobatória.

[6] TJSP, DJ 15.09.2020, Apelação nº 1021780-95.2018.8.26.0309, 1ª Câmara de Direito Privado, des. Rel. Christine Santini.

[7] TJMG, DJ 10.03.2015, Apelação nº 1.0114.12.002775-9/001, 1ª Câmara Cível, des. Rel. Armando Freire.

[8] TJSP, DJ 26.03.2020, Apelação nº 1012092-20.2019.8.26.0004, 4ª Câmara de Direito Privado, des. Rel. Alcides Leopoldo.

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Laís Silva Lopes Tavares é advogada, pós-graduanda em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), integrante do Grupo de Estudos em Direito Internacional Privado e União Europeia do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e do Projeto de Pesquisa Memória Social e Adoção Internacional da UFF, estagiária na Comissão Internacional do Estado Civil (Ciec) em 2021 e advogada internacionalista no escritório Joyce Dias Advocacia.

Amanda de Moura Cañizo é acadêmica do sexto semestre de Direito no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), bolsista de Iniciação Científica (Proic/2021) na linha de Direito Internacional e estagiária jurídica na Joyce Dias Advocacia.

Fonte: ConJur