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Clipping – Folha de São Paulo – Década mudou para sempre o entendimento de gênero e sexo
Nos anos do #MeToo, denúncias de assédio ganharam força, mas ainda há um longo caminho pela frente
Menino veste azul e menina veste rosa. Que esta frase tenha sido, em janeiro de 2019, motivo de chacota e de revolta é a prova de que a década que agora acaba mudou para sempre o entendimento de gênero e sexo.
Certamente há dez anos a maioria das pessoas acharia óbvio ver chás de bebê em que tudo é azul porque o feto tem pênis, ou tudo é rosa, se tiver vagina, como se o órgão sexual implicasse diretamente comportamentos e gostos.
A compreensão do que seja ser e comportar-se como mulher e homem, ou nenhum dos dois, está se abrindo a estudos, teorias e vivências antes às margens —encapsulados nas universidades, nos grupos feministas e LGBT ou no underground de bares e boates.
Em 2020, a discussão já se dá em torno de criar maneiras de usar a língua de forma não generificada e excludente, abrindo mão de artigos masculino ou feminino, ou de deixar de usar a palavra “mulher” ao se referir a pessoas que menstruam.
O modo como enxergamos as pessoas e a nós mesmos deixou de ser simples como o desenho em portas de banheiros e está cada vez mais claro para um número cada vez maior de pessoas que são diversas as identidades de gênero, e que elas diferem de orientação sexual.
No final dos anos 1940, a filósofa francesa Simone de Beauvoir escreveu “não se nasce mulher, torna-se mulher”, em seu “Segundo Sexo”. Nos anos 1950, o psicólogo americano John Money diferenciou sexo e gênero, este denominando os grupos feminino e masculino, marcados por um comportamento e expressão corporal culturalmente reconhecidos.
Anos depois, em 1990, Judith Butler lançou “Problema de Gênero”, em que questiona o aspecto binário –masculino ou feminino– do gênero e a ideia de que ele seja natural e biologicamente ligado a um sexo respectivo (ou seja, masculino aos homens e feminino às mulheres), mostrando ainda como o gênero é uma performance que se executa seguindo regras culturais e sociais.
Chegar ao fim de 2020 sem ter ouvido palavras como cis, trans e não binário talvez seja sinal de um isolamento social já anterior ao da pandemia. Cisgênero são as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento, baseado em seus órgãos sexuais. Transgênero são as que se identificam com o gênero oposto ao designado no nascimento. E os não binários são as pessoas que não se identificam com nenhum dos dois.
Lésbica, gay, heterossexual e bissexual nada têm a ver com isso. Designam a orientação sexual de uma pessoa, ou seja, por quem ela sente atração física e sentimental.
Mas, como tudo na internet, o debate se polarizou, e nas visitas de Butler ao país em 2015 e em 2017 houve protestos contra a filósofa. Na segunda vez, em São Paulo, manifestantes chegaram a queimar um boneco de tecido representando a pensadora. Eles estavam ali contra o que chamam de ideologia de gênero. Para os integrantes do protesto, questionar o que é homem e mulher, feminino e masculino, leva à destruição de famílias –que, segundo eles, se constitui apenas entre homem e mulher.
Esses grupos se fortaleceram em 2014, quando foram retirados do Plano Nacional de Educação, após pressões de conservadores no Congresso Nacional, os últimos dois itens de uma das metas: “A superação de desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. O plano dá as diretrizes para a área por dez anos.
À época, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) emitiu comunicado contra a inclusão nas escolas da discussão sobre gênero e orientação sexual.
Não foi nessa década que a igualdade chegou às escolas, mas ela já havia vencido batalhas importantes por direitos.
Em maio de 2011, o STF decidiu que as uniões estáveis entre casais homossexuais deveria seguir as mesmas regras e ter as mesmas consequências que as entre heterossexuais e, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça passou a proibir os cartórios de se recusarem a registrar casamentos homoafetivos.
Em junho de 2019, o STF decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia. Aguarda-se, porém, um entendimento geral sobre o uso do nome social por travestis e transexuais. Desde o ano passado um projeto de lei tramita no Senado para regulamentar o registro de redesignação sexual e alteração de nome.
Em 2016, a presidente Dilma publicou decreto que previa o respeito ao nome social na administração pública federal, e em 2019, passou a valer a mesma disposição para o judiciário. Alguns estados, como Rio de Janeiro e São Paulo, já prevêem a mesma regra em seus limites.
Num país em que “o defloramento da mulher ignorado pelo marido” foi considerado causa para anulação do casamento no Código Civil até 2003 e em que ainda se fala em crime passional, a lei do feminicídio, que passou a vigorar em 2015, foi um grande avanço. Ela prevê penas mais altas para assassinatos que tenham como motivação o fato de a vítima ser mulher.
Com as discussões sobre direitos chegando a mais pessoas, mulheres sentiram mais confiança para falar sobre abuso sexual e para procurar justiça contra seus estupradores. Em 2011, o economista e político Dominique Strauss-Kahn, considerado nome forte para concorrer à presidência da França até então, renunciou ao posto de diretor do FMI após uma acusação de estupro feita pela camareira de um hotel nos EUA desencadear uma série de investigações de abusos e envolvimento com rede de prostituição. No ano seguinte, o caso foi encerrado após um acordo na Justiça de Nova York.
No apagar das luzes da década, em fevereiro deste ano, Harvey Weinstein, um dos maiores produtores de Hollywood, foi sentenciado a 23 anos de prisão pelos crimes de violação e abuso sexual, após um caso que se arrastou desde pelo menos 2015, quando promotores alegaram não haver provas que sustentassem as acusações de estupro.
Em 2017, quando o caso foi retomado, a hashtag MeToo, usada pela primeira vez na década passada pela ativista Tarana Burke, ganhou enormes proporções.
Atos e falas violentas contra mulheres não são mais jogadas para debaixo dos panos. No dia 21 de janeiro de 2017, um dia após a posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, a Marcha das Mulheres reuniu milhões de pessoas em Washington e outras cidades. Durante a campanha, no ano anterior, gravações em que Trump se referia a mulheres de forma vulgar e desrespeitosa tinham vindo à tona.
Mulheres também enchem as ruas na Argentina desde 2018. Em protestos pela aprovação de uma lei que permita o aborto no país, elas se mobilizam empunhando lenços verdes. A lei foi aprovada pelos deputados argentinos no início do mês e será votada pelo Senado no próximo dia 28.
Ali e em protestos por toda a América Latina ecoa a canção “Um Estuprador no seu Caminho”, acompanhada de uma coreografia, criada por um grupo chileno de Valparaíso no final de 2019 em meio a protestos contra a violência a mulheres.
No Brasil, neste ano, o jogador de futebol Robinho teve novo contrato com o Santos suspenso após vir à tona um processo por estupro em Milão. Em abril de 2017, a Rede Globo anunciou no Jornal Nacional a suspensão do ator José Mayer após uma figurinista da emissora denunciá-lo por assédio.
Avançou-se muito no debate nos últimos dez anos, mas o respeito à vida de todas, todos e todes ainda tem um longo caminho a ser percorrido no país em que mais se mata travestis e pessoas trans do mundo e que assistiu a crimes bárbaros como o decepamento das mãos de Gisele Santos por seu companheiro, com um facão, na região metropolitana de Porto Alegre em agosto de 2018.
Fonte: Folha de São Paulo