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Artigo – Migalhas – Novos tempos: recuperação judicial de associações e entidades sem fins lucrativos – Por Odair Moraes Jr.
Em todo o Brasil, empresas têm usado o recurso da Recuperação Judicial para preservar suas atividades econômicas. Como fica a situação para associações e entidades sem fins lucrativos?
Em novos tempos, em que a população mundial vive aquilo que não mais presenciou desde 1918 com a gripe espanhola, a produção e a economia mundial foram amplamente abaladas por uma nova pandemia. O atual contexto aflige autoridades mundiais e empresas. Nem mesmo o gestor mais pessimista e conservador poderia prever um momento como o que vivemos agora.
No Brasil, país fortemente afetado pela crise, empresas têm se socorrido da recuperação judicial ou extrajudicial para preservar negócios, empregos e sua atividade econômica, seguindo o que dispõe o artigo 47 da lei 11.101/05, que visa à preservação da empresa. Porém, discussões doutrinárias e jurisprudenciais têm se travado quanto a esta possibilidade para associações e entidades sem fins lucrativos.
Associações são pessoas jurídicas de finalidades não econômicas que se constituem pela união de pessoas. Apresentam uma estrutura interna fundada em um conjunto de pessoas universitas personarum, mas diferem entre si porque não têm fins econômicos, como as sociedades. Distinguem-se também associações de fundações, porque estas têm por substrato um patrimônio universitas bonorum.
Regulamentada pelo artigo 53 do atual CC, pode-se dizer que, atualmente, a maioria das mantenedoras de instituições de ensino, bem como de hospitais, asilos e entidades desportivas, são juridicamente constituídas por associações e fundações. Exercem atividades equiparadas às econômicas, razão pela qual também estão sofrendo com a crise financeira instalada pela pandemia da covid-19.
Atualmente, associações e fundações privadas sem fins lucrativos de qualquer fim são isentas do recolhimento do Imposto de Renda e da CSLL, desde que cumpram alguns requisitos estabelecidos na legislação. No âmbito Federal, a isenção do Imposto de Renda (IR) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) está disciplinada pela lei 9.532/97 (Art. 15). A situação de tributação correspondente ao PIS encontra-se definida na MP 2.128-35/01. Na lei 10.637/02, conforme o Art. 13 da MP 2.158-35/01, não há incidência das Contribuições ao PIS sobre as receitas relativas às atividades próprias das entidades sem fins lucrativos. As entidades imunes e isentas estão sujeitas ao recolhimento da alíquota de 1% sobre o valor da folha de pagamento mensal.
Quanto à tributação com relação à COFINS, as referências são a MP 2.158-35/01 e a lei 10.833/03. Conforme a MP 2.158 (Art. 14), com relação aos fatos geradores ocorridos a partir de 1° de fevereiro de 1999, são isentas da COFINS as receitas relativas às atividades próprias das entidades a que se refere o art. 13, descrito acima. Contudo, uma entidade que obtenha receitas oriundas de atividades não discriminadas em seus documentos constitutivos deverá recolher a COFINS sobre essas receitas. Para as entidades imunes, a alíquota é de 3%, correspondente a COFINS em sua forma cumulativa. Para as entidades isentas, a alíquota é de 7,6% aplicável sobre sua forma não cumulativa. A lei 10.833/03 (Art. 10) ratifica que permanecem inalteradas as condições para contribuição para a COFINS, com relação às pessoas jurídicas imunes a impostos.
Quanto à tributação das entidades sem fins lucrativos com relação às contribuições sociais, as leis 10.637/02, 10.833/03 e a MP 2.158-35/01 determinam para entidades do Terceiro Setor a contribuição para o PIS com base na folha de pagamentos (à alíquota de 1%), e a isenção da COFINS. Estes conceitos tributários sobre essas instituições jurídicas são fundamentais.
Consolidada a existência da sociedade, havia desaparecido a confusão que até então grassava entre sociedade, associação e fundação. Modernamente, não há como não as distinguir, pois a sociedade empresária caracteriza-se, sobretudo, pela finalidade lucrativa, inteiramente ausente na associação e na fundação. Associações têm fins ideais – científicas, literárias, artísticas, religiosas, beneficentes, recreativas, entre outras. Fundações distinguem-se de associações porque são subordinadas aos fins preestabelecidos por seus instituidores ou fundadores.
Associações e fundações apenas divergem de sociedades quanto à vedação de não distribuírem a associados ou fundadores o lucro do exercício da atividade, mas sim por reinvestirem o resultado positivo nas finalidades estatutárias. Diante do cenário exposto, cumpre verificar se a lei Recuperacional Falimentar (11.101/05) realmente impede que associações e entidades sem fins lucrativos se valham de sua aplicação. Ao que nos parece, isso não acontece.
O Brasil optou pelo princípio da preservação da empresa, esculpido no artigo 47 da lei 11.101/05. Neste artigo fica claro que “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”, não excluindo devedores de associações ou entidades sem fins lucrativos. A menos que se estenda a associações e entidades a proibição genérica oriunda da sua não inclusão no art. 1°, não é possível concluir existir na lei vedação a estas entidades.
Nesta linha foi o entendimento do renomado Manoel Justino, em parecer elaborado para a Fundação Candido Mendes, associação fluminense que obteve o deferimento do processamento de sua recuperação judicial pela 5º vara Empresarial do Rio de Janeiro, em decisão irretocável da Juíza Maria da Penha Mauro Nobre:
“14. Por isto mesmo, o art. 1°, ao limitar a recuperação judicial para empresas e sociedades empresárias, deve ser examinado à luz, entre outros, do art. 47 da LREF, bem como à luz dos artigos 966, 981 e 982 do Código Civil. Desta forma, o que se vê é que o princípio do art. 47 é a preservação do ‘…devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo assim a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica’. O art. 47 não fala em ‘sociedade empresária’, termo que apenas é encontrado no art. 1°; o art. 47 fala apenas em “fonte produtora” e em empresa.”
O Superior Tribunal de Justiça, em voto da Ministra Nancy Andrighi (RESP Nº 1.193.115 – MT (2010/0083724-4), também adotou a mesma linha de raciocínio:
“…A lei 11.101/05, conforme estabelecido em seu art. 1º, ‘disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária’, remetendo seu intérprete, assim, ao conceito legal contido no art. 966 do CC. Segundo se infere dessa norma, empresário é a pessoa, física ou jurídica, que exerce de forma habitual e organizada atividade econômica voltada à produção ou à circulação de bens ou de serviços. Nessa medida, quem se dedica ao exercício profissional de atividade econômica organizada, ainda que de natureza agrícola ou pecuária, produzindo ou promovendo a circulação de bens ou serviços, deve ser considerado empresário…”
Com isso, simples concluir que as associações e outras entidades podem ser enquadradas nos ditames da Lei 11.101 de 2005, pois não são excluídas da mesma em seus artigos. De fato e de direito exercem as atividades necessárias, em sua grande maioria, para se caracterizarem como uma sociedade empresária.
Finalizando esta análise, o artigo 48 da lei 11.101/05 também não exclui associações e entidades da possibilidade de utilizarem a recuperação judicial, pois, em seus quatro incisos taxativos, novamente não se encontram associações e entidades.
Ainda, há quem sustente que associações e entidades não possuem registro na Junta Comercial, fato este que impede que se beneficiem da lei 11.101/05, mais uma vez equivocado tal entendimento. Isto porque o registro na Junta Comercial possui natureza meramente declaratória e não constitutivo do direito invocado. O Enunciado 198 da III Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos da Justiça Federal, entendeu que “a inscrição do empresário na Junta Comercial não é requisito para sua caracterização, admitindo-se o exercício da empresa sem tal providência”.
Cumpre-nos aqui destacar o PL 1.397-A/20, de caráter emergencial já aprovado pela Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal, que não distingue as medidas protetivas a nenhum ente jurídico de aspecto econômico, mais uma vez contemplando a possibilidade de reestruturação das associações e entidades pela recuperação judicial.
O novo sistema emergencial seria aplicável aos “agentes econômicos”, pessoas naturais ou jurídicas que exerçam atividade econômica, independentemente de inscrição ou natureza empresária, o que parece confirmar a tendência moderna de aplicação extensiva dos regimes falimentar e recuperacional com base na atividade empresária, e não na qualificação jurídica.
Importante frisar diversas decisões favoráveis à recuperação judicial de associações e entidades. Em 2005 o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul requereu a recuperação judicial da Universidade de Cruz Alta, deferido pelo Poder Judiciário, sob suspeição e indícios de gestão temerária. Foi nomeado administrador judicial que permaneceu na administração da UNICRUZ até 2008.
Em 2006 o Superior Tribunal de Justiça confirmou o deferimento da recuperação judicial concedida pela 4ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao Hospital Casa de Portugal, associação civil filantrópica que, graças ao êxito do plano de recuperação aprovado, continua a exercer a sua atividade e a sua função social. Em sua decisão, a 4ª turma do STJ aplicou a teoria do fato consumado, destacando que a finalidade maior da recuperação judicial é a preservação da atividade econômica. Uma justificativa mais pragmática do que técnica.
Discussão tão importante é sobre entidades desportivas, ou seja, os clubes de futebol. Em relação a estes, não há dúvidas de que geram empregos, tributos, lucros e receitas – esta última pode ser altíssima em grandes clubes. Possuem vastos patrimônios, como sede social, estádios e outros bens móveis e imóveis, além de acumular grandes passivos.
Como exemplo positivo citamos o Clube de Regatas Flamengo, com receita anual próxima de bilhão de reais e, em sentido contrário, o Cruzeiro Esporte Clube, com passivo perto do bilhão de reais. Não se pode aplicar a reestruturação pela recuperação judicial a estas entidades? Entendemos que sim, ainda com mais base legal do que em outros modelos de associações e entidades.
Em relação aos clubes de futebol, existe a regulamentação da Lei Pelé, e seu artigo 46-A diz que: “as entidades de administração do desporto e as de prática desportiva envolvidas em quaisquer competições de atletas profissionais, independentemente da forma jurídica adotada, com ou sem finalidade lucrativa, são obrigadas a elaborar e publicar as demonstrações contábeis e balanços patrimoniais, de cada exercício, devidamente auditados por auditoria independente”. Há um prazo claro determinado: a publicação deve ocorrer até o último dia útil do mês de abril.
A legislação define uma série de punições aplicáveis aos gestores que descumprem a determinação de publicação de balanços. Assim como ocorre com empresas tradicionais, administradores de clubes estariam expostos a sanções previstas nas áreas tributária, trabalhista, previdenciária e cambial. Além disso, podem ser responsabilizados civil e penalmente. Há, ainda, na legislação esportiva, a possibilidade de punições específicas para gestores e clubes, incluindo o afastamento dos dirigentes e “a inelegibilidade, por cinco anos, de seus dirigentes para cargos ou funções eletivas ou de livre nomeação em qualquer entidade ou empresa direta ou indiretamente vinculada às competições profissionais da respectiva modalidade desportiva”, entre outras.
Em razão disso, se já estão estes clubes equiparados a empresas para fins de fiscalização e documentação, diferente não seria para o caso de poder se valer dos ditames da lei 11.101/05. Se devem ser empresas em seu aspecto fiscalizatório, devem ser também empresas para sua reestruturação, trazendo aqui o princípio da isonomia das normas constitucionais.
Em tempos de crise financeira, associações e entidades não podem manter-se inertes às mudanças. São instituições que, em sua essência, funcionam como empresas, que geram receita, empregos e tributos e que acabam por exercer atividade econômica. Falamos de colégios, universidades, asilos, hospitais, clubes de futebol e outros mais que buscam resultados positivos e lucro com suas operações, tendo como principal diferença apenas o fato de não distribuírem os rendimentos a seus associados, mas sim o reinvestem quando há resultados.
Porém, na maioria dos casos, não há resultado algum. Entidades e associações estão no vermelho e operam sem qualquer sobra financeira – mais uma razão para serem equiparadas a empresas. Se o que as separam são a forma de se utilizar o lucro, não havendo lucro não há separação. Em outros requisitos, associações, entidades e empresas de qualquer natureza possuem a mesma meta: conseguir resultados. Logo, se uma empresa do setor de educação, por exemplo, pode se valer da recuperação judicial para se reestruturar, por que uma associação que exerce a mesma atividade não poderia?
Vivemos novos tempos. O que conhecíamos como “normal” já não existe mais. Indivíduos, poder público e poder privado passam por uma transformação sem precedentes, e a legislação está se adaptando a essas mudanças. Invariavelmente, o “novo normal” passará a existir para empresas, e ele deve ser factível também para associações e entidades.
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*Odair de Moraes Jr. é sócio do escritório Moraes Jr. Advogados.
Fonte: Migalhas