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Artigo – Georreferenciamento em ponto morto: decreto acende alerta sobre segurança fundiária

17-12-2025

Por Adhemar Michelin Filho

O cenário do georreferenciamento de imóveis rurais no Brasil foi abruptamente alterado com a chegada do Decreto 12.689/25. A medida, que determina a suspensão da obrigatoriedade do levantamento geodésico e da certificação de propriedades rurais até outubro de 2029, está gerando intensos debates e preocupações sobre um possível retrocesso na consolidação da segurança jurídica e no controle fundiário do país.

Para um país de dimensões continentais como o Brasil, onde a complexidade da estrutura fundiária sempre foi um desafio histórico, o georreferenciamento se consolidou como um instrumento vital. Desde a sua introdução pela Lei 10.267/01, o objetivo primordial tem sido garantir uma identificação precisa e uma delimitação inequívoca de cada imóvel rural, buscando harmonizar o direito agrário, o direito civil e as modernas tecnologias geoespaciais.

Evolução: da burocracia manual à eficiência digital do Sigef

A trajetória do georreferenciamento foi marcada por desafios consideráveis. Inicialmente, o processo de certificação era eminentemente manual, sinônimo de morosidade burocrática, longas filas de espera, grandes disparidades entre as superintendências regionais do Incra e uma enxurrada de ações judiciais. Havia, inclusive, uma crítica generalizada de que a exigência de certificação pelo Incra para a transferência de imóveis rurais extrapolava os limites regulamentares e acabava por emperrar a modernização cartográfica tão necessária.

A grande virada, o “divisor de águas” nesse processo, ocorreu em 2013 com a implementação do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef). Com ele, a era digital tomou conta, automatizando a validação de informações, a geração de plantas e memoriais descritivos, e possibilitando a consulta pública das propriedades certificadas. Graças ao Sigef, a certificação, que antes levava meses ou até anos, passou a ser quase instantânea em casos sem sobreposições ou inconsistências. Essa transformação consolidou o georreferenciamento como uma ferramenta indispensável para a governança fundiária digital e para a efetividade de políticas públicas, como o controle do desmatamento.

Decreto 12.689/25: sinal de alerta inesperado

As mudanças anteriores nas normas de georreferenciamento sempre seguiram uma lógica de prorrogação e progressividade, visando primeiramente às propriedades maiores e escalonando as exigências para as menores. Contudo, o Decreto 12.689/25 rompe abruptamente com essa lógica.

O novo decreto não se limita a prorrogar prazos para imóveis de menor área; ele “dispensa integralmente a certificação até 21 de outubro de 2029”, anulando todos os cronogramas estabelecidos anteriormente. O que mais chama a atenção, e causa grande preocupação, é que a medida posterga a exigência da “identificação georreferenciada, tanto do levantamento quanto da certificação, até 21 de outubro de 2029”. Em outras palavras, até essa data, não haverá qualquer obrigação legal para a realização do levantamento geodésico em atos registrais como transferência, desmembramento ou remembramento de imóveis rurais, independentemente do seu tamanho.

A justificativa apresentada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) para tal medida seria o alívio das dificuldades financeiras e técnicas enfrentadas pelos produtores rurais, em especial os pequenos. No entanto, a análise de especialistas sugere que, ao suspender o próprio levantamento geodésico, o decreto pode significar um “verdadeiro retrocesso institucional”, desmantelando duas décadas de avanços no controle fundiário e criando um “hiato normativo que fragiliza o controle técnico e a coerência cadastral”.

Contraponto do CNJ: salvaguarda da essência do georreferenciamento

Em meio à incerteza gerada pela nova legislação, um contraponto fundamental surge com o Provimento 195/25 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicado em 3 de junho de 2025. Este provimento instituiu o Sistema de Informações Geográficas do Registro de Imóveis (SIG-RI) e o Inventário Estatístico Eletrônico do Registro de Imóveis (Ieri), exigindo que os oficiais de registro de imóveis passem a alimentar dados geoespaciais, vinculando as matrículas a geometrias certificadas e interoperáveis com o Sigef.

Essa iniciativa do CNJ representa uma “revolução paradigmática” que levará o registro imobiliário a uma nova dimensão geoespacial integrada. A importância é tamanha que, mesmo com as lacunas criadas pelo novo decreto, o Provimento 195/25 garantirá que o levantamento georreferenciado continue sendo obrigatório. Isso permitirá aos oficiais de registro de imóveis qualificar adequadamente os atos submetidos a registro, mantendo a integridade do sistema.

Futuro: reconciliação entre eficiência e segurança jurídica

O cenário atual desenha uma tensão palpável entre a flexibilização proposta pelo Decreto 12.689/25 e a necessidade de rigor técnico e jurídico que o CNJ busca assegurar. O caminho a seguir dependerá de uma “reconciliação entre eficiência administrativa e segurança jurídica”, resgatando o equilíbrio que a Lei 10.267/01 originalmente propôs.

Apesar da “pausa” imposta nos prazos legais, a relevância do georreferenciamento como ferramenta de cidadania, de proteção ambiental e de garantia da função social da propriedade permanece inquestionável. O grande desafio é garantir que essa interrupção não se converta em um retrocesso irreversível na modernização e na tão almejada segurança fundiária do Brasil.

Fonte: Conjur