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Artigo – Migalhas – Considerações sobre COVID-19 e descumprimento contratual – Por Celiana Diehl Ruas e Pablo Werner
Em 31.12.19 a Organização Mundial de Saúde (OMS) recebeu o primeiro alerta das autoridades chinesas acerca do surgimento de um vírus que causou uma série de casos de pneumonia de origem desconhecida, tendo se constatado, já no início de janeiro deste ano, tratar-se do Covid-19, um novo tipo de coronavírus1. Com a rápida disseminação do vírus nos continentes asiático e europeu, não tardou até que em 26.2.20 se confirmasse o primeiro caso de contaminação no Brasil2. Em 11.3.20 a OMS declarou a situação de pandemia de Covid-193.
Desde então as autoridades nacionais e internacionais têm implementado medidas rigorosas para a contenção da propagação do vírus, seguindo as orientações da OMS. No Brasil, a exemplo das práticas adotadas em outros países, inúmeros decretos foram expedidos pelos governos estaduais e municipais determinando o fechamento ou restrição de funcionamento de comércio, restaurantes, bares, indústria, setor de serviços e inclusive a construção civil4. A tendência para as próximas semanas, com o aumento do número de casos de contaminação, é que cada vez mais estejam autorizados a funcionar apenas os serviços essenciais, reforçando-se à população a orientação de que se mantenha em isolamento social e evite a circulação, tudo no esforço de conter a disseminação do vírus.
Tais medidas acarretam inegáveis impactos à economia e à possibilidade de cumprimento dos contratos firmados, impondo a necessária reflexão acerca dos efeitos da pandemia sobre a execução dos contratos.
Nesse cenário, sobressai a aplicação das noções de caso fortuito e força maior, previstas no art. 393 do Código Civil 5, verificados “no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Registra-se que existe debate doutrinário acerca da necessidade ou não de diferenciação dos conceitos de caso fortuito e força maior6, ponto que não será abordado neste artigo por não ser este o enfoque pretendido e sobretudo porque a utilidade de tal diferenciação parece dispensável na hipótese de pandemia, na qual não se verifica controvérsia no sentido de que se caracteriza como um evento extraordinário cujos efeitos não é possível evitar.
Conforme prevê o art. 393 do Código Civil, a primeira consequência da aplicação das hipóteses de caso fortuito e força maior ao inadimplemento contratual é que o devedor não responderá pelo prejuízo resultante, salvo se houver estipulação contratual em sentido contrário. Veja-se que a cláusula de alocação de riscos é especialmente usual em contratos civis-empresariais de operações de maior porte e, nesse caso, deve prevalecer o convencionado, sobretudo porque em tais situações presume-se que os contratantes são partes experientes, com amplo conhecimento e assessoria sobre o negócio. Registra-se que, no caso de o contrato prever que o devedor responda pelo prejuízo resultante de caso fortuito e força maior, importante que o credor atente para a possibilidade de aplicação da doutrina da mitigação dos prejuízos, já difundida no direito contratual brasileiro, a lhe impor o ônus de mitigar o seu próprio prejuízo dentro do razoável, sob pena de ser privado da indenização pelos danos evitáveis7.
A impossibilidade de cumprimento da obrigação, quanto à classificação, pode ser definitiva ou temporária e, ainda, absoluta – quando acarreta a extinção da obrigação, com a liberação do devedor ou relativa – quando se verifica dificuldade ou onerosidade no cumprimento da obrigação que, no entanto, por si só não a extingue.
Assim, a segunda consequência que decorre das hipóteses de caso fortuito e força maior é a possibilidade de resolução do contrato quando a utilidade da prestação se perde ou se torna impossível o cumprimento da obrigação. De outra banda, nos casos em que a impossibilidade de cumprimento da obrigação caracterizar-se como temporária e relativa, a revisão contratual é uma alternativa à resolução, a exemplo do que dispõem os arts. 3178 e 4789 do Código Civil, repactuando-se o contrato, a fim de reequilibrar o seu sinalagma funcional. Nesses casos, podem-se adotar soluções tais como prazos de suspensão do exercício da prestação, repactuação de valores, a exemplo das medidas adotadas no Rio de Janeiro, onde lojistas e proprietários de shoppings center acordaram a possibilidade de pagamento de aluguel proporcional ao período em que o shopping permaneceu aberto, com a cobrança de taxa de condomínio reduzida10. Independentemente da via adotada, as soluções devem ser buscadas pautadas nos princípios do equilíbrio contratual, da boa-fé objetiva e da cooperação entre as partes.
Necessário frisar, ainda, que a impossibilidade de cumprimento, em princípio, deve ser superveniente à obrigação contratual. Veja-se que, na medida em que desde janeiro deste ano se tem notícia da existência do coronavírus e de sua capacidade de disseminação, já não se sustenta o caráter de imprevisibilidade da pandemia para contratações firmadas a partir de então, o que deve sopesado no momento da interpretação do contrato.
Por fim, embora estejamos em um momento inicial da pandemia, no qual ainda não é possível prever todos os desdobramentos e impactos econômicos, sociais e jurídicos, o fato é que a crise econômica a ser enfrentada e os inúmeros descumprimentos contratuais são realidades postas com as quais o Direito terá de lidar mediante a análise das consequências do descumprimento caso a caso, conforme o modelo, elementos contratuais e o impacto gerado na relação concreta pelo acontecimento extraordinário da pandemia.
Fonte: Migalhas