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Artigo – Separação de fato e a perda da qualidade de herdeiro (parte 2) – Por José Fernando Simão
Na presente coluna, prosseguimos nossas reflexões, iniciadas em coluna anterior, a respeito do artigo 1.830 do Código Civil, que assim dispõe:
“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.
- O Código Civil de 2002 após a Emenda Constitucional 66/2010
O dispositivo deve ser relido a partir de 2010 com a alteração da Constituição da República pela Emenda 66/2010. A emenda alterou o parágrafo 6º do artigo 226, que passou a ter a seguinte redação: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
Não há mais menção à separação judicial, que era o locus natural para se discutir culpa. Essa alteração constitucional significou o banimento da culpa do sistema brasileiro para fins de debate da conjugalidade. O casamento acaba por falta de comunhão plena de vidas (artigo 1.511 do CC), e não por culpa dos cônjuges. O modelo da culpa foi substituído pelo do afeto. Por essa razão, o artigo 1.830 deve ter nova leitura, nova interpretação, retirando-se qualquer menção à culpa em matéria sucessória.
Também o prazo de separação de fato, de dois anos, não mais subsiste. Esse prazo tinha relação direta com a redação do artigo 226, parágrafo 6º da Constituição, que o exigia como mínimo para a possibilidade de divórcio direto[1]. A explicação está no próprio trâmite legislativo do Código Civil de 2002. O então projeto de Código Civil previa que o prazo para perda da qualidade de herdeiro era de cinco anos de separação de fato. A emenda 473-R, do senador Josapha Marinho, reduziu para dois anos, sob o seguinte fundamento[2]:
“Consoante o artigo, ‘somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de cinco anos’… Mas, se a Constituição estabelece que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos” (art. 226, § 6º) – não há razão de fixar-se prazo de cinco anos para reconhecimento de direito sucessório”.
Seguindo a lógica em questão, se atualmente a Constituição da República não mais exige prazos para o divórcio, não mais há prazos para a perda da qualidade de herdeiro, bastando a separação de fato.
A leitura que se deve fazer do artigo 1.830, após a Emenda 66/10, é a seguinte: “Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato”.
Em suma, basta que não mais convivam como se casados fossem em razão do fim da comunhão de vidas.
Assim, sobram críticas aos enunciados 31 e 32, aprovados pelos juízes de Família e Sucessões de São Paulo.
O Enunciado 32 traz algo totalmente ilógico: que a perda da qualidade de herdeiro do viúvo ou viúva antes dos dois anos de separação de fato ocorre se o falecido havia constituído união estável. A falta de lógica da orientação é evidente. A existência de união estável não é o fato ensejador da perda da qualidade de herdeiro, mas, sim, a separação de fato com o rompimento da convivência familiar.
Há um elemento prévio que o Enunciado 32[3] desconsidera: a necessária separação de fato para que haja união estável, e não concubinato[4]. Assim, existir ou não união estável é algo indiferente e não pode ser motivo de perda da qualidade de herdeiro, pois é consequência da real causa dessa perda: a separação de fato.
E se o de cujus teve uma união estável após a separação de fato, mas quando morreu essa união já tinha acabado? Quem seria chamado a sucessão: o cônjuge separado de fato ou quem tinha sido companheiro? Essa indagação demonstra que se confunde a causa aparente (união estável) com a causa real que é a separação de fato.
A separação de fato é razão, conforme orientação antiga e sedimentada do STJ, para o fim do regime de bens. Não se exige nem o divórcio nem a separação judicial ou extrajudicial para que o regime de bens acabe.
Em decisão recente, representando pensamento pacífico do STJ, temos a seguinte decisão:
“Nada obstante, a partir da separação de fato ou de corpos (marco final do regime de bens), os bens e direitos dos ex-consortes ficam em estado de mancomunhão – conforme salienta doutrina especializada -, formando uma massa juridicamente indivisível, indistintamente pertencente a ambos”[5].
Em idêntico sentido, temos:
“Na partilha, comunicam-se não apenas o patrimônio líquido, mas também as dívidas e os encargos existentes até o momento da separação de fato”[6].
Se a separação de fato põe fim ao regime de bens, põe fim também à qualidade de herdeiro, que é situação de natureza patrimonial.
O segundo enunciado, ou seja, o de número 33[7], confirma o equívoco do primeiro. Fala-se em abolição da culpa, mas se mantém o prazo de separação de fato de dois anos na leitura do artigo 1.830. Demonstramos o equívoco de maneira singela. Vejamos a redação original do artigo 226, parágrafo 6º da CF e sua nova redação após a Emenda 66/2010.
Em suma, em nossa opinião, ambos os enunciados não partem da premissa correta: o 32, porque traz o elemento união estável, estranho à lei, bem como à doutrina, para estabelecer a perda da qualidade de herdeiro; e o 33, por não abolir o prazo de dois anos de separação de fato em consonância à Emenda 66/2010. A Emenda 66 suprimiu o prazo de dois anos como requisito do divórcio direto. Assim, o Enunciado 33 mantém requisito temporal não mais exigido pela Constituição.
A leitura atual do artigo 1830, considerando-se ainda a possibilidade de separação extrajudicial, além da judicial[8], é a seguinte:
“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicial ou extrajudicialmente, nem separados de fato”.
Regra idêntica se aplica à união estável por força da decisão do STF no Recurso Extraordinário 878.694.
Fonte: Conjur