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Artigo – O preço vil na execução extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóvel. Mito ou lenda urbana?
Por Mauro Antônio Rocha
Leilões extrajudiciais seguem regras da lei 14.711/23, assegurando valor justo e segurança jurídica.
Em artigo recentemente publicado no Migalhas1 os excelentes André Abelha e Umberto Bara Bresolin discorreram sobre as execuções de dívidas com garantia imobiliária, questionaram provocativamente “se a arrematação do imóvel por menos do que 50% do seu valor caracteriza preço vil e invalida o leilão extrajudicial” e, para concluir, sugerem que, nesse caso, a venda por preço inferior ao justo legal é um mito. A nosso ver, por ser impossível desde a vigência da lei 14.711/23, a venda por preço vil na execução da garantia fiduciária não é mito, e sim, lenda urbana – balela que se espalha rapidamente como verdade.
- A alienação fiduciária de bem imóvel para a garantia da concessão de financiamento imobiliário em geral surgiu entreposta entre as garantias arroladas no art. 17 da lei 9.514/1997 e admitidas para as operações realizadas no SFI – Sistema de Financiamento Imobiliário. A alienação fiduciária de bem móvel, com procedimentos específicos, já era há muito tempo conhecida do mercado financeiro e a de bem imóvel, embora como negócio contratual atípico já era, ainda que de forma irregular e incipiente, praticada pelo mercado imobiliário e, nesse sentido “a doutrina o não desconhecia de todo e os tribunais embora com certa relutância e alguma vacilação entenderam que não seria uma figura contratual contraria ao nosso sistema”.2
Foi assim que, ao criar o Sistema de Financiamento Imobiliário, a referida lei “instituiu, em capítulo próprio, a alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, definindo generalidades, características jurídicas, âmbito de aplicação, procedimentos específicos e adequados de reconhecimento da quitação da dívida pelo fiduciário e da execução extrajudicial no caso de inadimplemento da obrigação pelo fiduciante”3. Seu conceito está contido no art. 22 da citada lei como sendo “o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.”
1.1 O instituto foi estruturado de maneira a atender às necessidades e condições essenciais do sistema de financiamento criado, apontadas no art. 5º da lei, especialmente quanto à reposição integral do valor emprestado, remuneração do capital e a capitalização dos juros, todas de observação obrigatória para a pactuação, com detalhamento, prévia e amplamente debatido pelos mercados financeiro e imobiliário.
Na regulamentação o Banco Central do Brasil estipulou as condições de proteção do capital, geralmente utilizadas no mercado de crédito imobiliário, como a adoção de quotas máximas de financiamento em relação ao valor de avaliação do imóvel, aferição da capacidade financeira do tomador e limitação de percentual da responsabilidade mensal do devedor destinada ao pagamento das parcelas assumidas, contratação de seguros de danos físicos ao imóvel e de morte e incapacidade civil do tomador, dentre outras.
Demais disso, o instituto permite à entidade financeira vistoriar e avaliar o imóvel oferecido como garantia, definir unilateralmente o valor pelo qual será recebido em garantia, o prazo de pagamento e os valores máximos de mútuo concedido, assim como, da parcela mensal, de maneira que, como urdida a operação, não se apurará perda financeira por conta da eventual execução, exceto em consequência da incompetência na contratação, ocorrência de sinistros de força maior, como as enchentes enfrentadas pelo Estado do Rio Grande do Sul em 2024 ou, ainda, de má-fé ou imprevidência do fiduciante que implique na demolição, desmoronamento ou contaminação do prédio ou do terreno objeto da garantia.
1.2 Em contrapartida a lei garantiu ao fiduciante a resolução contratual e recobro da propriedade ao final do pagamento, assim como – e principalmente – no caso de inadimplemento e consolidação da propriedade, que o imóvel seja vendido em público leilão, mediante procedimento justo e transparente que possibilite, na medida do possível, o pagamento integral da dívida e a recuperação dos recursos aplicados pelo fiduciante na frustrada aquisição do bem.
O leilão público adotado para a realização do ativo consolidado por conta de inadimplemento contratual e mora absoluta tem como pressuposto a oferta de venda ampliada pela publicação de editais em mídia impressa e virtual de grande alcance, capaz de multiplicar a ciência da venda aos interessados e, consequentemente, os lanços concorrentes, garantindo equilíbrio e justiça na transação .
É a esses dispositivos legais e regulamentares que se referem os doutrinadores quando destacam a “maneira equilibrada” da proteção estabelecida com o objetivo de desenvolver o mercado imobiliário e resguardar com comedimento os direitos dos financiadores e dos financiados.
- Ocorre que, no mundo real, a partir de 2004 permitiu-se a extensão da garantia fiduciária para obrigações em geral, abrangendo operações financeiras e não financeiras diversas, contratadas com base em premissas sem proporcionalidade razoável entre os valores da dívida e da garantia. Também, no início da década de 2010, registrou-se um reconhecido “boom imobiliário” que distanciou enormemente os valores contratuais dos preços efetivamente praticados no mercado, derrubando as simetrias e o equilíbrio arquitetado pelos legisladores.
2.1 Exemplificando, para melhor compreensão: uma hipótese de execução extrajudicial de imóvel adquirido antes do “boom” por R$ 1 milhão, para a cobrança do saldo devedor calculado em R$ 750 mil, levado a leilão pelo valor contratual atualizado de R$ 1,15 milhão já revisado pelo IGPM que, em avaliação técnica atingiria valor de mercado entre R$ 3 e 4 milhões na data do leilão.
Evidentemente que, aplicados os critérios legais estruturados para atender a financiamentos imobiliários, o preço vil já estaria plenamente configurado na oferta de venda para o primeiro leilão – ao menos nos sentidos ético e econômico. Foi exatamente para afastar essa absurda defasagem – e para evitar a massa de ações judiciais dela decorrentes – que as entidades financeiras se apressaram a fazer inserir na lei de regência o dispositivo que permite utilizar o valor da base de cálculo do ITBI recolhido na consolidação da propriedade como alternativa de apuração do valor de venda do imóvel em leilão.
2.2 Tal como, na hipótese de garantia de operações diversas, é bastante comum que um contrato de home equity albergue uma operação de empréstimo de R$ 250 mil garantido fiduciariamente por imóvel avaliado em R$ 1 milhão.
É compreensível que a extensão da alienação fiduciária para a garantia de transações de outras ordens, destituídas das características ressaltadas das operações de financiamento no SFI e ricas de outras peculiaridades como a pluralidade de contratos, multiplicidade de devedores, interesses diferenciados, terceiros garantidores, profusão de bens para garantia de dívida única, interface com transações societárias, entre outras, tenha passado a exigir a conformação da garantia e a dispensa das proteções amarradas dos procedimentos originais.
Daí que a precariedade do texto moldado em justa medida para aplicação aos negócios jurídicos tratados naquele diploma legal, isto é, aos contratos firmados “no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário” tenha se mostrado insuficiente para as “operações em geral”, demandando alterações legais, às vezes desencontradas e que colocam em risco as razões jurídicas de sustentação do instituto aos seus contornos originais.
2.3 Até a promulgação da lei 14.711/23, o “marco legal das garantias”, apesar de definidos na lei de regência os preços mínimos de venda em cada um dos leilões, havia a possibilidade de arrematação do imóvel pelo valor da dívida, muitas vezes em montante percentualmente irrisório face do valor de avaliação ou mercado do imóvel, justificando a existência do debate sobre a prevalência do CDC ou do CPC sobre a legislação especial e a busca do cancelamento do leilão extrajudicial e da anulação da arrematação.
- Com a redação atual, alterada pela lei 14.711 em 20 de outubro de 2023, o art. 27 e seus parágrafos 1º e 2º da lei 9.514/1997 determinam que – embora a propriedade plenamente tenha sido transmitida ao credor fiduciário com a consolidação da propriedade – o imóvel seja ofertado para venda em público leilão, no prazo de 60 dias da data da averbação, por montante não inferior ao valor estipulado no contrato de alienação fiduciária, devidamente revisado conforme critérios também ali indicados ou, caso o montante convencionado assim apurado resulte inferior ao valor utilizado como base de cálculo para apuração do ITBI exigível na consolidação, por este último.
3.1 Na hipótese de insucesso no primeiro leilão público, o imóvel será reposto à venda em segundo leilão, realizado nos quinze dias seguintes, por montante mínimo igual ou superior ao valor total da dívida garantida, acrescido das despesas e encargos legais.
3.2 Na ausência de lance vencedor no segundo leilão – se for a execução extrajudicial decorrente de débitos contraídos por força de contrato de financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor – a dívida será considerada extinta e inaplicável a apuração de saldo devedor remanescente, ocorrendo a recíproca quitação, para ficar o credor investido da propriedade plena, sem qualquer outra condição, e da livre disponibilidade em relação ao imóvel.
3.3 Em todas as demais modalidades de financiamento, empréstimo ou negócio jurídico não financeiro, na falta de lance vencedor no segundo leilão, o credor fiduciário poderá, a seu exclusivo critério, aceitar lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem.
3.4 Aqui, se houver a arrematação e o produto obtido for insuficiente para o pagamento integral da dívida, acrescida das despesas e dos encargos legais, o devedor permanecerá obrigado pelo pagamento do saldo remanescente, que será cobrado por ação de execução e corresponderá ao valor atualizado da dívida deduzido do valor proporcionado pelo lance vencedor.
3.5 Na ausência de lance superior à metade do valor de avaliação do bem, ou de recusa de oferta recebida, o credor ficará investido da propriedade plena, sem qualquer outra condição, e da livre disponibilidade em relação ao imóvel, além de exonerado da obrigação de indenizar benfeitorias ou prestar contas ao fiduciante. Nesta condição, o saldo devedor remanescente para efeito de execução judicial será apurado pela dedução do valor correspondente ao referencial mínimo para arrematação (metade do valor de avaliação) do valor atualizado da dívida.
- De outro lado, averbada a consolidação da propriedade ocorre uma sutil inversão de posições, em que o bem objeto da garantia passa à propriedade plena do credor fiduciário que obtém a integral satisfação do crédito exequendo – em nada prejudicada pela obrigação de oferecer o bem à venda em leilão – enquanto o fiduciante torna-se credor da realização tempestiva da garantia, do recebimento do valor excedente apurado no leilão e da prestação final de contas.
Diferentemente do que ocorre no leilão judicial realizado para a venda de bem de terceiro, objeto de penhora, onde o montante arrecadado com a alienação retorna ao patrimônio do executado em substituição do bem imóvel e ali permanecerá constrito para ser utilizado na satisfação da dívida; na execução extrajudicial de garantia fiduciária, ao se realizar o leilão público, estar-se-á procedendo à venda de bem próprio – vale dizer, de propriedade plena do ofertante – exclusivamente para obtenção do dinheiro destinado à reposição do fluxo financeiro do contrato rompido e o produto arrecadado sucederá o bem imóvel no patrimônio do mesmo vendedor/ofertante.
4.1 Daí, ser possível afirmar que o conceito legal de preço vil é inaplicável à execução extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóvel e que a eventual aceitação de lance ofertado por valor inferior ao mínimo expressamente determinado caracterizará descumprimento de obrigação legal pelo leiloeiro e/ou vendedor e configurará a fraude, seja contra a execução, contra credores, tributária ou de outra ordem, com imputação da responsabilidade pelo ressarcimento das perdas e danos causadas ao fiduciante diretamente e a possíveis terceiros indiretamente, entretanto, o leilão regularmente realizado não será necessariamente anulado, nem se obstará a transmissão da propriedade ao arrematante.
4.2 Destarte, essa venda do bem por valor inferior aos mínimos expressamente afirmados pela lei poderá revelar-se incompatível ou inadequada ao valor de mercado, porém não se conceituará, pelas razões de direito acima referida, como venda à preço vil no sentido jurídico-processual firmado no parágrafo único do art. 891 do CPC, tão somente no sentido estritamente econômico do termo.
- Finalmente, e reiterando, a ausência de qualquer permissivo legal para a venda do bem pelo credor fiduciário em leilão público por valor inferior aos mínimos expressamente estabelecidos no art. 27 da lei 9.514/1997 (inclusive quanto ao limite mínimo opcional de metade do valor de avaliação), tornou impossível que a alienação possa caracterizar o preço vil, de forma que o eventual descumprimento dos preceitos legais configurará a fraude, cabível a aplicação do parágrafo único do art. 30 da lei 9.514/1997, ação indenizatória por danos materiais e morais. Afinal, nas palavras de Abelha e Bresolin no artigo citado, “na execução extrajudicial de crédito garantido por alienação fiduciária […] é a legislação especial que dá a última palavra sobre o mecanismo de apuração do preço vil. Legem Habemus”.
1 ABELHA, André e BRESOLI, Umberto Bara. Alienação Fiduciária, hipoteca e o mito do preço vil. MIGALHAS, ed. 16/9/2025.
2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 4ª ed. 1978, p. 360.
3 ROCHA, Mauro Antônio. Alienação Fiduciária de Bem imóvel. Da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. Leme (SP): Mizuno. 2ª ed., 2024. P. 23
Fonte: migalhas