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Artigo – Registros sobre Registros #65

16-08-2017

453. Passemos agora a examinar, ainda que brevemente, o capítulo da qualificação registral dos títulos judiciais.

Define-se título judicial tanto a causa jurídica (título em sentido material) −ato causativo idôneo a uma inscrição no registro de imóveis−, quanto o instrumento (título em sentido formal, documento escrito e solene que contém e expressa o título material), ambos, causa e instrumento, provenientes de órgãos do Poder judiciário.

São instrumentos de origem judicial suscetíveis de aceder ao registro imobiliário os traslados de autos, as cartas de sentença, as cartas arbitrais, as cartas de adjudicação e de arrematação, os formais de partilha, os mandados, as certidões, os autos, os termos e (controversamente) os ofícios.

Já por seu aspecto material, os títulos judiciais podem ser (i) propriamente jurisdicionais (é dizer, oriundos de jurisdição contenciosa), (ii) de jurisdição voluntária e (iii) de jurisdição administrativa. Melhor trataremos deste assunto, adiante, sobretudo quanto à distinção entre as duas últimas espécies, mas, por agora, convém referir ao menos que, ao revés do que se passa com o título originário de jurisdição voluntária, o resultante de jurisdição administrativa pode revogar-se ou alterar-se em via jurisdicional contenciosa.

454. Não parece haver dissídio doutrinário em que os títulos judiciais se submetam à qualificação registral (neste sentido, p.ex., na doutrina estrangeira, brevitatis studio, Hernández Gil, Roca Sastre, Lacruz, Cossío y Corral, Cano Tello, Chico Ortiz, Martínez Santos, García Coni, Scotti, e, entre nós, por todos, Afrânio de Carvalho e Serpa Lopes).

Para o quadro brasileiro, as normas dos arts. 222, 225 e 226 da Lei n. 6.015/1973 (de 31-12), nisto que mencionam expressamente requisitos para os títulos judiciais suscetíveis de registro, implicitam a pertinência −mais que isto, a exigência− de sua qualificação.

Todavia, coisa diversa −e já aqui conflituosa− é estabelecer a compreensão com que, no registro brasileiro, deva considerar-se a qualificação dos títulos judiciais, especialmente à míngua de uma normativa posta explícita que, adicional às indicações acima apontadas, desenhem as fronteiras de um território que, reconhece-se, é inçado de riscos, por tanger a questão do exercício jurisdicional.

455. De toda a sorte, quando, em 1991, no XVIII Encontro dos Oficiais de Registros de Imóveis do Brasil −certame este que se realizou na capital das Alagoas e chamou-se Encontro “Elvino Silva Filho”−, repete-se: quando, em 1991, em Maceió, o tema da qualificação registral mereceu largos debates, ali se concluiu em que há quatro pontos fundamentais para demarcar o exame dos títulos de origem judicial, quais sejam:

(i) o da competência judiciária,
(ii) o da congruência entre o título formal e o material apresentados ao registro;
(iii) o dos obstáculos registrais; e
(iv) o das formalidades documentárias.

456. Quanto ao primeiro tema, o da competência da autoridade de que resulta o documento judicial objeto, a qualificação registrária deve limitar-se ao âmbito da incompetência absoluta, não se estendendo, pois, à relativa, porquanto esta é do interesse primacial das partes (no processo) e, ademais e bem por isto, prorrogável (veja-se, para o caso brasileiro, o que dispõe o art. 65 do Código de processo civil de 2015).

Diversamente, a incompetência absoluta, que principalmente atende ao interesse público, pode, por este motivo, declarar-se ex officio (parte final do § 1º do art. 64 do mesmo Código), e é exatamente porque a competência absoluta constitui um critério ditado pelo precípuo interesse público que se tem entendido caiba seu controle nos títulos levados a registro. Cuida-se aí de doutrina assente.

457. O tema registral da congruência do título com o processo judiciário de que é o documento resultante diz respeito à correlação morfológica entre, de um lado, o título formal apresentado a registro, e, de outro, a sentença, acórdão, decisão incidental ou ainda despacho a que se ligue esse documento.

Não se trata, pois, da congruência do julgado in se ou mesmo com a lei. Ao registrador, com efeito, não compete avaliar a correlação objetiva entre a demanda e o julgado (o que é matéria própria do princípio processual do dispositivo). Tampouco é atribuição do registrador aferir a harmonia do julgado com a ordem normativa: isto é questão de caráter jurisdicional, própria dos tribunais, e o registrador não possui função revisora nem rescisória das decisões judiciais.

Desta maneira, eivas como a de extrapetição, ultrapetição ou infrapetição não podem ser motivo para a qualificação registral negativa de títulos judiciários, por mais evidentes acaso se desvelem estes vícios.

O que compete, sim, à qualificação registral, é o exame da relação entre o título formado (documento) e o julgamento que o ensejou. Assim, por exemplo, não se admite a inscrição de uma penhora −assim se indique ela em um mandado− quando o título causativo que a vincule seja apenas um despacho de “cite-se”; ou ainda que se mande registrar o que uma decisão, ao revés, negou caiba inscrever-se, etc.

458. Neste capítulo, um problema que, embora teoricamente relevante, parece superável é o da propriedade documental dos títulos formais em ordem ao registro perseguido.

Um exemplo gráfico, no direito brasileiro, é o que se extrai do confronto entre a praxe da inscrição do arresto e da penhora em face da indicação específica de sua titulação na lei processual. Com efeito, é comum que o averbamento do arresto e da penhora se perfaça com apoio em mandado −quando não em mero ofício, que se toma à conta de mandado−, embora a vigente normativa codificada do processo civil, em seu art. 844, faça referência expressa à cópia do auto ou do termo da constrição. [Assinale-se, de caminho, que a admissão de que uma cópia(supõe-se: cópia simples, não certidão) possa propiciar um averbamento é já algo que refoge do entendimento frequente na jurisprudência administrativa de que os títulos acessíveis ao registro predial devam ser sempre originais].

459. Cabe aqui, ainda, considerar se o registrador pode qualificar o conteúdo de uma partilha consensual, objeto de sentença homologatória (ou seja, um título judicial de partilha amigável).

A matéria é controversa, mas parece que a sentença judiciária, quanto a essa partilha, sendo de mera homologação, não possui caráter decisório (neste sentido, veja-se, para o caso brasileiro, a decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 695.140, de que foi Relator o Min. João Otávio de Noronha). Sendo assim, seu conteúdo é apenas o do negócio jurídico ajustado pelas partes, de que segue ser a sentença anulável −e não objeto de demanda rescisória (vidē art. 657 do C.Pr.Civ.)−, o que, pois, leva à possibilidade de o registrador qualificar o negócio jurídico objeto da mera aprovação formal judiciária.

460. Quanto aos óbices diretamente registrais (de maneira muito frequente: trato consecutivo e especialidade, além dos que se referem aos requisitos da titulação: para o direito brasileiro, arts. 222, 225 e 226 da Lei n. 6.015, de 1973), vai de si a pertinência de sua apreciação pelo registrador.

Nada obstante, a matéria apresenta suas áreas cinzentas e conflituosas.

A partir da década de 1980 sucedeu, no Brasil, com alguma frequência, que decisões da Justiça federal entendessem apartadas da interferência do Judiciário estadual −em atuação administrativa− as questões de registro relativos a títulos provenientes da órbita judiciário-federal. Ora bem, tal o indica o art. 204 da Lei n. 6.015/1973, a decisão do processo de dúvida registrária não impede o uso do processo contencioso; é verdade que, durante algum tempo, comum foi o uso pretoriano de restringir a acepção do apontado termo processo contencioso ao âmbito das ações, reportando-o, p.ex., ao mandado de segurança, às demandas demarcatórias, às rescisórias, às reivindicatórias.

Chamado a apreciar e decidir esta questão, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, no objeto de conceito do processo contencioso referido no art. 204 da Lei de Registros Públicos, não se poderia excluir a decisão interlocutória relativa a um ato concreto de inscrição predial. E assim, a partir da extensão do termo processo contencioso para abranger tanto sentenças quanto decisões interlocutórias, passou a admitir-se, a meu ver com razão, a supremacia da hipoteticamente mais pálida das decisões jurisdicionais sobre a mais brilhante e admirável das decisões de caráter administrativo. Parece patente, ante a lei posta, o acerto da solução jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, porque não se pode admitir a inversão administrativista consistente em que a decisão jurisdicional sobre uma pretensão singular de registro se subordine à orientação administrativa do processo de dúvida.

Assinale-se, todavia, que, em síntese, firmou-se o entendimento de que uma decisão administrativa, ainda que de origem judiciária, não pode sobrepor-se a uma decisão jurisdicional, contenciosa, seja final, seja interlocutória, relativa a uma pretensão de registro. Vale dizer, não se extraia, além disto, que se haja recusado a possibilidade de qualificação registral do título judiciário, mas, diversamente, que, uma vez submetida uma qualificação (negativa) à decisão jurisdicional, prevaleça esta última, para nada importando que se trate de sentença ou decisão interlocutória.

Voltaremos ao tema no próximo artigo.

Fonte: iRegistradores