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Artigo: Primeiras impressões sobre o Provimento 83 do CNJ, sobre filiação socioafetiva – Por Érica Barbosa e Silva

23-08-2019

A filiação socioafetiva, fruto do crescente reconhecimento do afeto como valor jurídico, está sendo paulatinamente construída no sistema brasileiro. Nesse sentido, a edificação do reconhecimento da paternidade socioafetiva tem tido diversos balanços e contrapesos, com muitos avanços e críticas pelo caminho, mas sempre buscando atender o melhor interesse da criança.

O tema não é novo. Mencionado por vezes nas Jornadas de Direito Civil, diversos enunciados doutrinários foram elaborados, enaltecendo a importância da parentalidade socioafetiva e a necessidade da sua regulamentação (Enunciados 103 e 108, I Jornada, 2002; Enunciado 256, III Jornada, 2004. A crescente defesa doutrinária do instituto chegou aos e. Tribunais e encontrou franca acolhida (STJ, REsp 234.833/MG, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, QUARTA TURMA, julgado em 25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 276; REsp 709.608/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009 e REsp 1.259.460/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 29/06/2012).

Com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2016, firmou a tese sobre a igualdade da filiação socioafetiva frente à filiação biológica, reconhecendo efeitos jurídicos à multiparentalidade, bem como a possibilidade de vínculos diversos: “o espectro legal deve acolher tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos quanto àqueles originados da ascendência biológica, por imposição do princípio da paternidade responsável, enunciado expressamente no art. 226, § 7º, CF.” (RE 898060/SC, rel. Ministro Luiz Fux, j. 22.9.2016). Certamente, esse entendimento foi algo determinante para a desjudicialização do instituto, ainda pela força da orientação expressa do Novo CPC (art. 3º, §§ 2º e 3º, NCPC).

Em 2015, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM já tinha formulado Pedido de Providências n.º 0002653-77.2015.2.00.0000, solicitando a regulamentação administrativa, junto ao Registro Civil, que se consolidou em 14/11/2017, com o Provimento 63 da Corregedoria Nacional de Justiça.

Segundo o procedimento estabelecido, o Registrador Civil deveria colher a manifestação dos interessados, com a rigorosa a conferência dos documentos pessoais do requerente e demais envolvidos, bem como a certidão de nascimento do filho reconhecido, e ainda:

Informar às partes que o ato é irrevogável (art. 10, §1º);

Se o requerente é maior de 18 (dezoito) anos (art. 10, §2º);

Se não são irmãos ou ascendentes (art. 10, §3º);

Se há diferença de idade no mínimo de 16 (dezesseis) anos entre o requerente e o filho reconhecido (art. 10, §4º);

Se não há pedido de adoção (art. 13);

E, principalmente, sendo o filho reconhecido menor, realizar a coleta da anuência dos pais biológicos do registrado (art. 11, § 3º)

e, tendo ele mais de doze anos, o seu consentimento (art. 11, § 4º).

Não sendo possível a manifestação de qualquer dos envolvidos, abre-se a necessidade de chancela judicial (art. 11, § 6º).

Com o ato, o filho reconhecido passa a ter todos os direitos legais, inclusive sucessórios, em igualdade com todos os demais filhos, sem qualquer distinção, cabendo ao Registrador Civil informar às partes.

Suspeitando de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado de posse de filho, fundamentando a recusa, o Registrador Civil não pratica o ato, devendo encaminhar o pedido ao juiz competente (art. 12).

Já não era polêmica a gratuidade do procedimento, pois pacificada pelo Provimento CG/SP n. 40/2017.

O Provimento n. 63, por sua vez e como já delineado no título deste artigo, foi objeto de modificações e alterações, a partir de sugestões apresentadas à Corregedoria Nacional, tendo sido editado o Provimento n. 83 pelo E. Conselho Nacional de Justiça, em 14 de agosto de 2019.

O primeiro destaque, no âmbito do Provimento n. 83, é a impossibilidade do reconhecimento socioafetivo de crianças menores de 12 (doze) na esfera administrativa (art.10). Com isso, busca-se evitar a indevida utilização do instituto da socioafetividade para enquadrá-la em situação típica da chamada adoção à brasileira, minimizando situações indesejáveis e preservando a correta utilização daquele instituto.

O reconhecimento da paternidade socioafetiva, sobretudo de crianças de tenra idade, poderiam favorecer fraudes, sequestros, comércio de crianças e a chamada adoção pronta, com a burla ao cadastro nacional de adoção.

O segundo destaque é a modificação das provas, fortalecendo uma busca objetiva, e tem a finalidade de resguardar a atuação extrajudicial, pois pode o Registrador Civil se apoiar em tal regramento para aprofundar a colheita probatória e exigir documentos que agora estão expressos.

Trata-se de rol meramente exemplificativo, permitindo que quaisquer dos documentos citados possam ser apresentados em conjunto ou isoladamente, ou ainda com outros não mencionados, restando ao Registrador Civil a análise quanto à idoneidade necessária para embasar o pedido.

Permanece, no novo Provimento, o fortalecimento da atuação registral, ao estabelecer que a ausência dos documentos mencionados não impede o reconhecimento, cabendo ao Registrador Civil explicitar os motivos do seu convencimento que justificam o ato (art. 10-A, §3º). Já a necessidade de preservar os documentos que consubstanciam o pedido é reforçada pela exigência de sua manutenção em arquivo da serventia.

Vale destacar a publicidade, caracterizada pela estabilidade e exteriorização social, também deve ser especificamente aferida (art.10-A). Trata-se da posse de estado de filho.

O Código Civil, no art. 1593, acolhe a noção de que há parentesco civil no vínculo parental proveniente da paternidade socioafetiva, que é consolidada pelo conhecimento de todos (exteriorização) e tempo (estabilidade). O filhodesfruta de uma verdade social que não corresponde à situação jurídica, sendo que essa aparência pode gerar direitos e obrigações. A posse de estado de filho não se estabelece com um fato, como o nascimento, mas na manifestação reiterada de vontade.

É justamente por essa razão que as entrevistas a serem realizadas pelo Registrador devem ser aprofundadas, permitindo a verificação dos elementos constitutivos dessa relação.

Agrega-se, igualmente, segurança jurídica ao procedimento, mediante seu encaminhamento ao Ministério Público, regularizando-se o expediente, pois, em caso de dúvida ou suspeita de fraude, o juiz corregedor permanente, em regra, já solicitava a manifestação do parquet.

Vale destacar que tal exigência deve ser atendida apenas se o reconhecido for menor de 18 (dezoito) anos, pois está expresso na justificativa do Provimento n. 83 que será plena a aplicação do reconhecimento extrajudicial da parentalidade de caráter socioafetivo para maiores de idade, cravando a diferença entre os procedimentos.

Com razão tal diferenciação foi feita, pois o reconhecimento do menor deve ser cercado de cautelas, decorrente da proteção integral (art. 227, CF). Já para o reconhecimento do maior basta que a manifestação de vontade das partes, plenamente capazes para o ato, seja livre e esteja em perfeita sintonia com a legislação vigente, o que deverá ser analisado pelo Registrador. Justamente por isso a oitiva do Ministério Público não será necessária.

Por outro lado, na verificação da posse do estado de filho, pode o Registrador achar necessário um dilatado conjunto probatório, incluindo a oitiva dos pais biológicos. Vale lembrar que na adoção do maior o consentimento dos pais biológicos não é necessário porque encerrado o poder familiar (arts. 1630 e 1635, III, CC). Contudo, na condução do expediente, caberá ao Registrador Civil analisar o caso e encaminhá-lo de acordo com suas convicções.

Questão bastante controvertida, agora enfrentada, é o reconhecimento socioafetiva bilateral, o qual não poderá ser realizado no âmbito extrajudicial, pois está vedada a via administrativa para o reconhecimento múltiplo, com dois pais e duas mães no campo filiação (art. 14, §1º). Assim, o procedimento ficou restrito para incluir apenas um ascendente socioafetivo, seja materno ou paterno.

É certo que os novos arranjos familiares, mais calcados em valores humanos e solidários, prestigiam a afetividade em contraposição ao biologismo, sobretudo gerando direitos e obrigações de relações consolidadas pelo tempo.

Com as modificações do Provimento n. 83, a Corregedoria Nacional de Justiça acresce requisitos importantes e fortalece a atuação registral, que, ao lado do Ministério Público, atuarão no tocante a este instituto, proporcionando segurança jurídica e cautela na regularização, de modo a ser amplamente incentivado, mas não indistintamente concedido.

Érica Barbosa e Silva é mestre e doutora em Direito Processual pela USP. Professora convidada em cursos de pós-graduação lato sensu. Pesquisadora. Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo). Conciliadora. Oficiala de Registro Civil em São Paulo – SP.

Fonte: ConJur