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Artigo – Estadão – Aonde vamos como cidadãos? – Por Eliana Calmon

09-11-2020

A Constituição Federal de 88 foi o divisor de águas entre um Brasil que se acostumou a viver com um patrimonialismo histórico e um outro, pujante líder na América do Sul, cobiçado internacionalmente pela potencialidade de promissor mercado consumidor.

A partir de 88 despertou o Brasil para um mundo novo, preocupado em manter boas e seguras relações comerciais e em combater um mal que, silenciosamente se agigantava com rapidez,  o terrorismo, fortalecido pelos recursos que lhe davam fôlego: a corrupção descontrolada existente nos países em desenvolvimento.

O novo desenho político brasileiro seguiu as diretrizes da pós-modernidade, sendo entregue à nação um Judiciário mais independente sob o ponto de vista administrativo e financeiro; um Ministério Público que açambarcou, pela primeira vez na história do país, as verdadeiras funções de fiscalizador das leis e, sobretudo, titular das ações penais mais significativas para a federação; um Tribunal de Contas, até então relicário de velhos políticos capazes de cumprir favores políticos prometidos, que evoluiu para um órgão mais independente pela eficiência técnica, da forma que foi possível à Constituinte de 88.

O reflexo dessas mudanças estruturais não demorou a se fazer sentir na legislação; foi notável a produção de importantes leis cujo endereçamento era o de combater a corrupção endêmica espalhada no país. Assim, em 1992, dispondo sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito, foi editada a Lei nº 8.429/1992, que regulamentou o estabelecido no artigo 37, § 4º, da Constituição e sepultou parcialmente a vetusta Lei de Crimes de Responsabilidade – Lei nº 1.079/1950.

Elaborada com a plena participação do Ministério Público Federal e aprovada sem dificuldade no Governo Fernando Collor, foi possível acabar com o incômodo de serem mantidos fora do alcance da Justiça Penal agentes públicos e políticos, acobertados por uma lei inócua, que nunca foi capaz de punir com eficiência os crimes de responsabilidade. Essa nova lei tornou-se o principal instrumento do Ministério Público.

Algum tempo depois, em 1998, foi o mundo jurídico nacional surpreendido com uma lei de vanguarda, a Lei nº 9.613, de combate aos crimes de lavagem de dinheiro, com a permissão de uso dos registros do sistema financeiro estatal para identificação dos ilícitos ali previstos. Essa lei, aprovada no Governo Fernando Henrique, provocou verdadeira revolução – pela primeira vez o legislador brasileiro debruçou-se sobre uma das piores mazelas do país: a grande lavanderia onde era limpo o dinheiro sujo vindo do exterior ou mesmo os valores aqui gerados em empresas de fachada para posterior saída já branqueado.

A iniciativa dessa lei foi fruto de dois importantes antecedentes: primeiro, o movimento da comunidade internacional no combate aos crimes transnacionais, estrangulando a fonte de renda do crime organizado, e, segundo, a assinatura pelo Brasil da Convenção de Viena em 1988, cujos signatários comprometiam-se em combater a corrupção interna nos órgãos estatais, ao tempo em que tipificou como crime a lavagem ou a ocultação de bens oriundos de crimes geradores de grandes lucros. A Convenção só foi promulgada três anos depois pelo Decreto 154/1991.

Foi sob o império dessa lei que nasceu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf, incrustado no Ministério da Fazenda com acanhada estrutura, mas capaz de detectar a grande massa de recursos espúrios que circulava pelo país, sem identificação de origem.

Criaram-se também, dentro do Banco Central, o Departamento de Combate aos Ilícitos Cambiais e Financeiros e o Departamento de Recuperação de Ativos Ilícitos e Cooperação Jurídica Internacional, iniciando-se ali acirrada fiscalização aos doleiros brasileiros que transacionavam livremente em negócios camuflados.

Com a expansão dos órgãos de controle financeiro, proporcionada pela nova lei, a Justiça Federal, em 2003, teve necessidade de especializar varas federais para processar e julgar os crimes de lavagem e de ocultação de bens, produtos geralmente advindos da corrupção estatal com o desvio de dinheiro público.

Os órgãos incumbidos de combater a lavagem de dinheiro, ao abrigo da nova legislação, sofreram potentes ataques por parte de profissionais em escusos negócios financeiros e dos que se nutriam com os vultosos lucros de um submundo oculto na desídia estatal. Mas com competência conseguiram vencer todas as críticas e as acusações, inclusive a de inconstitucionalidade, sendo capazes de avançar pelos obscuros meandros da corrupção estatal, inserir providências de maior eficiência na identificação e na persecução dos crimes de lavagem, ampliando-se com a Lei nº 12.683/2012 no Governo da Presidente Dilma.

O certo é que, nos últimos vinte anos, outras leis foram sendo editadas, complementando o cerco em defesa do patrimônio público. Dentre as mais importantes destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101/2002, ponto luminoso na administração financeira e orçamentária do Estado Brasileiro; a Lei da Ficha Limpa – Lei Complementar 135/2010, fruto de reivindicação popular atendida pelo legislador, que exigiu mais rigor para as candidaturas políticas, retirando do processo eleitoral os candidatos já condenados;  a Lei de Acesso à Informação – Lei 12.527/2011, respaldada na observância ao princípio constitucional da publicidade (artigo 37 e incisos XXXIII XXXIV do artigo 5º), poderoso instrumento de transparência da administração estatal.

Nesse momento histórico, de grande criação legislativa, bafejado pelos ventos da pós-modernidade democrática, munida a nação com órgãos de controle mais independentes e estruturados e profícua legislação preocupada com a proteção do patrimônio público, o Poder Judiciário pôde despertar do seu sono letárgico e agigantar-se perante a sociedade brasileira para alcançar figurões da República, até então praticamente inimputáveis quando achacavam os cofres públicos.  E sem o pecado original de julgamentos antecedentes, decidiu o Supremo Tribunal Federal, em instância única, a Ação Penal 470, em 2005, o chamado Mensalão.

Esse julgamento mudou a percepção do brasileiro quanto ao crime de corrupção. O país passou a acreditar ser possível mudar o rumo da criminalidade que se entranhou no seio dos órgãos públicos de tal forma que era vista com conformismo, e até com naturalidade, a corrupção política, jocosamente expressa na frase: “rouba mas faz”.

E foi assim que a população em peso foi para as ruas em junho de 2013. Sem apoio partidário, sem lideranças ostensivas, sem apelos corporativistas ou ideológicos, clamava por algo diferente de tudo que até então fora visto: “QUEREMOS JUSTIÇA, BASTA DE CORRUPÇÃO, QUEREMOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE QUALIDADE”.

Uma das consequências desse movimento foi a aprovação, às pressas, de uma lei que dormitava há três anos no Congresso, a Lei 12.846/2013. Com ela foi possível desferir um golpe mortal na corrupção, cujo principal objetivo foi imputar às empresas a responsabilidade pelas transações que ocasionassem prejuízo ao erário, independentemente de culpa de seus donos ou sócios. Se de algum modo beneficiou-se a empresa com transação ilegal ou irregular, auferindo lucro em detrimento do poder público, era passível de punição com pesadas multas ou sanções outras que iriam da sua suspensão até seu fechamento compulsório.

Municiados por uma legislação moderna e combativa, foi possível ao Ministério Público Federal e ao Judiciário realizar um trabalho de enfrentamento lapidar à corrupção.

E foi assim que se chegou à mais longa e bem-sucedida operação policial de combate à corrupção, a qual nos mostrou, de forma pontual, estar em todos os poderes, inclusive na Presidência da República.

O sucesso dessa operação batizada de Lava Jato não pode ser creditado apenas aos protagonistas e bravos combatentes contra o crime organizado; deveu-se a uma sequência de atos e fatos ocorridos no curso de quase trinta anos.

Mais uma vez a Justiça Brasileira mostrou a sua força, punindo exemplarmente o primeiro escalão de agentes públicos, depois empresários e até políticos, em decisões chanceladas nos Tribunais de Segundo Grau e nos Tribunais Superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal.

Os antigos investigadores italianos que trabalharam na Operação Mãos Limpas, enfrentando a Máfia Italiana, nas visitas que fizeram ao Brasil, sempre preveniam sobre a possibilidade de um retrocesso e aconselhavam: é necessário fortalecer a nova realidade com apoio político, porque o Judiciário não será suficiente para mudar o quadro de uma corrupção endêmica tão profunda como a brasileira. E arrematavam dizendo: a justiça trabalha com as consequências, enquanto a política trabalha com as causas.

A euforia dos brasileiros espalhou-se por todo o país, o Brasil passou a ser cumprimentado pela comunidade internacional; e foi no calor dessa euforia que marcharam os eleitores em busca da mudança mais profunda: a renovação nos quadros políticos, para assim se afastarem os fantasmas que se materializaram e destruíram a tão bem sucedida operação italiana.

Elegemos um Presidente que desenvolveu sua campanha com o discurso de combate à corrupção, apresentando esse ponto como sua prioridade. Com o voto foram desbancadas velhas raposas do cenário político, ao tempo em que se provocou avassaladora renovação no Parlamento: 85% no Senado e 52% na Câmara.

Pensou-se que a história não se repetiria trinta anos depois. Afinal, o mundo sofreu profundas mudanças e a democratização das informações pelos novos meios de comunicação aumentou significativamente o papel da imprensa, fazendo surgir eficiente e combativo jornalismo investigativo.

Grande engano político, porque, quando os tentáculos da Lava Jato chegaram à cúpula dos poderes, a história do combate à corrupção começou a mudar de forma vertiginosa, com novo direcionamento adotado pelos três poderes. E a figura central desse poder político, o Presidente da República, desprezando os compromissos de campanha, declarou para a imprensa “Eu acabei com a Lava Jato por não mais existir corrupção no meu governo”.

Embora a Lava Jato signifique apenas uma grande e bem-sucedida operação de combate à corrupção, assiste o país não apenas à destruição dessa operação: estamos presenciando o desmonte de toda a máquina preparada nos últimos trinta anos para afastar no Brasil a corrupção mais severa, e o que é pior, estamos destruindo material e moralmente a credibilidade dos órgãos incumbidos de fiscalizar e proteger o erário.

O Ministério Público Federal sofreu uma implosão interna de grande monta, com uma campanha de descrédito sem precedentes e a adoção de medidas administrativas tendentes a torná-lo um órgão burocrático, como era antes da Constituição de 88. Já se fala até em ser o Chefe do Ministério Público escolhido livremente pelo Presidente da República, fora da carreira.

A Operação Lava Jato é ridicularizada por segmentos sintomaticamente ligados aos que foram punidos por processos penais produzidos no âmago da operação, sem que se considere o fato de quase todas as condenações terem o aval das três esferas do poder hierárquico do Judiciário, algumas, inclusive, bafejadas com a revisão do Supremo Tribunal Federal.

O Poder Judiciário está a sofrer um processo de desmoralização e desrespeito sem precedentes, na medida em que o próprio órgão de cúpula censura de forma despudorada as decisões dos magistrados de primeira instância, principalmente.

O Supremo Tribunal Federal, a cúpula do Poder Judiciário Brasileiro, tem os seus membros desrespeitados e na boca do povo, que não mais o aceita como fiador da ordem jurídica, sendo incompreensível para todo e qualquer mortal o grau de ativismo político que ali aportou.

O Legislativo reúne as poucas raposas sobreviventes, cujo papel deletério foi formar aprendizes de feiticeiro para, de forma sorrateira, promoverem o desmanche das leis construídas a duras penas, como conquista da cidadania.

Com esse propósito, juristas ilustres e brilhantes magistrados, com sólidos conhecimentos jurídicos, estão sendo cooptados, como são os pescadores atraídos pelo canto da sereia, como diz a lenda, para formarem comissões chamadas de alto nível e procederem a um recorte nas leis mais importantes do país no combate à corrupção.

Por exemplo, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) está sendo revista, e o presidente da comissão incumbida da revisão, em uma das últimas entrevistas dadas à Revista Crusoé, declarou: “O grande debate será quanto nós vamos permitir à Polícia e ao Ministério Público invadir nossas vidas para investigar crimes”.

Dentre outros recortes, um chama atenção: é o que só permite sejam enviados ao Ministério Público, a seu pedido, os dados do Coaf, quando houver autorização judicial

A Lei de Lavagem de Dinheiro está sendo objeto de revisão por outra comissão formada por 44 membros, muitos deles advogados de defesa de réus condenados ou ainda processados na Operação Lava Jato.

Entre parlamentares, alguns entendem que a Operação Lava Jato provocou o alargamento de tipos da lei, como por exemplo o caixa dois, com aplicação de condenações injustificadas por inexistir tal tipificação na lei, muito embora tenha o crime de lavagem pena de 3 a 10 anos, enquanto a Justiça Eleitoral o enquadre como crime de falsidade ideológica, punível com pena de 1 a 5 anos.

Outro ponto que praticamente põe por terra a jurisprudência firmada há mais de dez anos no STJ é a questão da prescrição. Para a Corte Superior, o instituto só tem início quando o fato criminoso é descoberto, ou ao final do mandato, quando é possível ter ciência do que se passou na administração que se finda.

Um dos integrantes da comissão, também advogado de defesa de um dos réus no processo de Curitiba, chegou a propor que a ação por lavagem só possa ser ajuizada pelo Ministério Público depois de uma sentença condenatória pelo crime antecedente de corrupção. Outro defensor, como membro da comissão de revisão, propôs reduzir de 10 para 6 anos a pena de reclusão por lavagem de dinheiro.

A Lei de Improbidade Administrativa, de 1992, é a que está em estágio mais avançado de revisão, tendo como objetivo declarado combater o ativismo do Ministério Público, órgão que tem nessa lei seu principal instrumento de combate à corrupção interna do serviço público.

A Lei de Improbidade, tantas vezes esquadrinhada pelo Supremo Tribunal Federal, que já fez uma revisão geral da sua constitucionalidade, e pelo Superior Tribunal de Justiça, que há mais de dez anos vem firmando a sua jurisprudência, está hoje ameaçada.

A proposta de revisão avança para retirar a forma culposa de todas as infrações da Lei de Improbidade. E nós já sabemos o que significa banir a forma culposa dos delitos: é o mesmo que admitir como defesa os velhos chavões: eu não vi, eu não sei, eu não sabia, eu não tive a intenção.

De todos os órgãos alvejados pela sanha destrutiva que paira neste momento no Brasil, os mais atingidos são, além do Ministério Público, os órgãos de fiscalização financeira.

O Coaf, por exemplo, foi o primeiro a ser alvejado pelo Presidente da República. Saiu do Ministério da Fazenda e tornou-se um órgão nômade: foi para o Ministério da Justiça, de lá saiu para ser colocado no Ministério da Economia e dali está agora na estrutura do Banco Central.

A eficiência desse órgão conta hoje, em seu desfavor, todos terem a varredura do Coaf, até mesmo aqueles que, embora tenham moral ilibada, não conseguem deixar de se assustar ao mero pronunciamento dessas quatro letras malditas.

Tenta-se agora desestruturar a Receita Federal, sempre com acusações de haver nos órgãos perseguições ideológicas ou direcionadas para essa ou aquela autoridade, faltando às acusações a necessária transparência capaz de indicar veracidade às alegações. Quinze dias atrás, até o Diretor-Geral da Agência Brasileira de Inteligência – Abin e o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – GSI reuniram-se com queixosos advogados para discutirem sobre o mal proceder da Receita Federal.

A Abin é órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência – Sisbin e cabe-lhe planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar a atividade de inteligência do país.

A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, por seu turno, é órgão específico e singular, subordinado ao Ministério da Economia, e exerce funções essenciais para que o Estado possa cumprir seus objetivos.

Pergunta-se, então, o que tem a ver a Abin e o GSI para discutir com advogados de defesa possível vazamento de informação no âmbito da Presidência da República?

Por último fala-se agora em convocar uma Constituinte para fazer-se uma reforma constitucional ampla e irrestrita.

E nós, cidadãos que sustentamos um punhado não pequeno de servidores estatais, onde ficamos com os nossos anseios de democracia e transparência?

Não combinaram conosco, mas a resposta virá, podem ter certeza.

Fonte: O Estado de São Paulo