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Artigo – Correio do Estado – Lições da herança do Gugu – Por Thiago Gomes da Silva

18-02-2020

A partir do momento em que alguém torna-se pessoa pública, infelizmente, a sua vida privada acaba transformando-se em pública também, mesmo depois da morte. Tanto que a milionária herança deixada pelo apresentador de televisão Gugu Liberato virou matéria de noticiários e tema de discussão em redes sociais. Não poucos são aqueles que têm se arvorado no direito de opinar se houve ou não injustiça no suposto testamento deixado pelo apresentador. Na manifestação de última vontade, em tese, a sua aparente companheira teria sido preterida. 

Por óbvio, não caberá aos opinadores, mas ao Judiciário pacificar a questão, dizendo o direito de cada um – filhos, companheira(?), mãe, sobrinhos, etc. Mas, a situação posta é oportuna, à medida em que oferece, a nós “mortais”, algumas lições importantes. 

Inicialmente, não se pode perder de vista – e isso por certo será objeto de discussão prévia nas chamadas vias ordinárias, lá no inventário do apresentador – que pelas normas sucessórias brasileiras ninguém é inteiramente livre para testar. Se existem herdeiros legítimos necessários – quais sejam os descendentes, cônjuges/companheiros (a depender do regime de bens), ou ascendentes, todos aqueles postos pela lei (artigo 1.829 do Código Civil), o autor da herança só poderá dispor em testamento da metade de seus bens, ou seja, da metade da parte a ele disponível, após a meação. Reserva-se a outra metade para ser partilhada entre os herdeiros, a fim de que não sejam de todo prejudicados pela liberalidade do testador em favor de terceiros.

No caso da personalidade ora lembrada, o que também está gerando polêmica é se a mulher, mãe dos filhos dele, com a qual se diz não era casado, tem ou não direito a uma parcela da herança. Se ela era companheira ou não, se viviam realmente em união estável…  Mas, deixando a polêmica   particular de lado, é possível algumas reflexões.

O Código Civil não privilegiava companheiros em igualdade com cônjuges, tratando-os de forma diferenciada, podemos até dizer discriminatória. Tal anormalidade levou o Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário 878.694/MG (Tema 809), em repercussão geral, declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC, dispositivo criador da diferenciação. 

Decidiu a Suprema Corte que “no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil”. Desde então, companheiros passaram a concorrer com descendentes e ascendentes do autor da herança em igualdade de condições.

Outro ponto que se sobressai seria a existência ou não de união estável. Em casos tais há herdeiros, especialmente descendentes oriundos de relacionamentos anteriores, e mesmo pais, irmãos, etc, que acabam se levantando em questionamento da união para, em última análise, tentar um quinhão maior da herança, afinal, quanto maior o rol menor será a porção para cada um. 

Para o reconhecimento da união estável, morar em endereços diferentes por si só não descaracteriza a condição, prevalecendo o ânimo, a intenção de constituir família. Não cabe aqui conjecturar a existência ou não de contratos, pois isso demandaria uma outra análise.

É preciso, sim, saber se existia convivência do casal de forma contínua e duradoura. Lembrando que não há regra quanto o tempo desse convívio para que ocorra o seu reconhecimento. De um modo geral têm-se como requisitos para a caracterização a estabilidade da união, a sua continuidade, a sua publicidade e o propósito de constituir família.

Em sendo admitida a união estável com certeza haverá repercussão patrimonial. E no caso, aplicar-se-á o regime da comunhão parcial de bens. Aqui nasce outro ponto de discórdia:  haverá meação nos bens adquiridos de forma onerosa na constância do “casamento” e concorrência com outros herdeiros quanto aos bens particulares do “de cujus”.

Exemplificando, há o episódio público de um ator e diretor de televisão que morreu em 2012. Depois de prolongada briga judicial entre três filhas de relacionamentos anteriores do morto e a última companheira, no ano passado a Justiça reconheceu a união estável. Com isso ela deverá ficar com a meação e parte da herança (lá pelas bandas de R$ 20 milhões) e a parcela restante dividida entre as filhas.

Na prática, contendas entre herdeiros, e muitas vezes entre herdeiros legítimos e testamentários, servem apenas para lavagem de roupas sujas acumuladas na própria família e para arrastar a tramitação de um inventário por anos a fio. Para aqueles que preferem a pacificação há a opção do inventário extrajudicial, permitido pela Lei 11.441/07. 

Não havendo menores ou incapazes e sendo todos concordes quanto a partilha, este é o caminho mais fácil e mais rápido. Pela lei, quando havia testamento só se podia eleger a via judicial. Agora, tribunais têm admitido interpretação mais elástica para aceitar que mesmo com testamento, e desde que haja concordância entre as partes envolvidas quanto aos termos, seja possível a via simplificada.

Fonte: Correio do Estado