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Artigo – O casamento gay e a tirania da maioria – por José Antonio Lima
O debate sobre a união igualitária na Austrália rifa a dignidade da comunidade LGBT e faz emergir uma onda de homofobia
Em setembro, a Austrália deve realizar um plebiscito via votação pelos correios no qual a população será convocada a dizer se aprova ou não a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Será um momento emblemático não só para este país da Oceania, um dos mais desenvolvidos e igualitários da atualidade, mas também para uma discussão relevante em todo o mundo: devem os direitos das minorias ser submetidos aos desejos da maioria?
A ideia do plebiscito é da coalizão parlamentar encabeçada pelo Partido Liberal, do primeiro-ministro Malcolm Turnbull. Apesar do nome, a sigla é a principal força conservadora do país, e alguns dos partidos aliados a ela são abertamente reacionários. Antes de assumir o governo, Turnbull defendia que o Parlamento australiano mudasse a legislação, permitindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas uma vez no poder passou a adotar a linha majoritária de seu grupo político.
Turnbull fez o mesmo no que diz respeito aos direitos dos imigrantes, trocando as críticas às políticas chauvinistas de seu antecessor, Tony Abbott, por uma retórica do tipo “Austrália em primeiro-lugar”, ao estilo de Donald Trump. Contribui para a guinada o fato de a coalizão liderada por Turnbull ter maioria mínima na Câmara e no Senado, e portanto estar fragilizada. Assim, o premier é constantemente alvejado por críticas das alas mais conservadoras do bloco.
Depois dos estudantes estrangeiros, parte dos quais perdeu em maio o direito de continuar no país após a graduação, a depender da profissão escolhida, a próxima vítima da conjuntura política australiana é a comunidade LGBT.
Ao lançar o plebiscito via postal, em 9 de agosto, Turnbull barrou o avanço de um projeto apresentado por dois senadores de seu partido, Dean Smith e Trent Zimmerman, que previa a legalização do casamento igualitário. Disse que se o plebiscito resultar em um “sim” ao casamento igualitário, a legislação poderá avançar no Parlamento, mas que se o resultado for “não”, tudo continuará como está.
Essa postura, além do próprio lançamento do plebiscito, faz com que boa parte da comunidade LGBT da Austrália tenha a impressão de que o governo está rifando seus direitos civis em troca de ganhos políticos.
À risca da lei, o plebiscito não é obrigatório nem vinculativo. Isso significa que só votará quem quiser e que o resultado não determinará uma eventual mudança na legislação. A promessa de Turnbull, de que o projeto pela legalização só avança se houver um “sim” da população, deixa o jogo desigual, no entanto. Isso porque o voto “não” pode ser vinculativo na prática, uma vez que manterá o casamento entre pessoas do mesmo sexo proibido, enquanto o voto “sim” pode apenas fazer tramitar um projeto de legalização – que ainda precisaria da aprovação dos parlamentares.
Mais que isso, a comunidade LGBT da Austrália está consternada pois o debate a respeito do plebiscito está trazendo à tona uma significativa quantidade de discursos de ódio, graças à intensa campanha dos grupos contrários à legalização, feita em tons vitriólicos.
O Lobby Cristão Australiano (ACL), um grupo de pressão política, prometeu usar toda a gama de recursos disponíveis na campanha e afirmou que a votação é sobre “liberdade de expressão”, pois “não há ameaça maior à liberdade de consciência e à liberdade de expressão do que o casamento de pessoas do mesmo sexo”. Argumento semelhante foi defendido por Alex Hawke, vice-ministro da Imigração.
Tony Abbott, o antecessor de Turnbull, defendeu o voto “não” para acabar com a onda do “politicamente correto”. Outros têm argumentos homofóbicos mais evidentes. A ex-presidente da Câmara Bronwyn Bishop, por sua vez, afirmou que a legalização do casamento igualitário poderia abrir o caminho para legalizar o sexo com animais. O ex-deputado do Partido Liberal Chris Miles planeja imprimir milhares de panfletos afirmando que filhos de casais homossexuais “têm mais chance de usar drogas, ficar desempregados e sofrer depressão” e que os pais heterossexuais “minimizam os abusos e a negligência” contra as crianças.
O movimento a favor da legalização está, em contrapartida, dividido. Os parlamentares da coalizão governista favoráveis ao casamento igualitário se encontram acuados pela pressão reacionária contra Turnbull. Os partidos de centro-esquerda e os grupos ativistas são contra o plebiscito, mas estão divididos entre participar da campanha pelo “sim” ou boicotar a votação.
O ex-ministro da Suprema Corte australiana Micharl Kirby, abertamente gay, está no último grupo. E disse ao jornal Sydney Morning Herald temer o efeito da campanha pelo “não” na comunidade LGBT. “Esta [campanha] afetará muito os jovens homossexuais e reforçará sentimentos de baixa auto-estima e sentimentos que sua comunidade os odeia”, disse.
Ditadura da maioria
A análise do cenário político australiano indica que a única “salvação” dos movimentos contra o casamento igualitário é a chamada ditadura da maioria. Ou melhor, a esperança é uma mobilização pesada para demonstrar de maneira artificial um suposto sentimento contrário ao casamento gay.
Trata-se de uma discussão que remete aos primórdios da democracia moderna. Pensador do século XIX que examinou a Revolução Francesa e o nascimento do regime constitucionalista norte-americano, o francês Alexis de Tocqueville destacou que a “essência” do governo democrático era a “soberania absoluta da maioria” e alertou contra a “tirania da maioria”. Diante desta preocupação, salientou a importância dos chamados pesos e contrapesos em um sistema democrático, do estado de direito e do papel contramajoritário do Judiciário.
O debate pode parecer antiquado, mas é extremamente atual. O caso da Suíça é didático. O rico país europeu foi um dos últimos do continente a autorizar o voto das mulheres em nível nacional, o que ocorreu apenas em 1971, em um referendo. Antes, a legalização do voto feminino era sistematicamente rejeitada em consultas populares nas quais apenas os homens votavam. Em âmbito estadual, continuaram existindo restrições ao voto feminino até 1990, quando a Suprema Corte forçou todas as regiões do país a cumprirem a diretriz federal a respeito do voto das mulheres.
Em 2009, o “majoritarismo” do sistema político suíço novamente produziu uma violação de direitos humanos. Nas urnas, os suíços votaram para proibir a construção de minaretes, as torres de oração das mesquitas. A vitória da proibição ocorreu graças a uma firme mobilização da direita xenófoba, que instigou o medo na população ao confundir islã e terrorismo. O “fantasma” foi tão bem criado que os suíços ignoraram a realidade: quando o referendo foi realizado, havia apenas quatro mesquitas com minaretes no país todo, e nenhum dele realizava as convocações para as orações, usuais em países de maioria muçulmana.
No Brasil e nos Estados Unidos, o Judiciário foi essencial para garantir os direitos de minorias. Nos EUA, em 2015, a Suprema Corte derrubou todas as leis estaduais que restringiam o casamento apenas a uma união entre homem e mulher, afirmando que tais legislações eram inconstitucionais.
No Brasil, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável de pessoas do mesmo sexo. Dois meses depois, uma pesquisa mostrou que a maioria dos brasileiros (55%) era contra o casamento igualitário. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obrigou os cartórios a converter a união estável em casamento.
Justamente pela tendência tirânica da maioria, raros são os casos de direitos de minorias que avançaram quando os responsáveis pela decisão eram da maioria. Em 2007, Portugal descriminalizou o aborto para gestações com menos de dez semanas. Em maio de 2015, a Irlanda aprovou o casamento de pessoas do mesmo sexo em referendo.
A Austrália, muito provavelmente, poderia entrar para esta lista. Além dos políticos conservadores que defendem o casamento igualitário, assim como a maioria dos progressistas, hoje na oposição, a população também é majoritariamente favorável a ele. Uma pesquisa da Universidade de Melbourne mostrou que, em 2015, 59% dos homens e 67% das mulheres apoiavam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Assim, num referendo, com voto obrigatório (na Austrália, como no Brasil, o ato de votar é compulsório), muito provavelmente a população determinaria a legalização do casamento igualitário.
Por isso, a aposta dos reacionários australianos é o plebiscito por correio. A consulta popular, de caráter optativo, não terá qualquer valor científico para medir o sentimento real da população. Além disso, seu desfecho será enviesado a favor do “não”, que terá caráter vinculativo, como anunciou o primeiro-ministro. Para completar, o simples fato de uma campanha ser realizada permitirá a mobilização do campo contrário ao casamento igualitário.
Não cabe menosprezar a força desses setores. Em 2012, enquanto o parlamento francês discutia o casamento igualitário, 100 mil pessoas foram às ruas de Paris protestar contra a legalização, que acabou aprovada. Se o “não” vencer, será um fato fato político e tanto, de repercussão internacional, com reflexos relevantes para a discussão sobre o respeito e a dignidade na sociedade australiana e no mundo como um todo.
Fonte: Carta Capital