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Artigo – Qual o preço justo da terra na regularização fundiária?
Por Marcelo Honorato e Sinara Paese Honorato
Com a promulgação da Lei 11.952, de 25 de junho de 2009, o Estado brasileiro implementou o Programa de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, com o objetivo de ordenar esse espaço territorial, conferir legitimidade às ocupações produtivas e promover o desenvolvimento na região de maior desafio logístico do país.
Um ponto do programa tem sido objeto de questionamentos: o valor da terra nua deve seguir os preços de mercado, equiparando o instituto fundiário da regularização fundiária ao instituto civil da compra e venda?
Discussão
A tentativa de impor o preço de mercado ao valor da terra nua em regularização fundiária rural é um dos temas mais discutidos nas ações diretas de inconstitucionalidade da Lei 11.952/2009 (ADI 5.771, 5.787, 5.883 e 6.787).
O voto divergente do ministro Flávio Dino acolheu a tese mercantilista, em detrimento do enfoque fundiário disposto no marco legal, encampado pelo voto do relator — ministro Dias Toffoli. O julgamento será retomado em breve, uma vez que os autos já foram devolvidos após pedido de vista formulado pelo ministro Gilmar Mendes.
Encargos fundiários e a compra e venda
Nos termos da lei civil e da doutrina civilista [1], a compra e venda ocorre quando um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro (artigo 481 do Código Civil).
Porém, não é isso que ocorre na regularização fundiária.
Ao beneficiado da regularização fundiária são impostos altos encargos antes da avença e, também, para o próximo decênio do trato, exigíveis por cláusulas resolutivas com vigência por dez anos.
Na atualidade, os encargos anteriores à regularização se estendem por 17 anos, já que a Lei 11.952/2009 estabelece a exigência de posse da parcela de terras desde o ano de 2008. No entanto, não se trata de uma simples ocupação [2].
O marco legal requer que o beneficiário tenha exercido atividade produtiva direta, isto é, pessoalmente, por esse período de quase 20 anos antes da regularização (artigo 2º). Tal obrigação se estende ainda pelos próximos dez anos em cláusulas resolutivas (artigo 15), o que perfaz um encargo contínuo de aproximadamente 30 anos.
Aqui, afasta-se o simples investimento financeiro para cumprir a obrigação produtiva, pois o marco legal requer atuação pessoal e direta, que somente pode ser medida por tempo de vida do beneficiário e, não, simples aporte de recursos (artigo 5º da Lei 11.952/2009 e artigo 4º do Decreto 10.592/2020). Sim, é um preço que ultrapassa o valor mercantil.
A exigência de atividade produtiva efetiva ganha contornos especiais ao se observar que a área explorada se localiza na Amazônia Legal, onde é extremamente difícil o acesso a insumos e tecnologia. Trata-se de região destituída de rodovias com trafegabilidade segura para o escoamento da produção agrícola, isso quando estradas existem.
Também foi estabelecida a obrigação de salvaguardar as áreas de proteção ambiental (artigo 5º do Decreto 10.592/2020), logo, é dever do ocupante manter a integridade ambiental da parcela de terras por esses quase 30 anos. Mais uma vez, estamos falando de uma região onde muitos produtores rurais jamais tiveram contato com algum agente do Estado. Nessa ótica realista, o próprio ocupante é quem irá zelar pela segurança ambiental da área.
Interessante pontuar que os quase 30 anos estimados de fortes encargos, na prática, podem ser muito mais extensos. Isso porque a própria Lei 11.952/2009 admite a pendência de regularização de projetos de colonização anteriores a 1985 (artigo 40-A), ao mesmo tempo que estimativas para finalização da regularização fundiária da Amazônia chegam ao ano de 2087 [3], portanto, muitos casos estão submetidos a um século de encargos.
Numa linguagem simples, a regularização fundiária exige que o beneficiário tenha explorado (e continue a explorar) de forma pessoal por, no mínimo, 30 anos, em uma região onde frequentemente faltam recursos agrários, apoio técnico e infraestrutura mínima para dar efetividade às suas culturas.
Diante de todo esse panorama, é fácil concluir que não há mínima razoabilidade em cobrar dos beneficiados pela regularização fundiária o preço de mercado da terra nua, se os encargos exigidos são vultosos, ultrapassando a condição de meras obrigações acessórias.
Onde fica o grileiro?
É bastante comum, nas discussões sobre regularização fundiária, confundir o beneficiário do programa com o grileiro, utilizando tal associação para justificar o emprego de valor de mercado das terras sob o argumento de “fazer justiça”. Porém, trata-se de infeliz engano.
O grileiro não busca formalizar sua posse, pois oculta sua identidade. Sua prática consiste em desmatar e extrair o máximo potencial econômico da terra para, em seguida, transferi-la à interpostas pessoas. Enfim, o grileiro viola todos os requisitos legais da regularização fundiária, o que demonstra que jamais irá alcançar a regularização fundiária.
Para regularizar a posse, o cidadão terá que comprovar posse lícita e exploração direta da área, além de respeito às normas ambientais. O beneficiado da regularização fundiária não atua no mercado imobiliário especulativo de terras, visto que, nos dias de hoje, são exigidos até 30 anos de atividade pessoal na parcela.
É evidente, portanto, que a correta identificação do beneficiário da regularização figura como requisito elementar para o procedimento fundiário, o que se contrapõe à grilagem, cuja artimanha essencial é a ocultação da verdadeira titularidade.
Na realidade, o que se observa é que a regularização fundiária é uma poderosa ferramenta de prevenção à grilagem de terras, e não o contrário. A titulação das parcelas de terras permite que as estratégias de controle da Amazônia possam se efetivar, já que, sem um CPF ligado à terra, nem mesmo um auto de infração pode ser lavrado.
Renúncia de receita
Um outro argumento é apresentado para que o valor de mercado da terra nua seja imposto à regularização fundiária: a suposta renúncia de receitas.
Porém, o instituto da regularização fundiária faz justamente o contrário.
De imediato, constata-se que os valores arrecadados com a transferência de titularidade na regularização fundiária não são contabilizados em orçamento (como tributos, taxas, e contribuições), logo, na ótica do direito financeiro, não podem ser rotulados como renúncia de receita, se não há registro contábil prévio a ser renunciado.
No campo administrativo, são bens desafetados, sem utilização pública ou privada, até que se inicie a ocupação privada, geralmente, estimulada pelo próprio Estado, como os programas de colonização do Incra.
Na prática, o valor da terra nua mais atrativo impulsiona a regularização, fato jurídico deflagrador de arrecadação fiscal (como ITR, IR e ITBI) e de adequação ambiental (CAR). Regularizar o ocupante representa sua formalização sua atividade produtiva, transformando um patrimônio inativo — as terras devolutas — em ativo, gerando novas receitas tributárias.
O mercado financeiro e a capacidade agrária do país também se fortalecem, posto que a titulação permite o acesso aos sistemas de financiamento rural, retirando o produtor rural da Amazônia da economia de subsistência e, consequentemente, ampliando a produção agrária do Brasil.
Ativar as terras devolutas, regularizando as posses lícitas e produtivas, além de incrementar a tributação, é condição mínima para o controle fundiário e ambiental da Amazônia Legal, ao mesmo tempo que garante o direito fundamental dos amazônidas ao desenvolvimento firmado na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 da Organização das Nações Unidas [4].
Valor da terra nua: justiça fundiária
Ao observar o pesado conjunto de encargos exigidos dos clientes da regularização fundiária, impostos por, no mínimo, 30 anos, ao lado dos benefícios auferidos pelo Estado na área fiscal, ambiental, fundiária e de desenvolvimento econômico da Amazônia, torna-se fácil compreender a acertada decisão do legislador em facilitar a titulação, cobrando preços inferiores da terra nua aos praticados pelo mercado de terras.
Qualquer comparação entre o preço de mercado e aquele praticado em processos de regularização representa uma visão apenas mercantilista da Amazônia, herança do século 16, que exclui o valor do trabalho do amazônida — aquele que aceitou o desafio de produzir em território carente do mínimo apoio do Estado.
Sob essa ótica, os valores de titulação devem ser suficientemente atrativos, fixados em patamares mínimos, a fim de fomentar a regularização, equilibrando os elevados encargos exigidos dos produtores rurais e, ao mesmo tempo, possibilitando maior arrecadação tributária, além de prover o controle ambiental e fundiário.
Certamente, há absoluta injustiça fundiária em qualquer tentativa de comparar o valor da terra nua do mercado imobiliário com aquele fixado na regularização fundiária, pois são institutos de naturezas distintas, com finalidades diversas e sem mínima identidade que permita tal comparação.
A cada produtor rural beneficiado pela regularização fundiária, nasce um ponto de desenvolvimento responsável na Amazônia — esse sim, um preço inestimável para a nação e para o planeta.
[1] VENOSA, Sílvio de Sálvio. Direito civil: contratos. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2020, v.3.
[2] SANTOS, Marcos A. P. Amazonia Legal e regularização fundiária: comentários à Lei nº 11.952/2009. 1. ed. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2017, p. 92.
[3] HONORATO, Marcelo. (2021). A regularização fundiária da Amazônia: o direito ao desenvolvimento e as críticas de organizações internacionais não governamentais. Revista CEJ. Disponível aqui.
[4] Aprovada pela Resolução ONU 41/128. Disponível aqui.
Fonte: Conjur