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Clipping – Terra – ‘Finalmente existo’, diz apátrida que ganhou nacionalidade brasileira

05-10-2018

Pela primeira vez, governo concedeu nacionalidade a duas apátridas, as irmãs Maha e Souad Mamo

 

GENEBRA – “Não desistam do Brasil.” O recado emocionado é de Maha Mamo que, com 30 anos, finalmente ganhou a primeira nacionalidade da vida. “Hoje é meu aniversário e nasci brasileira”, disse. Pela primeira vez, o governo concedeu a nacionalidade a duas apátridas que receberam o reconhecimento por parte do Estado. O anúncio ocorreu nesta quinta-feira, 4, em Genebra, e as beneficiadas foram as irmãs Maha e Souad Mamo.

A iniciativa foi mantida em sigilo e o governo usou um evento na Organização das Nações Unidas (ONU) para informar Maha. Com uma bandeira brasileira enrolada orgulhosamente no pescoço, a nova cidadã brasileira não conteve as lágrimas. “No Brasil, pela primeira vez, andei como uma pessoa, e não como uma sombra.”

A naturalização foi entregue pelo coordenador-geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Bernardo Laferté, cujo avô era apátrida e foi acolhido no País. “O Brasil concede a nacionalidade a essas irmãs, reafirmando sua tradição de proteção de todos os imigrantes e seu compromisso de redução da apatridia no mundo”, disse o representante do governo, que tampouco segurou as lágrimas.

Segundo ele, a iniciativa é resultado da nova Lei da Migração, que entrou vigor em novembro de 2017, garantindo residência e um processo de naturalização simplificada. “A concessão de nacionalidade a Maha e Souad Mamo cumpre com o compromisso do Brasil com as Convenções da ONU sobre o Estatuto dos Apátridas e para a Redução dos Casos de Apatridia”, indicou comunicado oficial.

Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados apontam para a existência de cerca de 10 milhões de pessoas em todo o mundo sem nacionalidade. Os resultados dessa situação levam muitos a não ter documentos de identidade e, portanto, não conseguirem nem abrir uma conta bancária ou ter acesso ao sistema de saúde.

Reconhecimento. De acordo com um comunicado do Ministério da Justiça, “as duas pessoas beneficiadas e seus irmãos se encontravam em um limbo jurídico que não os permitiu reconhecimento de nacionalidade no Líbano, país onde nasceram, nem na Síria, local de origem de seus pais”. “Pelo fato de serem de religiões diferentes, os pais não tiveram seu casamento registrado na Síria. Os filhos, que nasceram no Líbano, não foram reconhecidos como libaneses nem como sírios.”

“Os primeiros problemas começaram na escola, que nos aceitou por um favor. Mas os problemas estavam só começando”, relatou Maha. “Eu tenho uma alergia e não tinha acesso aos hospitais.” Ela ainda desistiu de jogar basquete, já que não podia entrar em jogos oficiais e apenas treinava. Tampouco foi aceita na Faculdade de Medicina, por não ter documentos. Cartão de crédito, passaporte para ir viajar, carteira de motorista e até celulares estavam em nome de outras pessoas ou simplesmente não existiam.

Após entrar em contato com várias representações diplomáticas, em 2014, ela, sua irmã e seu irmão embarcaram para o País. Sem saber para onde ir, encontraram uma família em Belo Horizonte que os aceitou. “No primeiro dia, eles me disseram para tomar um café e, quando entrei na sala, havia um banquete para nós. Foi o primeiro choque cultural”, riu a nova brasileira. Ela também ironiza o fato de que, assim que recebeu documentos como refugiada, ganhou também um CPF “para poder pagar impostos”.

A procura oficial por uma nacionalidade continuou. “Nossa luta seguinte foi a de conseguir uma lei que conseguisse facilitar o processo para os apátridas. Isso conseguimos”, comemorou a nova cidadã brasileira.

Ela também já viveu a pior parte da realidade brasileira. Seu irmão foi assassinado em 2016, em uma tentativa de assalto em Belo Horizonte, provavelmente por não conseguir entender o que os ladrões pediam. “Depois daquilo, muita gente me dizia que eu tinha de sair do Brasil. Mas fiquei. O Brasil nos deu vida.”

Sua tristeza com a morte do irmão apenas foi superada depois de ela entender que tinha uma missão. “Um mês depois de sua morte, recebemos um atestado de óbito. Ele nunca teve uma certidão de nascimento. Mas, por estar no Brasil, ganhou o privilégio de um atestado quando morreu. Eu decidi lutar por isso, pela dignidade. Meu trabalho só está começando e essa é minha missão.” Em uma quinta-feira ensolarada nos jardins da ONU, ontem, ela teve algo a mais a dizer: “Eu finalmente existo.”

 

Fonte: Terra