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Artigo – O caso da suspensão da CNH por dívida e o mínimo existencial – Por Ricardo Diego Nunes Pereira
Lê-se a seguinte notícia[2]: “STJ permite retenção de CNH, mas impede suspensão de passaporte por dívida. De acordo com o ministro Luís Felipe Salomão, relator do processo, bloqueio da carteira de motorista de devedor não fere direito de ir e vir”. Por outro lado, segundo o mesmo tribunal superior, a medida restritiva não se aplicaria ao caso de suspensão de passaporte de devedor, pois, “por mais legítima que seja, a prática não pode atropelar o devido processo constitucional, menos ainda desconsiderados direitos e liberdades previstos na Constituição”[3].
O objetivo deste artigo é demonstrar, normativamente e hermeneuticamente, que ali, no caso da suspensão da CNH, também se aplica a mesma conclusão do STJ para o passaporte.
Para tanto, devem ser relembrados alguns conceitos da dogmática e hermenêutica jurídica, a fim de que a assunção aqui da carga argumentativa (topoi-Alexy), em função do princípio da inércia (topoi-Perelman), esteja de acordo com aquilo considerado adequadamente jurídico, numa acepção de integridade e coerência do Direito (topoi-Dworkin). Evita-se, com isso, aquilo chamado de interpretação-aplicação em solipsismo antinormativo do Direito (topoi-Streck), isto é, o objetivo a ser perseguido deve desbocar em um agir não discricionário na acepção normativa.
No presente case, a tendência deve ser o argumento de princípio como argumento de Direito[4], pois repousado em direito fundamental constitucional: o direito à proteção ao mínimo existencial da pessoa humana.
Uma advertência epistemológica: não se está a tratar, sequer, de colisão de princípios, pois há norma-regra explícita ao caso e com densidade principiológica inerente e já para pronto atendimento normativo em interpretação-aplicação. Por isso, não haverá incurso em proposta de resposta por dimensão de peso entre fundamentos de princípios colidentes, na forma da teoria de Dworkin[5], muito menos na busca de uma norma de direito fundamental atribuída, como propõe Alexy[6] no caso da aplicação da tese especial para ponderação em colisão de direitos fundamentais, insista-se, principiológica.
Não é o caso. Em verdade, por um movimento de compreensão normativamente adequada (círculo hermenêutico, de Gadamer), deve ser notado que já há princípio-na-norma-regra com a previsão expressa (de tal norma-regra) no artigo 833, CPC/2015, c/c artigo 6º, CF/88 — e, portanto, nem sequer se necessita de abordagem de norma-princípio-tendente-a-uma-norma-fundamental-atribuída. Não há otimização a ser ponderada, pois tal otimização fundamental já o foi inserida no bojo da norma-regra processual e constitucional. Basta, por tal interpretação normativa adequada já atribuída, aplicar idem adequadamente.
Então, o fator de proteção ao mínimo existencial faz-se presente, com a atribuição categórica prevista nos citados dispositivos normativos (consistência da juridicidade, advinda do efeito irradiante dos direitos fundamentais na perspectiva objetiva[7]): norma-regra já atribuída, no artigo 833, CPC/2015; e mínimo existencial como princípio subjacente-na-norma-regra do artigo 6º, CF/88 (integridade-coerência do Direito, cf. Dworkin[8]).
O conceito de mínimo existencial cai útil, a essa altura do discurso: “O princípio da dignidade da pessoa humana assume, no que diz com este aspecto, importante função demarcatória, podendo servir de parâmetro para avaliar qual o padrão mínimo em direitos sociais (mesmo como direitos subjetivos individuais) a ser reconhecido”[9].
Apreendida a carga axiológica da proteção ao mínimo existencial (princípio derivado do princípio-mor dignidade humana), observe-se que, como princípio, já subjaz a norma-regra do artigo 833, CPC/2015, c/c artigo 6º, CF/88, não necessitando, aqui no case, de qualquer modelo de ponderação, como dito. Assim, é por proteção ao valor do mínimo existencial que o artigo 833 do CPC/2015 prevê as hipóteses de manutenção de algo a favor do devedor, pelo menos minimamente, com objetivo fincado em sua existência através dos direitos constitucionais previstos no artigo 6º, CF/88: “A educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância”.
Por sua vez e destarte, o artigo 139, IV, CPC/15, embora com abertura hermenêutica, jamais poderia violar a integridade-coerência posta no arcabouço normativo acima desenhado. Clarividente, a semântica “determinar todas” não permite, por uma hermenêutica jurídico-constitucional adequada, a determinação de todas as medidas possíveis. Seria uma abertura a um agir discricionário, ao nível do voluntarismo ou solipsismo tão advertido por Lenio Streck em Verdade e Consenso[10]. Ao contrário, o objetivo, também por óbvio, é um agir normativo não discricionário.
Seria como se pudesse ter uma carta branca[11], pelo artigo 139, IV, CPC/15, para argumentos do tipo fraco[12], não tendentes a uma correção ou justificação normativa adequada, a exemplo: se não pode pagar dívida, não pode comprar roupa (que se lhes cacem algumas roupas); se não pode pagar dívida, não pode almoçar três vezes ao dia (que se lhes cacem uma ceia), devendo ainda selecionar os lugares mais baratos. Ou seja, determinar “todas as medidas” contém em si o parâmetro hermenêutico “determinar todas as medidas… normativamente adequadas”.
Pareceria, com a concessa venia, quase que um tipo de coerção indireta, mas sem qualquer substrato normativo adequado, seja por inadequação processual (artigo 833 do CPC/2015, c/c artigo 5º, LIV, CF/88), seja por inadequação valorativa constitucional (artigo 6º, CF/88). Veja-se, com Lenio Streck e Dierle Nunes, pleiteando a retirada da roupagem normativa inadequada do artigo 139, CPC/2015:
O dispositivo deixaria de ser embasamento para medidas arbitrárias e autoritárias de restrição de direitos fundamentais, com o propósito utilitarista de satisfação de obrigações pecuniárias e tornar-se-ia fonte de uma satisfação processual-jurisdicional sofisticada e comparticipativa dos direitos. O perigo é o artigo 139, IV, ser transformado em instrumento de um quase desforço físico, só que com autorização judicial[13].
A problemática dos excessos de valores atuais da sociedade (a tal modernidade líquida, na sociologia de Bauman, ou o pamprincipiologismo, na jurídica de Streck[14]), advindos de uma massificação e repetição de uma filosofia de consumo individualista, pelo que o que vale hoje talvez amanhã, não, assim como o excesso de princípios no Direito, tem uma consequência nefasta: perde-se a hierarquia de valores pelas múltiplas ofertas de sistemas de sentido. Uma desconstrução do indivíduo e do sistema, inclusive jurídico, pelo próprio excesso e solipsismo, já que o universal (normativo) e hierárquico (normativo) perde sentido de ser. Em palavras mais diretas: cada um puxa seu valor e encontra referência em algum ponto do marketing consumista, desconstruindo e fragmentando o sistema de referência global. Esse o motivo da importância de uma resposta normativamente adequada.
Na decisão judicial que, em determinado processo judicial, suspende a CNH por dívida, a lógica normativa adequada, pelo que trazido supra, tem dois dimensionamentos: um derivado da análise normativa vazia do artigo 139, CPC/2015, ou pelo menos preenchida por discurso de efetividade executiva; outro, com análise normativamente preenchida pelo artigo 833, CPC/2015, c/c artigo 6º, CF/88, ambos já justificados principiologicamente pelo mínimo existencial.
A primeira análise pode ser assim posta, como consta de decisão judicial de determinado caso concreto, que ampliou a restrição não só para caso da CNH, mas também para passaporte:
Se o executado não tem como solver a presente dívida, também não recursos para viagens internacionais, ou para manter um veículo, ou mesmo manter um cartão de crédito. Se porém, mantiver tais atividades, poderá quitar a dívida, razão pela qual a medida coercitiva poderá se mostrar efetiva (…) defiro o pedido formulado pelo exequente, e suspendo a Carteira Nacional de Habilitação do executado M. A. S., determinando, ainda, a apreensão de seu passaporte, até o pagamento da presente dívida[15].
A segunda dimensão pode ser resumida da seguinte maneira: na decisão, pode-se apontar um grande problema de lógica categórico-normativa condicional (justificação interna, cf. Alexy em Teoria da Argumentação Jurídica[16]). Isso porque considera que 100% da atividade de viagem (passaporte) e transporte (carteira de motorista) valeria como deleite extremo, quando há um mínimo controlável (quanto?) que usa para o próprio mínimo existencial: viagem (de negócios? renda? lazer?) e transporte (ao trabalho? descanso?). E aí, o problema: como comensurar esse mínimo inafastável por lei através da decisão judicial? Irá interpor um censor que diga “se usar o carro para trabalho, pode, para viagem de férias, não”? Colocar uma observação nisso na carteira de motorista para a Polícia Rodoviária Federal fiscalizar a intenção de uso para produção para o trabalho (aspecto do mínimo existencial normativo) ou para deleite por uma moral-voluntarista expurgável (aspecto do “não pagou a dívida, fica sem deleite”)? E o deleite não seria aspecto de um ócio criativo[17] também inserido no mínimo existencial? O próprio mínimo existencial contém, em si, cláusula de maximização, isto é, de que seja sua proteção maximizada pelo poder público (verticalidade dos direitos fundamentais) e pelo setor privado (horizontalidade dos direitos fundamentais)[18].
A justificação externa, nos termos da mesma Teoria da Argumentação de Alexy, seria, aqui, o uso da argumentação dogmática e hermenêutica pelas previsões semântico-sistemáticas do artigo 833, CPC/2015, c/c artigo 5º, LIV, e artigo 6º, CF/88. O conteúdo do instrumento geral de poder de efetivação do artigo 139, IV, CPC/2015, está jungido aos dispositivos retromencionados, até mesmo pelo elemento normativo-valorativo contido na palavra “necessária”, ou seja, devendo ser normativamente adequada (“determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias”).
Então: a previsão da norma-regra de proteção contra restrição e penhora (CPC/2015, artigo 833, IV e V, especificamente), com base em princípio já subjacente em seu teor e advindo de comando constitucional, para a proteção do mínimo existencial com pretensão de maximização — mínimo existencial como princípio subjacente-na-norma-regra (CF/88, artigo 6º) —, bem como o respeito ao devido processo legal na aplicação dos instrumentos legais (CF/88, artigo 5º LIV), traduzem, todos esses dispositivos, uma resposta normativa adequada para a densificação do instrumento geral de poder de efetivação do artigo 139, IV, CPC/15, controlando-o normativamente.
Por tudo isso, a resposta normativa adequada, hermeneuticamente e constitucionalmente, é pela impossibilidade de suspensão de título permissivo do cidadão (CNH) para obtenção de renda, trabalho e (até) lazer, pois contém dentro de si, tal título, um mínimo existencial na representação da maximização dos direitos fundamentais previstos no artigo 6º, CF/88.
O assunto em torno dessa e de outras medidas restritivas com base no artigo 139, IV, CPC/15, está, atualmente, na pauta do STF, ADI 5.941, cuja matéria foi considerada, em decisão publicada no DJe de 21/5/2018, pelo ministro relator Luiz Fux, como “de grande relevância, apresentando especial significado para a ordem social e a segurança jurídica”.
Em tempos em que “exercer a crítica no direito é uma tarefa difícil, principalmente em terrae brasilis”[19], a conclusão normativa adequada, pelo que visto, não pode (nem deve, juridicamente) ser outra, sob pena de violação da coerência sistêmica valorativa posta no Código de Processo Civil e, mais ainda, na Constituição: o mínimo existencial irradiado no ordenamento jurídico.
[2] Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/stj-ordena-devolucao-de-passaporte-a-devedor-que-teve-o-documento-retido/>. Acesso em: 01 jul. 2018.
[3] Cf. STJ, RHC 97.876, Min. Rel. Luis Felipe Salomão – Quarta Turma, j. 05/06/2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jun-05/apreender-passaporte-sanar-dividas-fere-direito-locomocao>. Acesso em: 01 jul. 2018.
[4] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. IX e XIV.
[5] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[6] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017.
[7] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
[8] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[9] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 36-37.
[10] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[11] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 25 ago. 2016, Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio>. Acesso em: 01 jul. 2018.
[12] Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
[13] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. op. cit.
[14] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, op.cit.
[15] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-10/pt-questiona-trecho-cpc-autoriza-retencao-documentos>. Acesso em: 01 jul. 2018.
[16] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
[17] No sentido da necessária higienização corporal e mental inerente ao aspecto humano, bem trabalhado, sociologicamente, no livro de Domenico de Masi, O Ócio Criativo.
[18] No mesmo sentido: CLÈVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, 54/28, p. 239-252, jan./mar. 2006.
[19] STRECK, Lenio Luiz. Ministro equivoca-se ao definir presunção da inocência, op.cit.