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Artigo – Migalhas – Representação nas ações penais em curso por estelionato: um imperativo de Justiça – Por Fernando Brandini Barbagalo
Já que me aventurei em discorrer sobre o tema, sigo para dizer que discordo da interpretação que vem sendo dada por alguns escritores de que a representação é dispensável quando possível extrair pelas declarações anteriores da vítima, na fase policial ou judicial, o seu desejo em ver o agente processado, dispensando-se, assim, a necessidade de representação nesses casos.
A lei 13.964/19, em vigor desde o dia 23 de janeiro de 2020, alterou a ação penal do crime de estelionato que, desde então, passou a ser de iniciativa pública condicionada à representação da vítima, ressalvado os casos especificados no art. 171, § 5º, do Código Penal.
Pois bem, a primeira e principal dúvida sobre o tema refere-se à sua aplicação temporal, a dizer, a exigência de representação da vítima aplica-se às ações penais ainda em curso ou apenas aos fatos apurados em inquérito policial?
O tema foi recentemente analisado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar o HC 573.093/SC (Rel. Min. Reinaldo Soares da Fonseca, j. 09.6.2020), entendeu que “a representação da vítima possa ser exigida retroativamente nos casos em que estão em fase de inquérito policial, mas não na hipótese de processo penal já instaurado”. Ainda destacou “em tese, pelo fato de o instituto da representação criminal ser norma processual mista ou híbrida, a aplicação retroativa seria possível para beneficiar o réu, mas o Pacote Anticrime não trouxe nenhuma disposição expressa sobre essa possibilidade”. Em resumo, o órgão fracionário do Tribunal da Cidadania, decidiu que, oferecida a denúncia, não há mais que se falar em representação da vítima.1
Ousamos divergir do decisum.
Insuspeito que a inovação legislativa apresenta uma norma híbrida benéfica, porquanto, ao alterar a espécie de ação penal de iniciativa pública incondicionada para condicionada à representação da vítima, permitiu-se a criação de nova possibilidade de extinção da punibilidade: a decadência (art. 107, IV, do CP).
Não se discute, igualmente, que aplicabilidade das normas híbridas é determinada pelo caráter da diretiva de direito material, ou seja, se o comando penal for benéfico, aplica-se o dispositivo retroativamente, incluindo os casos ainda em trâmite processual, nos exatos termos do art. 5º, XL, da nossa Carta Constitucional.
Realmente, diferentemente, do que ocorreu quando entrou em vigor a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) que alterou a ação penal dos crimes de lesão corporal leve e culposa (art. 88) e estipulou um prazo de 30 (trinta) dias para a vítima realizar a representação nos processos em curso por estes delitos (art. 91), o Pacote Anticrime não previu um prazo específico para representação. Data venia, isso não significa que se deva deixar de observar a determinação constitucional. A Lei dos Juizados Especiais criou um prazo próprio para os casos de lesão corporal leve e culposa em trâmite. Não obstante, mesmo se inexistente o dispositivo com regra própria, exigir-se-ia a representação da vítima por imperativo constitucional.
O fato da Lei 13.964/2019 não ter previsto um prazo próprio para a vítima representar não pode impedir a aplicação retroativa de norma mais benéfica, aplicandose o prazo vigente para a situação, ou seja, 06 (seis) meses (art. 38 do Código de Processo Penal). No caso, o prazo deverá ser contado, não a partir do conhecimento da autoria, mas da intimação regular da vítima sobre a necessidade da representação para continuidade da ação penal.
Por outro lado, não se pode concordar com a tese de que a denúncia recebida é ato jurídico perfeito e autoriza a continuidade da ação penal mesmo sem manifestação da vítima exigida pela nova lei. Novamente, com as devidas escusas, afirmar que não se pode alterar a natureza jurídica da representação de “condição de procedibilidade” para “condição de prosseguibilidade” é um reducionismo, pois na mencionada condição de procedibilidade está inserta causas de extinção da punibilidade e, nessa perspectiva, há de prevalecer a aplicação mais favorável ao agente, sublimando-se o jus libertatis.
Mais, numa interpretação sistemática, considerando a inovação legislativa que exige a representação da vítima nos crimes de estelionato, seria o oferecimento da denúncia realmente um ato jurídico perfeito, admitindo o prosseguimento da ação mesmo com a exigência de representação da vítima?
Observemos o que diz a lei de regência sobre a ação penal de iniciativa pública: “A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça” (art. 100, § 1º, CP). Nos parece de clareza solar que, se uma nova lei, como no caso, passa a exigir representação da vítima para o Ministério Público promover a ação penal – promoção que não se limita ao oferecimento da denúncia – imprescindível ouvir a vítima sobre seu interesse não só em iniciá-la, mas também no seu prosseguimento.
Outro ponto relevante e, aparentemente, desprezado no debate jurídico em questão, é o resgate e afirmação do papel da vítima nesta espécie delitiva. A nova legislação deu voz e possibilidade à vítima, enquanto principal prejudicada pelo fato criminoso, legitimando-a para manifestar seu interesse no prosseguimento ou não da ação penal. Deve-se realçar também que o direito de representação, inclusive, poderá ser utilizado pela vítima como fator favorável na tentativa de obter eventual composição civil com o agente.
É certo que, prevalecendo a interpretação que ora se defende, haverá incômodos de ordem processual, pois processos poderão ficar suspensos, aguardando a manifestação da vítima e outros em que ela sequer será encontrada, mas, acreditamos, que tais questões não podem afetar a aplicação adequada da lei.
Como último argumento, apresentamos o seguinte exemplo: No mesmo dia de dezembro de 2019, as pessoas de “A” e “B” alegaram ser vítimas de estelionato. Nenhuma delas se encontra na situação de excepcionalidade descrita no art. 171, § 5º, do Código Penal. Os fatos passaram a ser investigados, porém, o caso de “A” demorou um pouco mais para ser concluído, pois uma das testemunhas não era encontrada. Já o caso de “B” encerrou-se rapidamente, o inquérito policial foi relatado e o representante do Ministério Público apresentou denúncia. Seguindo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça acima exposto, a vítima “A” será ouvida e poderá não representar ou simplesmente deixar o prazo decadencial escoar, acarretando a extinção da punibilidade. A vítima “B” será intimada apenas para prestar declarações e, ainda que se manifeste pela ausência de interesse pessoal no prosseguimento da ação penal, o processo poderá prosseguir e haver a condenação do réu, mesmo com a exigência legal de representação e, principalmente, contra a vontade do principal interessado nos fatos.
Diante de tal exemplo hipotético, mas que, seguramente, pode acontecer2, pensamos que ouvir a vítima sobre o seu interesse, mesmo nos processos em curso por estelionato, é, antes da melhor interpretação, um imperativo de Justiça.
Post scriptum:
Já que me aventurei em discorrer sobre o tema, sigo para dizer que discordo da interpretação que vem sendo dada por alguns escritores de que a representação é dispensável quando possível extrair pelas declarações anteriores da vítima, na fase policial ou judicial, o seu desejo em ver o agente processado, dispensando-se, assim, a necessidade de representação nesses casos.
Discordamos, pois pensamos que a vítima deve ser devidamente intimada e informada sobre os efeitos possíveis e o prazo para exercer o que agora se afigura como seu direito pessoal e não mais apenas como elemento de prova. A interpretação de que a representação pode ser presumida das declarações da vítima é fruto de jurisprudência sobre crimes sexuais que, ao nosso sentir, não deve ser estendida a outros. Fundamental, como dito, esclarecer a vítima e respeitar seu direito.
Ainda, na ausência de prazo legal próprio, reafirmamos que deve ser utilizado o prazo legal de 6 (seis) meses para representação, na forma do art. 38 do Código de Processo Penal. A analogia ao art. 91 do Lei 9.099/1995, in casu, seria in malam partem.
Finalmente, tratando-se de norma híbrida, o limite para retroatividade é o trânsito em julgado da condenação pelo estelionato, a retroatividade da norma híbrida difere da norma puramente material que rompe inclusive a coisa julgada. Trata-se, no caso, de norma afeta ao direito de ação com reflexos indiretos no direito material, logo não possui aplicação quando definitivamente encerrada ação penal.
Fonte: Migalhas