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Artigo – Estadão – LGPD e a curva ascendente da insegurança jurídica – Por Fernando Abel
Na última quarta-feira, dia 26 de agosto, formos surpreendidos pela notícia de que o Senado Federal, ao aprovar o projeto de lei de conversão nº 34/2020, relativo à MP nº 959/2020, que trata das regras para auxílio emergencial e adiamento da vigência da LGPD, acatou questão de ordem suscitada pelo Senador Eduardo Braga, declarando prejudicado o artigo 4º da MP nº 959/2020, que trata sobre a prorrogação da entrada em vigência da LGPD para o dia 3 de maio de 2021. Assim, de uma hora para outra, toda a expectativa do mercado, que contava como certo tal adiamento, foi subvertida.
Após este acontecimento, surgiram diversos comentários e notícias sobre a imediata entrada em vigor da LGPD. O raciocínio, um tanto precipitado, que levou a esta conclusão foi o de que, como o prazo de vigência da MP havia se esgotado, aqueles seus termos que não tivessem sido abarcados pelo projeto de lei de conversão aprovado pelo Senado, teriam efetivamente caducado naquela data, logo, a LGPD estaria em vigor.
Entretanto, o fato é que a entrada em vigor da LGPD somente acontecerá após a sanção ou veto do Presidente da República sobre o projeto de lei de conversão, conforme a redação do art. 62, § 12 da constituição federal (“Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto”.). Como o Presidente da República tem prazo de até 15 dias úteis (art. 66, § 1º da CF) para sancionar ou vetar, total ou parcialmente, o projeto de lei de conversão, prazo este contato da data do recebimento do referido projeto pela Presidência (o que ocorreu no último dia 27/08), a LGPD deve entrar em vigor somente em 18/09, caso não seja analisada antes.
É interessante observarmos a “rica” história da famigerada data de início de vigência da LGPD. O texto original daquela lei, de 14 de agosto de 2018, previa que ela entraria em vigor 18 meses após a sua publicação oficial. Após, em 27 de dezembro do mesmo ano, foi editada a MP nº 869/2018, posteriormente convertida na Lei nº 13.853/2019, que separou alguns artigos da LGPD (relacionados à criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD) que entraram em vigor em 28 de dezembro de 2018, e indicando que os demais artigos entrariam em vigor 24 meses após a data de sua publicação. Em 29 de abril de 2020, foi editada a MP nº 989/2020, prorrogando novamente a entrada em vigor destes demais artigos, para o dia 3 de maio de 2021. Na sequência, em 10 de junho de 2020, através da Lei nº 14.010/2020, que trata do regime jurídico emergencial e transitório, adiou a entrada em vigor de determinados artigos (relacionados à aplicação de sanções administrativas) para o dia 1º de agosto de 2021.
Em resumo, temos uma lei que possui alguns artigos já em vigor, outros prestes a entrar em vigor (após dois adiamentos e a tentativa de um terceiro) e outros que só entrarão em vigor em agosto de 2021. E não estamos falando de uma lei de relevância menor, meramente burocrática, estamos falando da Lei Geral de Proteção de Dados, que alterou a forma com os dados pessoais devem ser tratados no Brasil. Em virtude da LGPD, virtualmente todas as pessoas, físicas ou jurídicas, que recebem, armazenam ou transmitem dados pessoais precisaram (e muitos ainda precisam) adaptar-se aos seus termos.
A quantidade de investimentos já realizados, e que ainda o serão, para a atualização de sistemas, treinamento de profissionais e adaptação dos mais diversos instrumentos jurídicos é incalculável. A instabilidade do seu prazo de vigência tornou mais difícil a realização de planejamentos estratégicos e financeiros, em especial por partes das empresas. Nesse ponto, podemos identificar desde aquelas que já vinham se adaptando aos termos da LGPD até àquelas que estão correndo contra o tempo e que contavam com o “bom senso” dos governantes para um novo adiamento, ainda mais no contexto atual imposto pela onipresente pandemia de COVID-19.
E no meio desta surpresa preparada pelo Senado Federal, vimos a Presidência da República, como que em contrassenha, emitir, na data de 27 de agosto, o Decreto nº 10.474/2020, através do qual aprova a estrutura regimental e quadros da ANPD. Um detalhe curioso sobre este recentíssimo decreto é que a sua entrada em vigência está condicionada à data de publicação da nomeação do Diretor-Presidente da ANPD no Diário Oficial da União. Com esta manobra, a Presidência da República encontrou uma forma de adiantar ou postergar a entrada em vigência da regulamentação da ANPD conforme sua conveniência e, provavelmente, concomitantemente à entrada em vigor da LGPD.
Em suma, no espaço de apenas uma semana saímos da clara expectativa (quase certeza) de que a entrada em vigor da LGPD seria novamente adiada — principalmente em virtude dos desafios impostos pela pandemia –, para a iminência da sua entrada em vigor e a instauração (pendente pela nomeação de seu Diretor-Presidente) da ANPD.
Atravessar este momento de extrema cautela e fragilidade, por si só, já impõe um gigantesco desafio para os brasileiros.
Atravessá-lo dentro de um barco que não para de balançar nem por um momento, é ainda mais difícil. Infelizmente pagamos o preço pela instabilidade política e insegurança jurídica reinante, as quais, se fossem transpostas em um gráfico — tal qual aqueles que informam os terríveis números da pandemia –, certamente enxergaríamos uma curva ascendente sem previsão de atingirmos sequer um platô.
Fonte: O Estado de São Paulo