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Artigo – A Covid-19 e as medidas de proteção a crianças e adolescentes – Por Pedro de Souza Fialho

28-04-2020

O mundo convive atualmente sob os efeitos clínicos, sociais e psicológicos da Covid-19, em razão do novo coronavírus (Sars-Cov-2), cujo potencial de contaminação justificou a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional no dia 30 de janeiro de 2020, e a subsequente declaração de pandemia no dia 11 de Março de 2020 [1], por meio de ato da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O quadro de emergência sanitária, a recomendar medidas de restrição a circulação e aglomeração de pessoas, impôs a remodelação de várias das rotinas diárias, com as mais variadas estratégias de isolamento social alcançando todos os setores da vida cotidiana. Naturalmente, o tema modificou as estruturas corriqueiras de exercício da Justiça, com mudanças no desenrolar dos processos e procedimentos de todo o sistema de justiça, em todos os seus níveis.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de pronto passou a editar atos normativos com vistas a disciplinar a atuação do Judiciário no período da pandemia, sendo naturalmente seguido por todas as demais instituições, como os Tribunais de Justiça (TJs) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A própria Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) editou a Portaria Conjunta de nº 327/2020, em 18 de março [2], regulamentando o exercício dos funcionamentos essenciais e urgentes de seus serviços.

O primeiro dos atos do CNJ foi a Resolução de nº 313, de 19 de março [3], que pretendeu uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários e garantir o acesso à Justiça no período emergencial. O tema da convivência familiar e comunitária, com enfoque nas medidas de proteção de acolhimento, teve disciplina excepcional por meio da Recomendação Conjunta de nº 01/2020, editada por CNJ, CNMP e Ministérios da Cidadania e da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, documento firmado no último dia 16 [4].

A garantia de continuidade e funcionalidade do sistema de justiça é verdadeira condição de possibilidade para (re)afirmar a essencialidade acesso à Justiça, até mesmo como forma de evitar a proliferação de conflitos em momento de tamanha complexidade para a vida cotidiana.

Todavia não deixa de ser curioso notar que, ao passo em que se disciplinou a atuação essencial do sistema de justiça, órgãos de controle e direcionamento das instituições de logo passam a recomendar a adoção de determinadas posturas e compreensões por parte de seus membros, notadamente nas áreas em que o poder público mantém sob sua responsabilidade e guarida um conjunto particular de pessoas.

A Recomendação Conjunta de nº 01 de CNJ, CNMP e ministérios acima indicados se dirige aos atores do sistema de justiça envolvidos nas atividades de estado afetas a restrição da convivência de crianças e adolescentes no conjunto de suas famílias de origem, dialogando com exercício do direito em ambientes de comunhão de espaço de pessoas sob a tutela do Estado, dentro das unidades de acolhimento institucional, popularmente conhecidos como abrigos.

Analisando a recomendação, é de se observar o papel do documento de emprestar reforço retórico a determinações legais cujo funcionamento é esperado a todo e qualquer tempo, independentemente de qualquer condição de anormalidade no na sociedade. Seu artigo 1º menciona ao longo de nove incisos possibilidades de adoção de medidas e procedimentos emergenciais, sendo os incisos I a IV e IX direcionados a firmar estratégias para evitar a manutenção de crianças e adolescentes dentro das entidades de acolhimento.

O inciso I faz remissão à “precedência de aplicação do artigo 130 do Estatuto da Criança ou do Adolescente (ECA)”, regra a impor a necessidade de se preferir o afastamento de agressor de uma criança ou adolescente do local de convivência, do que o deslocamento dessa criança ou adolescente a um acolhimento institucional em uma entidade. Segue o inciso II a indicar “priorização de procedimentos para concessão de guarda provisória a pretendentes previamente habilitados (…)”, na específica hipótese de crianças e adolescentes que estejam já em estágio de convivência para adoção; em sentido similar, o inciso III quanto a recém-nascidos entregues para adoção nos termos do artigo 19-A do ECA — ato direcionado de entrega por manifestação livre da gestante ou mãe. No inciso IV há indicativo pela reintegração familiar junto à família de origem com quem a criança ou adolescente tenha vínculo.

Os incisos V a VIII guardam correlação específica mais clara com o período de excepcionalidade, disciplinando regime diferenciado de presença dos cuidadores e residentes em entidades de acolhimento institucional, adaptação de seu espaço físico, aumento das possibilidades de acolhimento familiar ou recebimento de acolhidos fora das entidades, por profissionais do serviço e padrinhos afetivos.

O artigo é finalizado com o inciso IX, a dispor que “no período da pandemia, novos acolhimentos deverão ser admitidos apenas em casos excepcionais, respeitando-se o disposto no artigo 34, §1º, do ECA”. Ou seja, preferindo-se sempre o acolhimento familiar ao institucional, e somente efetivando medida de acolhimento em último caso.

Absolutamente sintomático que as regras acima indicadas tenham sido narradas no caput do artigo 1º da Recomendação Conjunta como medidas e procedimentos emergenciais, quando é de rigor notar que os incisos I a IV e IX traduzem apenas e tão somente o que já está descrito na regra estatutária como de essência na aplicação das medidas de proteção de acolhimento a qualquer tempo.

A excepcionalidade de qualquer medida de retirada de criança ou adolescente da convivência familiar é natural à própria medida de proteção de acolhimento em si, como descreve o ECA no §1º do artigo 101, quando define “o acolhimento institucional e o acolhimento familiar como medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar”.

Decorrente de sua expressa natureza — excepcional e provisória — é evidente a prioridade do uso da medida de afastamento do agressor do lar em comum — artigo 130 do ECA, indicado no inciso I da recomendação; bem como a efetivação das medidas de colocação em família substituta, aliás, também expressamente descrito na parte final do mesmo §1º do artigo 101.

Esse texto básico de definição do evento do acolhimento a toda evidência, já traduz o quanto descrito no inciso IX da recomendação conjunta, de modo que novos acolhimentos deverão ser admitidos em casos excepcionais, esteja ou não a comunidade sob os efeitos da pandemia ou emergência sanitária.

Se em um período de excepcionalidade há necessidade e preocupação dos órgãos de gestão e controle da política pública de convivência familiar e comunitária em reafirmar o básico, o essencial das medidas de proteção, talvez se tenha em vista grave e revelador sintoma quanto a aplicação dessas medidas em tempos de “normalidade”.

A retórica (re)afirmatória das condições originais do acolhimento, especificamente posta no momento de excepcionalidade da pandemia da Covid-19, no qual é recomendável a diminuição do contingente populacional de qualquer espaço de convivência, termina por revelar uma aceitação parcimoniosa em proceder a medidas de proteção de acolhimento em desvio a sua configuração original — excepcional e transitória — durante período de normalidade.

A excepcionalidade termina por desvelar, assim, uma incômoda normalidade, muitas vezes naturalizada e não percebida.

Restringir a caracterização excepcional de manejo do acolhimento é admitir a supressão de direitos das crianças, adolescentes e suas famílias, dissociados dos meios mais adequados a lidar com os momentos de crise e dificuldade no exercício da convivência familiar e comunitária.

A excepcionalidade das medidas de acolhimento não é episódica, nem decorre de situações de caráter coletivo: provém da observação das vulnerabilidades e dificuldades enfrentadas por uma determinada entidade familiar. Dar especial atenção às características essenciais de tais medidas não há de ser, por si, meio de combate à disseminação do coronavírus, mas apenas e tão somente cumprimento aos elementos básicos de formatação de tal política dentro dos direitos como descritos no ECA.

Não se trata aqui de lançar a recomendação conjunta à imprestabilidade, ou deslegitimar os propósitos de sua edição, até mesmo pela condição de extrema complexidade e ineditismo do momento presente, e pelo restante de seu conteúdo de especial importância em tema que carece de um déficit de regulamentação. Mas absolutamente importante pensar a realidade do direito dentro da amplitude de seus momentos, passado, presente e futuro.

É de especial valor, em momentos absolutamente desafiadores como o presente, refutar a ignorância e a boa vontade pouco esclarecida, como já o dizia Albert Camus quando lidando com elaborações quanto a períodos excepcionais em meio a eventos extremos similares ao coronavírus:

“O mal que existe no mundo provem quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons que maus, e na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a clarividência possível [5].

Em nada aproveita a boa compreensão dos direitos da criança e do adolescente referendar direitos e perspectivas comuns a todo e qualquer tempo, como se de importância maior dentro da excepcionalidade sanitária do presente, terminando por reforçar perniciosa retórica de admissão de acolhimentos desnecessários durante tempos de normalidade.

Toda a discussão poderia também se resumir a um questionamento simples: passado o período de pandemia e com a natural revogação da recomendação discutida, serão admissíveis práticas que deslegitimem a tônica com que foram descritas as possibilidades de aplicação das medidas de proteção durante esse momento excepcional?

Fonte: Consultor Jurídico