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Artigo – Registros sobre Registros #151 – Ricardo Dip

18-04-2019

(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 12)


 
784. Lê-se no vigente Código brasileiro de processo civil que a decisão judicial sempre suposto seja ela, de algum modo, uma decisão final, ainda que parcelar, tal isto o é o julgamento parcial de mérito, e condenatória em pagamento pecuniário produz a hipoteca judiciária, a despeito mesmo, quando o caso, de a condenação ser genérica (inc. I do 1º do art. 495).
 
A ideia de produção de um efeito diz com sua emergência independente de a seu propósito emitir-se um juízo específico. É dizer que se trata de um efeito secundário, reflexo, acessório, efeito anexo emanante do fato mesmo da existência da decisão (resguardadas as características de seu conteúdo, tal como ficaram elas apontadas). Ou seja, nenhuma é a necessidade de que da decisão emanante da garantia conste uma referência preceptiva ou autorizadora da hipoteca judicial: este efeito hipotecário é emanação ope legis, é, em rigor, pois, uma das espécies da hipoteca legal, assim o leciona, com sua eminente autoridade, Narciso Orlandi Neto: “Ao dispor que a decisão judicial produz a hipoteca judiciária, o Código de Processo Civil acrescenta, ao rol do art. 1.489 do CC, mais uma hipótese de hipoteca legal”, porque, prossegue o autor, essa hipoteca judiciária “nasce independentemente da vontade do devedor, por força da lei”.
 
Dois temas, sobretudo, parecem merecer aqui particular referência acerca dessa emanação da hipoteca judicial.
 
Primeiro: embora bem se diga que essa hipoteca emerja, ipso facto, da só publicação da sentença (rectius: de só publicar-se uma decisão final impositiva de prestação monetária), isto significa, de maneira mais restrita, o reconhecimento de um título dotado da potencialidade da garantia hipotecária, não ainda a atualidade do direito, atualidade que pende de  registro (em outros termos: de sua passagem da potência ao ato, mediante a inscrição). Vale dizer que a normativa de regência não reinstituiu, com o art. 495 de nosso vigente Código de processo civil, a antiga possibilidade de hipotecas ocultas. Dispõe, a propósito, o § 2º do mencionado art. 495: “A hipoteca judiciária poderá ser realizada mediante apresentação de cópia da sentença perante o cartório de registro imobiliário, independentemente de ordem judicial, de declaração expressa do juiz ou de demonstração de urgência”; assinalam-se no mesmo sentido, também as regras dos §§ 3º e 4º do mesmo art. 495:  “No prazo de até 15 (quinze) dias da data de realização da hipoteca, a parte informá-la-á ao juízo da causa, que determinará a intimação da outra parte para que tome ciência do ato” e “A hipoteca judiciária, uma vez constituída, implicará, para o credor hipotecário, o direito de preferência, quanto ao pagamento, em relação a outros credores, observada a prioridade no registro”.  Trata-se, enfim, de um direito real imobiliário que, por estar sob o modo inter vivos, exige registro para constituir-se, sem o qual registro não há o direito em ato, senão que simples potentia de sua realidade.
 
Segundo: prevê o § 1º desse art. 495 do Código processual civil que a hipoteca se produza ainda que a decisão fontal seja “impugnada por recurso dotado de efeito suspensivo” (inc. III). Ou seja, a garantia hipotecária resulta do fato do proferimento decisório sempre observados os pressupostos correspondentes, quais sejam, ser a decisão, quodammodo, final e, além disso, ser preceptiva de pagamento pecuniário, à margem de trânsito em julgado (o Código alude no § 5º do art. 495 ao eventual direito de recomposição do devedor: “Sobrevindo a reforma ou a invalidação da decisão que impôs o pagamento de quantia, a parte responderá, independentemente de culpa, pelos danos que a outra parte tiver sofrido em razão da constituição da garantia, devendo o valor da indenização ser liquidado e executado nos próprios autos”).
 
Nem sempre a lei admite efeitos secundários de uma decisão com independência da formação de coisa julgada: p.ex., o Código penal brasileiro prevê, em seus arts. 91 e 92, o que chama de “efeitos genéricos e específicos” da condenação penal, efeitos em rigor só resultantes da res iudicata criminalis (ou seja: efeitos da sentença, com a condição de que trânsita em julgado). Saliente-se, porém, que nem todos os efeitos previstos nestes dispositivos de nosso Código penal devem considerar-se reflexos ou acessórios automáticos da decisão penal-condenatória passada em julgado: persistem, entre nós, as penas acessórias, ainda que a lei as designe “efeitos específicos”, bastando ler, a este respeito, o parágrafo único do art. 92 do Código: “Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença”.
 
Notório, pois, é que ausente, na lei, a exigência de trânsito em julgado da decisão emanante da hipoteca judicial, sequer sobrestada a eficácia correspondente por eventual medida que atribua efeito suspensivo à impugnação recursória, a hipoteca judicial derive, enquanto potência ou título, da só publicação da decisão condenatória. Ainda na vigência, entre nós, do Código processual civil de 1973, decidiu neste sentido o Superior Tribunal brasileiro de Justiça, por sua 3ª Turma, sob a liderança da Relatora Min. Nancy Andrighi: “A hipoteca judiciária constitui um efeito secundário da sentença condenatória e não obsta a sua efetivação a pendência de julgamento de apelação recebida em ambos os efeitos” (julg. 6-4-2006). Não diversamente, já o Decreto n. 4.857, de 9-11-1939, nosso anterior Regulamento dos Registros, previa a inscrição condicional da hipoteca judiciária se houvesse recurso contra a sentença condenatória: § 1º do art. 274 (antes deste Regulamento, porém, Clóvis Beviláqua sustentava a necessidade de as sentenças correspondentes passarem em julgado para admitir-se a hipoteca judicial).
 
Se não cabe, agora, portanto, subordinar o registro dessa garantia hipotecária à prova da formação da res iudicata, deve, no entanto, confirmar-se a publicação do decisum, isto é, o ter-se tornado pública a decisão, ultrapassando-se seu caráter privado: basta que se publique, sem necessidade de que tenha sido intimada (ou divulgada pela imprensa oficial); é suficiente que se tenha publicado em mãos do escrivão.
 
785.  Tal ficou dito e já era assim sob o regime do Código de 1973 e ainda antes o atual Código de processo civil brasileiro admite que a hipoteca judiciária se produza ainda quando genérica seja a condenação (inc. I do § 1º do art. 495).
 
Condenação genérica é condenação ilíquida, sem indicação de valor preciso, valor pecuniário que, de comum, no entanto, deve indicar-se nas hipotecas para que a garantia não seja injusta, por excessiva, porquanto deve recair apenas sobre o quanto considerado bastante para a satisfação do crédito (cf. Clóvis Beviláqua).
 
Narciso Orlandi Neto, nada obstante as acertadas críticas que desfere contra a suposta possibilidade de as decisões genéricas produzirem a hipoteca judicial sem indicação do valor referível à garantia, entende que, por não serem líquidas essas decisões, “dispensa-se a especialização, cuja principal parte é o valor da obrigação garantida”.
 
Será mesmo isto, irresistivelmente, o que deflui do texto legal? O que o Código de processo civil de 2015 permite e já o admitia nosso direito anterior é que haja produção da hipoteca judiciária “embora a condenação seja genérica”, de modo que não se restringe às decisões líquidas a efetiva constituição da garantia mediante o registro. Mas não parece que a lei processual dispense, simpliciter, a especialização (designadamente a valorativa) prevista no art. 1.497 do Código civil (“As hipotecas legais, de qualquer natureza, deverão ser registradas e especializadas” caput). Em resumo, prevê o Código processual que a hipoteca possa ter por pilar uma decisão genérica, mas não que possa instituir-se sem a especialização imposta pelo Código civil.
 
De dois sugestivos modos para ficar em poucas opções pode remediar-se a iliquidez das decisões condenatórias, propiciando-se a especialização do valor das dívidas garantidas pela hipoteca judiciária, evadindo-se, com isto, a recriação factual de hipotecas obscuras ou gerais.
 
Do primeiro modo, tomando-se “o valor da causa para os efeitos da inscrição” (Moacyr Amaral Santos). Será um valor provisório do débito, decerto, por ao menos, de comum, abdicar da indexação e da fluência de juros, mas que eliminará o grave incômodo da indeterminação absoluta do valor garantido.
 
Do segundo modo dá exemplo o Regulamento de 1939 (Dec. n. 4.857), que previa em seu art. 247: “Considerar-se-á, também, especializada, e, apenas dependente de inscrição, a hipoteca judicial, mediante mandado ou carta de sentença, quando esta for líquida, quanto aos bens existentes em posse do condenado, ou alienados, em fraude de execução. Em caso contrário, apurar-se-á, provisoriamente, o valor da responsabilidade, sem prejuízo do processo de liquidação” (o itálico não é do original).
 
Trata-se também aí de um arbitramento provisório, decidido mediante petição do credor, fixando-se, a final, o valor do crédito, e para qual arbitramento pode o juiz valer-se de prova técnica, de tudo dando audiência às partes (cf. Carvalho Santos).
 
O mesmo Regulamento de 39 continha, no § 2º do mesmo art. 274, a previsão de o credor indicar, “em petição, os imóveis sobre os quais deve recair a inscrição, com os requisitos necessários, ficando salvo ao devedor requerer ao juiz competente a redução ou substituição dos imóveis apontados”, com que se evitaria, na prática, a indisponibilidade genérica dos bens prediais do devedor.
 
Tanto um, quanto outro destes referidos modos não parecem afastados do sistema jurídico brasileiro ante a isolada previsão de que a condenação genérica viabilize a hipoteca judicial.
 
De não ser assim, às infaustas hipóteses quer de simulação de dívidas, quer de primazia de um crédito quirografário em prejuízo de outros credores de um mesmo devedor, podem ainda agregar-se as impugnações bem sumariadas por Narciso Orlandi Neto:
 
“A especialização do valor da obrigação garantida e sua imutabilidade são considerados vitais pela doutrina. E não é para menos.
 
O problema não é tanto das partes, mas dos outros credores sem garantia, ou com garantia de grau menor. Aquele que contrata com o devedor, sabendo da hipoteca inscrita, sabe da oneração de seu patrimônio até o limite do valor da dívida. Confia, portanto, num determinado grau de comprometimento do imóvel. É evidente sua insegurança se não sabe o valor da obrigação que o bem garante.”
 
Seja, pois, com a consideração do valor da causa, seja com o da estimativa judicial provisória da dívida, parece-me sempre ser caso de exigir, para o registro da hipoteca judicial, a indicação de um valor para a garantia, observando-se, assim, o disposto no art. 1.497 do Código civil.

 

Fonte: iRegistradores