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ConJur – Artigo: A paternidade responsável e a autodeterminação afetiva – Por Jones Figueirêdo Alves
O pai reside no direito-dever que é-lhe prescrito pela dignidade do amor que o une ao filho, e esse liame afetivo, que ordena um verdadeiro Estatuto do Pai, mais se aperfeiçoa quando a lei não expressa o conceito de pai. Pai é aquele que se a(pai)xona.[1] Sobre o que significa ser pai, melhor explica a doutrina do Direito de Família e a jurisprudência, onde a “cláusula do pai” deverá servir como uma ode à família construída (ou mesmo depois de desfeita), sempre cumprida pelos afetos paternos e por uma paternidade responsável.
A propósito, em seu veemente romance “A cláusula do pai” (“Das Andere”), recém-lançado no país (Ed. yiné, 2022), o escritor sueco Jonas Hassen Khemiri (1978-.), no estudo de carências e confusões familiares, critica a família tratada como representar os bens materiais dos seus atores e não uma digna existência de vida. Muitas vezes caótica, por memórias dolorosas, o romance “revela um dos maiores desafios da vida: como impedir que sua família defina o seu destino”.
Entretanto, o direito de família padece de determinadas perplexidades, em zonas de penumbra, sem uma resposta pronta, diante das negações recorrentes da paternidade responsável sob os mais diversos vieses, a partir de abandonos materiais e/ou afetivos:
(i) a primeira delas é lidar com a paternidade sonegada ou protraída. A abusiva resistência do investigado, em ações de investigação de paternidade, constitui uma grave postergação do primeiro dever da paternidade, o de reconhecê-la existente como um fato jurídico e biológico, com as responsabilidades dele emanadas.
Sérgio Gischkow Pereira enfrenta o tema, expressando: “É às vezes inacreditável a indevida resistência dos investigados, que buscam protelar o processo por todas as formas possíveis (,..). Sujeita-se o investigado, em tese, à indenização por dano moral ao investigante. Em circunstâncias nas quais tudo evidencia, tinha o réu condições de saber que era o pai e, mesmo assim, protrai indefinidamente o assunto, com manobras duvidosas, é viável cogitar daquele dano. Os tribunais já têm sido instados a enfrentar o problema“. [2]
(ii) a segunda diz respeito à questão das obrigações alimentares insatisfeitas. Induvidoso que no direito de família o incumprimento indevido e não justificado se apresenta como um sério problema jurídico, em privação de direito elementar dos filhos. Há, por isso, cogitar de poderes dissuasórios que possam inibir essa odiosa prática, onde a prisão civil não criminaliza, não impede reincidências de inadimplementos voluntários, e não resolve, a contento, a prioridade da subsistência familiar.
Nesse aspecto, a hipótese do abandono material recorrente, por conduta procrastinatória do devedor de alimentos, com atenção ao art. 532 do CPC, tem sido tratada, com a devida acuidade. Daniel Amorim Assumpção Neves orienta: “na realidade, melhor seria apenas relembrar o juiz de seu poder de provocar o Ministério Público a respeito do crime de abandono material, até porque a simples postura do devedor em deixar de pagar os alimentos já é o suficiente, ao menos indiciariamente, para a tipificação do crime. Nesse sentido, o caput do art. 244 do CP“. [3]
Importa, porém, assinalar que incumprimentos não se reduzem, unicamente, à ocorrência da mora, diante da dignidade do instituto dos alimentos, a tudo invocar a paternidade responsável. No ponto, entenda-se que “alimentos prestados aquém da possibilidade do alimentante amesquinham o dever jurídico e implicam em uma deserção disfarçada do apoio paterno adequado e útil“. [4]
(III) A terceira envolve o Abandono Afetivo que, a seu turno, tem recebido da jurisprudência, a importante caracterização de infringência ao dever de cuidado com os filhos. Diz-nos, Fátima Nancy Andrighi, ministra do Superior do Tribunal de Justiça, em julgado paradigma sob sua relatoria: “Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social“.
E arremata, com a advertência-aviso de consciência social sobre a paternidade responsável: “Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico“. [5]
Lado outro, empolga observar, porém, a figura do pai como expressão amorosa inconteste no contexto familiar em relação indissociável com os filhos.
De logo, às expressas, dentro das famílias monoparentais, os pais solo. Essa entidade familiar, no enfoque da paternidade, resultou normatizada nos artigos 392-B e 329-C da Consolidação das Leis do Trabalho. Nesse diploma legal, há concessão de prazo idêntico à licença maternidade ao trabalhador que adota criança sozinho. Mais ainda: decisões administrativas na esfera do poder público também contemplam idêntica extensão sufragando a prorrogação da licença ao pai, efetivando o cuidado afetivo e legal destinado ao filho, sob a premissa de atender o princípio do melhor interesse da criança e o ditado do art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Pois bem. Acerca da “Responsible fatherhood“, impõe-se refletir, neste Dia dos Pais, que o instituto jurídico, antes de mais, prestigia a sacrossanta missão da paternidade como uma realização espiritual. Responsabilidade parental extraída dos afetos, em construção causal da presença do pai e dos filhos existentes, favorecendo a família. Na figura do pai, as famílias ganham e reclamam maiores investimentos sociais e/ou políticas públicas.
Aliás, temos defendido, em doutrina:
(i) uma maior dinâmica da Lei 8.560, de 29.12.1992, em prestígio ao reconhecimento voluntário da paternidade, mediante, inclusive, incentivos fiscais ou benefícios sociais que possam ser assegurados aos pais que, notificados, manifestem-se favoráveis sobre a paternidade que lhes são atribuídas, com ou sem exame prévio de DNA, sem resistência ao processo judicial (ou administrativo);
(ii) A posse de estado de filho, a seu turno, como um instituto jurídico que, em suas características, estabelece uma paternidade de não poder ser desconstituída;
(iii) em adequação moderna do direito de família, exigir-se uma releitura (ou sua relativização) do artigo 1.626 do Código Civil, segundo o qual a sentença constitutiva da adoção implica em imediata ruptura de vínculo com os pais biológicos. Em determinados fatos da vida, estes podem continuar exercendo, afetivamente, os vínculos, em realidade fenomênica dos casos, sem prejudicialidades à adoção.
Em Pernambuco, a Lei estadual nº 13.692, de 18.12.2008, determina a isenção de emolumentos e de Taxa de Utilização dos Serviços Públicos Notariais ou de Registro (TSNR), no procedimento de averiguação de paternidade, inclusive a averbação e a certidão respectiva do ato.
Nessa linha, as percepções sobre pai e paternidade, retomam os seus modelos, para sublinhar o seu significado, entre os modos do pai participativo e o do pai provedor moral e material da família. Embora haja quem repulse as hierarquias figurativas nas funcionalidades do pai, não há negar o pai participativo, biológico ou não, como símbolo maior da paternidade e do pai contemporâneo, baseados nos cuidados do afeto e de assistência.
De efeito, o acompanhamento pelo genitor, nas unidades hospitalares, constitui, destarte, garantia ao pleno exercício da paternidade, na fase pré-natal, inserida em nossa ordem jurídica pela Lei n. 11.108, de 2005, ao dispor que a parturiente seja acompanhada pelo genitor, na maternidade.
A propósito dos modos de ser e sentir-se pai, sem ênfases das dicotomias, anota-se, por decisivo, o instituto da multiparentalidade que vem ter sua conceituação como princípio edificante de novas famílias, construindo outro estado de filiação, conjunto ao anterior, onde paternidade ou maternidade dúplices ensejam o devido reconhecimento em suas constituições afetivas.
Em tal desiderato, o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 898060, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux, em Repercussão Geral, estabeleceu o princípio da afetividade nas relações familiares, “consolidando o vínculo socioafetivo como suficiente vínculo parental”, aprovando a seguinte tese:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”
Quando o artigo 1.593 do Código Civil, por exemplo, anuncia que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem, temos por essa última cláusula, o pai civil. Aquele que resulta da socioafetividade adquirida ou da adoção constituída, valendo dizer, em casos que tais, que a paternidade socioafetiva pode preferir à biológica.
Ainda existe a figura do pai socioafetivo preordenado, como aquele que, em situação jurídica equipotente à da adoção, houve de obter junto ao pai biológico, uma paternidade compartilhada. No ponto, a dupla paternidade resulta, mais das vezes, assegurada por decisões judiciais, a exemplo da proferida na Comarca do Recife (PE), pioneira em pedido de registro civil (28.02.2012), no efeito de constar em assento de nascimento, além da paternidade biológica daquele que forneceu o sêmen, a indicação de uma segunda paternidade (socioafetiva), a do companheiro em união homoafetiva (1ª Vara de Família/Recife, juiz Clicério Bezerra).
Em termos de dupla paternidade, temos ainda uma socioafetividade paternal, na hipótese, a bom exemplo da relação enteado-padrasto, aquele havido como filho afetivo e este último, como um segundo pai, estabelecendo-se uma dupla paternidade fática.
Não custa lembrar a Lei nº 11.924, de 17 de abril de 2009, que acrescentou parágrafo ao art. 57 da Lei nº 6.015 (Lei de Registros Públicos) para a requerimento de enteado ou enteada, havendo motivo ponderável, ser autorizado, mediante averbação, o uso do nome de família (patronímico) do padrasto (ou da madrasta), com a concordância destes, e sem prejuízo dos apelidos de família.
Na teleologia da norma, inseriu-se uma dupla paternidade e o “motivo ponderável”, consiste em uma inegável socioafetividade subjacente.
Eis os pais presentes. Mais ainda, por todos: o pai ficto (art. 1.597, incisos I e II, CC), o pai póstumo (caso da fecundação artificial homóloga, por inseminação “post-mortem“, referido pelo art. 1.597, III, CC), o pai protraído (caso de filhos havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, art. 1.597, IV, CC) o pai sub-rogado (advindo da técnica de reprodução assistida por concepção heteróloga) e, ainda, o pai presuntivo do art. 1.598 do Código Civil.
Vem à colação, no tempo atual do direito de família, o instituto da coparentalidade (“coparentig“), destinado a conceituar uma nova realidade familiar, segundo a qual cuida-se precisamente de um projeto parental, sem a necessidade de formação de um relacionamento íntimo ou afetivo dos parceiros envolvidos.
Essa parceria de paternidade/maternidade, como fenômeno determinado de “família líquida”, de prática comum em outros países, decorrente da interação com redes sociais e na internet, é a busca de um parceiro ideal para gerar uma criança para ambos, sem que não necessite o casal de vínculos sexual ou afetivos preexistentes ou para o futuro. Mesmo em casos que tais, mais uma vez impera o exemplo de uma autodeterminação afetiva do pai, para mais realizar-se na pessoa dos filhos como expressão de sua continuidade.
Pontue-se, finalmente, que a paternidade não deve ser apenas encarada como uma ficção jurídica, conforme a lei (i) nos casos de inseminação artificial heteróloga, onde o filho é havido como do marido da mulher inseminada com sêmen de terceiro (a tanto prestando aquele seu consentimento) e este pai figura, no plano dos fatos, como um pai socioafetivo, ou (ii) quando a paternidade pode obter novos modelos, como o da paternidade dúplice.
Todos eles demandam os filhos, com afetos, direitos e responsabilidades.
Todos eles categorizam a paternidade como instituto jurídico de ampla latitude, diante das impactantes realidades fáticas, e que o direito de família, professado com proficiência pela doutrina do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e pela jurisprudência mais consentânea com a dignidade de todos, tem servido tutelar os interesses maiores.
Bem é certo que o direito de família é um direito transformador sempre pautado em conceitos e lógicas de contemporaneidade e de futuro.
Em sua obra Justiça para Ouriços, Ronald Dworkin sustenta que “aquilo que a verdade é, o que a vida significa, o que a moral requer e o que a justiça exige são aspectos diferentes de uma mesma grande questão”, ou seja, o valor em todas as suas formas.
Neste Dia dos Pais exorta-se que na valorização da vida das famílias: (i) todo pai reconheça seu filho, como aquele que o substitui no mundo, símbolo que o perpetua, e mais que isso, o reconheça perante o mundo, digno de uma existência que o assinale, dignamente, como filho; (ii) que todos assegurem, por afeto e responsabilidade parental, a importância existencial dos filhos, quando são ou foram e continuam sendo, ontem e hoje, todos eles também filhos; (iii) que o direito de convivência entre pais e filhos não seja apenas assegurado por decisões de Justiça, mas resultado natural de um recíproco direito personalíssimo em segurança da qualidade de vida de ambos; (iv) o apoio mútuo sirva de consagração do amor paterno-filial como reclama a consciência social dos valores morais.
Que os filhos acolham, com animação os seus pais, os admitindo, com amor e reverencia, nos lugares onde a alma (princípio vital) se encontra inteira. E que os pais desempenhem essa sua divina condição, com idêntico credo-sentimento, em inafastável compromisso de vida recíproco.
Conforme a poética de Mario Quintana, que não seja apenas um rascunho de vida. Poderá não haver tempo de passar a limpo. Hora de valorizar os filhos que conquistamos e os pais que a vida nos premiou.
Referências
[1] ALVES, Jones Figueirêdo. Pai, aquele que se a(pai)xona e o seu estatuto jurídico. In: Consultor Jurídico – ConJur em 09.08.2020.
[2] PEREIRA, Sérgio Gischkow. “Direito de Família”, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 101-102
[3] Daniel Amorim Assumpção Neves, “Novo CPC. Inovações, Alterações e Supressões Comentadas, Ed. Método, 2015, pp. 353-354.
[4] ALVES, Jones Figueirêdo. Do incumprimento das verbas alimentares em manifesta privação da família. In: Consultor Jurídico – Conjur, em 24.07.2022.
[5] STJ. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.159.242 – SP (2009/0193701-9; julgado em 24.04.2012.
*Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), integrante da Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: ConJur