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Artigo – Entre câmeras e cartório: O reality Casamento às Cegas e o Direito de Família
Por Rudyard Rios
O artigo analisa por que casamentos em realities e novelas não possuem validade jurídica, destacando a diferença entre encenação artística e o casamento civil previsto em lei.
Programas como Casamento às Cegas têm conquistado o público ao propor encontros que desafiam padrões, conduzindo pessoas a se conhecerem, se relacionarem e, por fim, dizerem “sim” diante das câmeras. Para os espectadores, a emoção é intensa; para os participantes, trata-se de uma experiência transformadora.
No entanto, do ponto de vista jurídico, esse “sim” não equivale a um casamento civil. Ainda assim, o contraste entre a celebração televisiva do reality e os requisitos da lei nos oferece lições valiosas sobre a proteção jurídica da família no Brasil.
Não é apenas nos realities que isso acontece. Muitas pessoas escolhem realizar cerimônias simbólicas em praias, campos ou festas privadas, conduzidas por celebrantes, familiares ou amigos. Esses rituais têm enorme valor afetivo e espiritual, mas não têm validade jurídica se não houver o registro civil.
A semelhança com os programas televisivos é clara: ambos mostram que a dimensão emocional e social do casamento pode existir sem o cartório. Contudo, é apenas com o casamento civil que os direitos e deveres previstos em lei se tornam exigíveis.
O casamento civil e seus requisitos legais
O casamento civil brasileiro é disciplinado pelo CC (arts. 1.511 a 1.590) e pela lei 6.015/1973 (lei de registros públicos). Para sua validade, é necessário o cumprimento de etapas formais: habilitação com proclamas, presença do juiz de paz ou autoridade competente, testemunhas e o registro no livro próprio do cartório.
Essas exigências não são meramente burocráticas: elas existem para garantir segurança jurídica, igualdade de direitos e proteção recíproca entre os cônjuges e seus filhos.
Há quem questione se a multiplicação desses formatos midiáticos não banaliza o casamento. De outro lado, pode-se enxergar justamente o oposto: ao exibir rituais simbólicos, a mídia desperta no público a curiosidade sobre o que realmente constitui um casamento. Muitos passam a compreender que não basta a estética da cerimônia; é preciso o ato civil para garantir proteção jurídica.
Nesse sentido, programas como Casamento às Cegas acabam, indiretamente, valorizando o instituto do casamento civil, pois mostram seus limites e sua importância.
Casamento às Cegas: Do reality ao cartório
Um exemplo atual é o Casamento às Cegas. No programa, os casais se conhecem, fazem suas escolhas e, ao final, podem decidir se desejam seguir juntos. O “sim” televisionado, contudo, tem caráter simbólico e não produz efeitos jurídicos imediatos.
Aqueles que realmente desejam se casar precisam, posteriormente, comparecer ao cartório, realizar a habilitação e celebrar o casamento civil com todos os requisitos da lei. Só assim a união passa a ter validade jurídica.
A distinção entre encenação e juridicidade não é exclusividade brasileira. Em países como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, realities como Married at First Sight seguem lógica semelhante: a cerimônia exibida na TV não tem valor jurídico até que os casais cumpram os requisitos legais junto às autoridades competente. Esse detalhe, muitas vezes desconhecido do público, mostra que o reality, ainda que seja entretenimento, acaba revelando a importância do Direito de Família e do cartório para transformar a emoção em vínculo protegido pela Constituição.
Liberdade artística e respeito ao Direito
A Constituição de 1988 assegura a liberdade de expressão cultural e artística (art. 5º, IX, e art. 220). Por isso, realities e novelas podem encenar casamentos sem que isso represente qualquer afronta à lei. O conteúdo audiovisual cumpre sua função de emocionar, enquanto o Direito mantém sua função de garantir estabilidade, segurança e proteção jurídica às famílias.
Aqui surge uma diferença relevante. O juiz de paz exerce função pública, presidindo casamentos que produzem efeitos jurídicos imediatos. Já o celebrante atua no campo simbólico, podendo conduzir cerimônias em realities ou eventos sociais, sem que isso implique mudança no estado civil dos noivos.
Essa distinção é fundamental: permite que um mesmo profissional, como acontece em alguns casos, atue ora como juiz de paz no cartório, ora como celebrante em contextos sociais ou midiáticos, preservando a integridade da função pública e a liberdade artística.
Lições para o Direito de Família
Ao contrário do que se poderia pensar, Casamento às Cegas não diminui a relevância do casamento civil: ao contrário, ressalta que sem o cartório não há mudança no estado civil. O programa mostra, ainda que de forma indireta, que o casamento é mais do que uma cerimônia: é um ato jurídico que confere direitos, deveres e reconhecimento social.
Conclusão
Realities, novelas e produções televisivas não violam a lei justamente porque não pretendem substituir o casamento civil. O “sim” da televisão tem força simbólica, mas é no cartório que ele encontra validade jurídica.
Assim, Casamento às Cegas nos lembra que o amor pode nascer em qualquer lugar, até diante das câmeras, mas é o Direito de Família que garante que esse amor seja reconhecido, protegido e respeitado pela lei.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. São Paulo: RT, 2021.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
Fonte: Migalhas