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Artigo – Monitor Mercantil – Planejamento ou morte: Cidadania – Por Felipe Quintas, Gustavo Galvão e Pedro Augusto Pinho
“Quando o espírito mercantil predomina, quando se avalia cada ação como mercancia, vendem-se os talentos e as virtudes: todos são mercadores e ninguém é homem.” José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca
A tragédia brasileira é a ignorância, que nada tem a ver com a educação escolar ou doméstica, mas tem muito com a falta de cidadania. E a construção da cidadania jamais foi, nem para engodo, um projeto político. Não saberíamos dizer quem proporia tal projeto. Não por incapacidade cognitiva, mas pela forte oposição do poder colonizador, que lhe fecharia todas as possibilidades.
Há a repetição setecentista da separação dos poderes que, embora visualizada por Montesquieu na Grã-Bretanha, não correspondia à realidade institucional desse país, como bem observou George Sabine em História da Teoria Política. Se já naquela época esse modelo não se ajustava às condições concretas das nações, após as duas revoluções provocadas pela Teoria de Sistemas Gerais e pela Cibernética (controle e comunicação nos animais e máquinas) este modelo apresenta ainda outras falhas.
Primeiro, o poder, como o próprio Montesquieu entendeu, é um único, que se materializa no que denominamos expressões do poder. Consequentemente, a democracia não teria sentido num sistema em que um dos poderes, em princípio, é meritocrático. E que outro, o legislativo, não teria conhecimento (ou até consciência) da extensão de seus votos parlamentares, de sua adesão a projetos.
Caímos muitas vezes num regime, independente do sistema econômico, onde há a prevalência do segmento que é o mais capaz, seja de representar o interesse geral, ou seja, para operacionalizá-lo.
Assim, para que possamos implementar os projetos nacionais de Soberania e de Cidadania, também precisamos nos dedicar à organização, às estruturas do Estado e instituições que os garantirão e os ajustarão/alterarão conforme vá se transformando a sociedade.
Cidadania significa ser par, ser um igual, compartilhar, no mesmo status de pertencimento, idênticas obrigações e garantias cívicas, isto é, relacionadas ao corpo coletivo. Paridade é estar no mesmo nível de todos, em pé de igualdade. Está aí a grande falácia da competitividade neoliberal; não haver igualdade entre os competidores, principalmente quando o “incentivo à competitividade de mercado”, que nos impõe o Consenso de Washington, junta pequenas empresas nacionais com poderosas multinacionais estrangeiras.
Sob a Cidadania temos também dois pilares: a construção da cidadania e a garantia dos direitos.
A construção da cidadania é um processo permanente que possibilita a existência, a consciência e a vocalização de todos os habitantes. Destes milhões de pessoas que são os brasileiros.
A existência na cidadania fica hoje, com a epidemia de Covid-19, ainda mais visivelmente necessária. São atividades do âmbito da existência a saúde e a moradia. Para saúde, seria tornar o Sistema Único de Saúde (SUS) o verdadeiro e universal sistema brasileiro, dotado de todos os recursos para a prevenção e tratamento de enfermidades, físicas e mentais. Ações privadas na saúde não contariam com a proteção nem estímulo público, pois a saúde da população não pode ser objeto de comércio.
A habitação contempla, além da construção, a urbanização, o saneamento básico, o transporte urbano grátis, permitindo a descentralização residencial. Forma com a saúde a existência sadia da população.
Outra área da formação da cidadania é a consciência. Assim a denominamos pois deve ir além dos letramentos, deve buscar as reflexões e o entendimento da diversidade humana, culturais e espirituais, vontades e respeito ao seu par.
Também na construção da cidadania temos a vocalização. É a viabilização de o cidadão poder se manifestar, inquirir, propor, criticar, apoiar, enfim ter uma vida efetivamente participativa. Se foi difícil no passado, restrita a comunicações escritas ou a grandes investimentos, a comunicação virtual, a disponibilidade de equipamentos que colocam todos em condição de dialogar, receber e emitir mensagens, abre a efetiva possibilidade da vocalização.
Todos as entidades estatais, todos serviços públicos deverão ter, com a dimensão adequada ao pronto atendimento, canais de comunicação com o cidadão.
O outro pilar é a garantia dos direitos, que também pode ser denominado segurança cidadã.
Quando se pergunta a qualquer pessoa qual sua preocupação maior, a resposta cairá em algum tipo de segurança: dos filhos, da saúde, do emprego, enfim, a vida segura é um desejo geral e normal.
Pesquisa recente realizada na Europa, em países ricos como a Finlândia, sobre a renda mínima, encontrou ampla aceitação das pessoas. O motivo mais apresentado foi a garantia da existência que a renda mensal trazia e que possibilitava até realizar trabalhos voluntários, que sempre fora o sonho de alguns (Monitor Mercantil, Marcos de Oliveira, Fatos e Comentários, 12/5/2020).
O primeiro direito a ser garantido é o da existência digna, de não ter que se sujeitar a imposições do poder financeiro ou do arbítrio de quem quer que seja para continuar vivendo. Cabe ao poder público definir os quantitativos mínimos mas suficientes para manter a existência. E ao órgão do Estado Nacional responsável pela garantia dos direitos prover a execução.
Outros segmentos da garantia dos direitos estão na capacidade do cidadão de movimentar o sistema policial e judiciário para que lhe garanta. A garantia dos direitos é uma solução democrática para o cidadão pôr em ação o Estado para defendê-lo por duas entidades hoje meritocráticas. Denominamos Delegacia de Direitos onde profissionais da polícia e da justiça atuarão na defesa da cidadania.
Dada a grandeza territorial do Brasil e a necessidade de atender a todos os cidadãos, imaginamos, por exemplo, duas delegacias que se desmembrariam de acordo com as demandas pelas áreas do direito: Delegacia do Direito Público e Delegacia do Direito Privado, onde estaria o Registro Civil.
O amigo leitor estará perguntando pela manifestação popular.
Criticamos o que se denomina democracia e que é tão somente um ritual que não espelha a vontade das pessoas mas sua catequização pelas mídias comerciais.
Filósofos contemporâneos como Nancy Fraser, Axel Honneth, Charles Taylor entre outros tratam da cidadania como paridade participativa. Fraser afiança: “A paridade participativa é o padrão próprio para garantir as reivindicações” (“Reconhecimento sem ética?”, palestra em 1996).
Precisamos colocar nossa criatividade para estruturar estes projetos numa organização nacional, capaz de suportar as agressões e ameaças coloniais, de que natureza sejam. É preciso combinar a representação popular.
Este trabalho apenas apresenta o objetivo do planejamento. Cabe agora o aprofundado estudo do Brasil, em todas as dimensões, para concluir e efetivar um Projeto Nacional. Algo que José Bonifácio de Andrada e Silva nos apresentou quando de nossa Independência e lhe valeu um exílio, e o Brasil nunca ficou Independente.
Fonte: Monitor Mercantil