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Artigo – Migalhas – Autonomia privada e o dever de renegociar as locações em tempos de covid-19 – Por Rodrigo Rocha e Nicole Grimaud
Diante deste novo e incerto cenário econômico e social, propomos uma reflexão específica sobre as relações contratuais locatícias e como conduzi-las
Não é necessário muito esforço para constatar que a pandemia de covid-19 já está afetando de forma alarmante as relações contratuais entre particulares.
Diante deste novo e incerto cenário econômico e social, propomos uma reflexão específica sobre as relações contratuais locatícias e como conduzi-las.
De um lado, temos o locatário, que pode ter dois perfis. O primeiro, pessoa natural, que em razão do corte de salário, demissão e da enorme incerteza em relação ao futuro, de um momento para o outro, se vê impossibilitado de adimplir total, ou parcialmente, com o pagamento dos aluguéis e demais encargos da locação, sem o prejuízo da sua própria subsistência e de sua família. O segundo perfil, pessoa jurídica, que por atos de poder de polícia do Estado vê seu estabelecimento fechado e com restrições de funcionamento, que lhe causam prejuízos irreparáveis.
Do outro, temos o locador, que pactuou livremente com o locatário os termos do contrato de locação e agora, por motivos absolutamente alheios à sua vontade e aos quais não deu causa, fica submetido as consequências do inadimplemento do aluguel que, por vezes, são a sua única fonte de sustento.
A relação contratual havida entre locador e locatário é amplamente regulamentada pela legislação vigente, que prevê diversas hipóteses para a revisão do contrato de locação. Temos, por exemplo, a inteligência dos artigos 478 e 479 do Código Civil, que possibilitam a modificação equitativa das condições pactuadas com a finalidade de evitar a resolução do contrato que porventura tenha se tornado excessivamente oneroso para uma das partes em razão de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, tal e qual a pandemia que estamos, infelizmente, vivenciando.
Temos, ainda, o artigo 567 do Código Civil, segundo o qual poderá o locatário pedir a redução proporcional do aluguel, ou até mesmo resolver o contrato se, durante a locação, a coisa alugada se deteriorar.
De forma mais específica, a Lei de Locações (lei 8.245/91) em seu artigo 18 confere às partes, de comum acordo, a possibilidade de fixar novo valor de aluguel, inserir, ou modificar a cláusula de reajuste pactuada. Na hipótese de as partes não chegarem a um denominador comum, o artigo 19 prevê a possibilidade de revisão judicial do aluguel para ajustá-lo ao preço de mercado.
Uma coisa é certa e inafastável: os contratantes são obrigados a observar os princípios da probidade e da boa-fé, tanto na conclusão quanto na execução dos contratos. Isso abarca, naturalmente, o dever de renegociar em boa-fé quando a alteração das circunstâncias impacte o equilíbrio do contrato.
No atual cenário, a necessidade de proteção do contrato (aqui, especificamente, o contrato de locação) com vistas à sua manutenção, impõe que as partes envolvidas se revistam de boa-fé, solidariedade e empatia e, mais do que nunca, estejam dispostas a revisitar as condições de seus contratos. Porque, no fim, a extinção do contrato de locação será mais prejudicial do que uma revisão temporária que, se bem delineada, atenderá ambas as partes de forma equânime. Aqui se manifesta, sem dúvida, o princípio da conservação dos pactos, presente em nosso Código Civil.
Com estas considerações em mente, parece-nos, desde logo, que locador e locatário devem exercer a liberdade que lhes é conferida para renegociar seus contratos, evitando a intervenção do Estado Juiz em tais relações, já que são os próprios contratantes que têm conhecimento das particularidades dos contratos e de suas próprias condições para adimpli-los. Esta é, inclusive, a recomendação da lei, que no artigo 421, parágrafo único, do Código Civil, dispõe que, “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.
Esta inclinação à negociação, em detrimento da intervenção judicial na esfera privada, ganha ainda mais relevo diante das dúvidas interpretativas que o cenário de pandemia gera. Por exemplo, seria correto possibilitar a um locatário que não sofreu qualquer impacto com a pandemia de covid-19 (por exemplo, um funcionário público) a suspensão dos pagamentos dos aluguéis pactuados, quando do outro lado da mesa, esse aluguel pode ser a única fonte de renda do locador? Ou, seria adequado ao locador buscar o aumento do valor do aluguel de um locatário que esteja com suas atividades comerciais em pleno funcionamento, inclusive com mais movimento do que antes da pandemia, como no caso das farmácias e redes de supermercados?
Embora em uma análise superficial possamos ser induzidos a crer que intervenção do Estado Juiz em relações particulares possa ter o condão de pacificar as relações sociais, não podemos perder de vista que situações como essas, assim como um sem número de outras, há particularidades comerciais e obrigacionais que somente as partes conhecem a fundo, de modo que uma intervenção judicial pode trazer uma solução menos efetiva do que uma solução consensual.
Além disso, ao aplicarem as cláusulas gerais, os Juízes podem dar voz ao seu senso particular de justiça (equidade), gerando soluções muito díspares e pouco uniformes, contribuindo para um sentimento de maior insegurança jurídica.
Vejamos abaixo algumas decisões recentes, que ilustram como as decisões podem ser díspares, justamente em razão da amplitude interpretativa de que podem se valer os Juízes.
Em 01.04.20, no TJDFT, foi proferida decisão no agravo de instrumento 0707596-27.2020.8.07.0000, de lavra do desembargador Eustáquio de Castro, acolhendo parcialmente os argumentos de um escritório de advocacia para reduzir o valor pago a título de aluguel em razão dos impactos financeiros do covid-19. A decisão do Tribunal, embora, a nosso ver, tenha se mostrado bastante ponderada – reduziu o valor de R$2.000,00 para R$1.300,00 somente durante os meses de março, abril e maio –, poderia ter sido tomada de comum acordo entre as partes, evitando-se a judicialização do caso.
Em outra decisão, desta vez do TJSP (processo 1026645-41.2020.8.26.0100, do 22ª Vara Cível do Foro Central da Capital), foi concedida liminar sem a oitiva da parte contrária a um restaurante, reduzindo o valor da locação a 30% do valor originário do aluguel. Esta decisão utilizou como fundamento a possibilidade de o Poder Judiciário intervir em relações privadas para equilibrar os prejuízos, como meio de “ajustamento excepcional diante de situação de grave crise social e econômica imprevisível às partes”, o que justificaria o afastamento da limitação temporal imposta pelo artigo 19 da Lei de Locações.
Ainda, entendeu o TJSP ser cabível a aplicação do artigo 317 do Código Civil para que o Magistrado corrija a prestação quando sobrevier manifesta desproporção, sendo necessária a imprevisibilidade somada à onerosidade excessiva. Demonstrada a alteração da base objetiva do contrato (queda abrupta nos rendimentos da autora em decorrência do decreto Estadual 64.881/20), seria cabível, portanto, a revisão episódica dos alugueres para manutenção da base objetiva, gerando o menor prejuízo possível às partes.
Temos, também, a decisão proferida no agravo de instrumento 2063701-03.2020.8.26.0000, em trâmite na 36ª Câmara de Direito Privado do TJSP, entendendo não ser o caso de suspensão de exigibilidade dos aluguéis, tendo o Juiz entendido que a moratória não pode ser imposta pelo Judiciário, devendo decorrer de ato negocial entre partes ou de disposição legal. Afastou também as hipóteses de caso fortuito e força maior.
Já em decisão proferida pela 2ª Vara Cível do Foro da Comarca de Videira (TJSC), nos autos da ação revisional 5001853-72.2020.8.24.0079, foi indeferido o pedido de tutela de urgência formulado pelo locatário para redução do valor do aluguel por entender que a requerente não logrou êxito em demonstrar, “onde residiria o enriquecimento sem causa ou a prestação exagerada em favor do requerido, haja vista que o valor da locação não sofreu qualquer mudança em razão do evento noticiado”.
As decisões discrepantes certamente não pararão por aí, mostrando-se necessária a avaliação do risco da judicialização do requerimento de redução do valor do aluguel.
Com isso em mente, de forma muito ponderada e com excelentes argumentos, foi retirado do projeto de lei do Senado Federal, 1.179/20, o art. 10, que permitia ao locatário (pessoa natural) simplesmente parar de pagar o aluguel por até 07 (sete) meses, podendo quitar sua dívida no futuro em longos 35 (trinta e cinco) meses. O Projeto de lei, que institui o “Regime Jurídico Especial Transitório” (RJET), agora segue para análise da Câmara dos Deputados.
É necessário encararmos o presente cenário como uma oportunidade para o exercício de virtudes adormecidas, como a solidariedade, empatia, bom senso e disposição para renegociação e composição amigável, frente à latente necessidade de revisão dos contratos de locação em virtude dos impactos da pandemia vivenciada. É importante que as partes busquem o equilíbrio contratual dentro da autonomia da vontade. Esta crise passará.
Fonte: Migalhas