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ConJur – Artigo: Aspectos jurídicos de sociedades com patrimônio líquido negativo (parte 2) – Por Leonardo de Moraes e Castro, Thalita Vani, Isabella Panisson e Lya Maeda
Clique aqui e confira a parte 1.
Riscos falimentares e impactos nas demonstrações financeiras
No segundo artigo da série “Aspectos jurídicos relevantes de sociedades com patrimônio líquido negativo no Brasil” nos limitaremos a abordar os riscos relacionados a pedidos de falência, impactos nas demonstrações financeiras e questões contábeis aplicáveis às sociedades com patrimônio líquido negativo (PL Negativo).
Inicialmente, cumpre notar que a recuperação judicial, extrajudicial e falência de sociedades empresárias no Brasil é atualmente regida pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, conforme alterada (LREF). Assim, de acordo com o caput do artigo 94 da LREF, temos:
“Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:
I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;
II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal;
III – pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recuperação judicial:
a) procede à liquidação precipitada de seus ativos ou lança mão de meio ruinoso ou fraudulento para realizar pagamentos;
b) realiza ou, por atos inequívocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar credores, negócio simulado ou alienação de parte ou da totalidade de seu ativo a terceiro, credor ou não;
c) transfere estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo;
d) simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de burlar a legislação ou a fiscalização ou para prejudicar credor;
e) dá ou reforça garantia a credor por dívida contraída anteriormente sem ficar com bens livres e desembaraçados suficientes para saldar seu passivo;
f) ausenta-se sem deixar representante habilitado e com recursos suficientes para pagar os credores, abandona estabelecimento ou tenta ocultar-se de seu domicílio, do local de sua sede ou de seu principal estabelecimento;
g) deixa de cumprir, no prazo estabelecido, obrigação assumida no plano de recuperação judicial.”
Assim, diferentemente do que ocorre em determinadas jurisdições, para o qual o tema ganha significativa relevância, nota-se que a mera existência de PL Negativo não é hipótese suficiente para legitimar pedidos de falência de determinada sociedade empresária no Brasil. A LREF foca em situações de insolvência, elencando hipóteses de inadimplemento de dívidas e de prática de determinados atos que demonstrem, de alguma forma, tentativa de burla aos credores ou aos órgãos públicos.
Destacamos que, pelo artigo 97 da LREF, podem requerer a falência do devedor: (1) o próprio devedor, na forma dos arts. 105 a 107 de referida lei; (2) o cônjuge sobrevivente, qualquer herdeiro do devedor ou o inventariante; (3) o cotista ou o acionista do devedor na forma da lei ou do ato constitutivo da sociedade; ou (4) qualquer credor. Assim, reforça-se que o pedido de falência somente inicia-se por pedido próprio do devedor e terceiros desde que pessoas a ele vinculadas (cônjuge, herdeiros, inventariantes, sócios) ou por pedido de credor cujo crédito não foi devidamente satisfeito.
Deste modo, ainda que determinada sociedade possua PL Negativo, caso ela continue a cumprir com suas obrigações e pagar seus credores, não há hipótese na lei que justifique o seu pedido de falência. De outro lado, o PL Negativo pode ajudar a comprovar a situação econômico-financeira da empresa para alguns pleitos dentro da LREF, quando pertinentes.
Ainda, não se deve confundir a responsabilidade pessoal e eventual extensão dos efeitos da falência a sócios e administradores com a responsabilidade dos administradores por seus atos, analisados acima. No caso de falência, há previsão específica sobre LREF, como pode ser visto abaixo:
“Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil. § 1º Prescreverá em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, a ação de responsabilização prevista no caput deste artigo. § 2º O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento das partes interessadas, ordenar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado, até o julgamento da ação de responsabilização.
Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.
Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).”
Portanto, entende-se que não existe fundamentação na LREF para pedido de falência de sociedade exclusivamente em razão desta apresentar PL Negativo.
Em relação aos impactos nas demonstrações financeiras, até o presente momento, desconhecemos na legislação brasileira norma específica que regule consequências de uma sociedade apresentar PL Negativo em períodos consecutivos, sejam eles meses, trimestres, semestres ou anos de exercício.
Embora não seja uma análise exclusivamente jurídica, ainda que a apresentação de PL Negativo contínuo possa indicar dúvidas quanto a capacidade de continuidade operacional de uma empresa, bem como eventuais empecilhos para contrair empréstimos e financiamentos para a sua operação, algumas sociedades, incluindo companhias abertas, apresentam PL Negativo por anos consecutivos mantendo suas operações por meio de planos e ações visando o reestabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro, de seu consumo de caixa e de sua posição patrimonial. Vale lembrar que existem fundos de investimento e companhias de private equity e venture capital especializadas em investimentos “turnaround“, i.e., que investem exclusiva ou majoritariamente em sociedades com PL Negativo para recuperá-las financeiramente no médio e longo prazo, o que ratifica a possibilidade de uma entidade possuir PL Negativo por mais de um ano de exercício sem que haja penalidade, sanção ou vedação para tanto.
Vale destacar ainda que alguns estudos econômicos atestam que investimentos em sociedades com PL Negativo podem ser interessantes sob a ótica de retorno financeiro e econômico, bem como recomendados por analistas de mercado financeiro, caso os potenciais investidores e/ou analistas vislumbrem uma possível valorização e retomada econômica da empresa [1]. Deste modo, considerando, inclusive, que existe uma estratégia de investimento direcionada às sociedades com PL Negativo, não identificamos — até o momento de conclusão desta série de artigos — normativa impeditiva para apresentação de demonstrações financeiras por sociedade com PL Negativo por exercícios consecutivos, tampouco um limite temporal máximo para tanto.
Portanto, entendemos que não existe no ordenamento jurídico-contábil brasileiro norma específica que estabeleça um limite temporal para uma sociedade apresentar PL Negativo em suas demonstrações financeiras, tampouco norma sancionadora que impeça ou limite essa apresentação a determinado prazo, afora os casos explicados no nosso Artigo 1.
Importante destacar que, sob a ótica contábil, o Pronunciamento do CPC 00 define patrimônio líquido como o valor residual dos ativos da entidade depois de deduzidos todos os seus passivos. Quando o patrimônio líquido da empresa apresenta um valor negativo, a parcela deste passivo excedente aos ativos caracteriza a situação também conhecida pela contabilidade como “passivo a descoberto” (isto é: os passivos assumidos pela empresa não estão todos lastreados por ativos).
Por conta das Resoluções CFC 847/1999 e CFC 1.049/2005, a sociedade que que encerrava o exercício social com PL Negativo deveria utilizar a denominação “passivo a descoberto” para representar a soma dos saldos das contas do passivo a maior que as do ativo:
“(…)
3.2.2.1 – O Balanço Patrimonial é constituído pelo Ativo, pelo Passivo e pelo Patrimônio Líquido.
a) o Ativo compreende os bens, os direitos e as demais aplicações de recursos controlados pela entidade, capazes de gerar benefícios econômicos futuros, originados de eventos ocorridos;
b) o Passivo compreende as origens de recursos representados pelas obrigações para com terceiros, resultantes de eventos ocorridos que exigirão ativos para a sua liquidação;
c) o Patrimônio Líquido compreende os recursos próprios da Entidade, e seu valor é a diferença positiva entre o valor do Ativo e o valor do Passivo. Quando o valor do Passivo for maior que o valor do Ativo, o resultado é denominado Passivo a Descoberto. Portanto, a expressão Patrimônio Líquido deve ser substituída por Passivo a Descoberto.”
Após a Resolução CFC nº 1.283/2010, que revogou a referida normativa contábil, não é mais necessário a troca da nomenclatura das contas quando da verificação do PL Negativo para “passivo a descoberto”.
Não obstante a terminologia contábil para definição do tema, cabe ressaltar que a estrutura das contas para apresentação das demonstrações contábeis não é fixa, ou seja, quando a soma dos saldos das contas do passivo for maior que a soma dos saldos das contas do ativo, a contabilidade pode utilizar a denominação “passivo a descoberto” tal como “patrimônio líquido negativo“.
Ademais, conforme previsão do CPC 02, as demonstrações financeiras exigem ajustes apenas nos casos de a moeda funcional [2] (i.e., moeda do ambiente econômico que a entidade opera) não seja em reais, nada mencionando casos envolvendo a ocorrência do PL Negativo da entidade. Ou seja, não há CPC equivalente que demande os referidos ajustes para empresas com PL Negativo.
Por fim, importante salientar que inobstante a existência do PL Negativo, algumas sociedades estão sujeitas à elaboração e apresentação da demonstração das mutações do patrimônio líquido (DMPL) que inclui a demonstração de lucros ou prejuízos acumulados (DLPA). Ainda que o artigo 186 da Lei das S.As [3] permita a inclusão da DLPA na DMPL, as normas brasileiras de contabilidade exigem a DMPL como uma demonstração obrigatória de ser publicada [4].
Portanto, ao contrário do que pode acontecer em outros países da América Latina de economia mais instável, entendemos que não existe no ordenamento jurídico-contábil brasileiro norma específica, sobretudo em lei, que exija alterações ou adaptações nas demonstrações financeiras de sociedade com PL Negativo a ponto de apresentá-las à valor de liquidação ou em situação pré-falimentar quando ausente pedido de falência devidamente aceito e homologado em juízo.
No próximo artigo da série, trataremos sobre a responsabilidade de sócios e administradores em sociedades com PL Negativo no Brasil.
Notas
[1] Confira o estudo “Análise do processo decisório dos investidores e analistas do mercado financeiro em relação às ações de empresas com patrimônio líquido negativo” (CESCON. Jose Antonio; DECOURT. Roberto Frota. COSTA. Luciana de Andrade. Revista Contemporânea de Contabilidade, Florianópolis, v. 17, nº 43, p. 51-70, abr./jun., 2020. https://doi.org/10.5007/2175-8069.2020v17n43p51 Acesso em 26/7/2022) que busca identificar as motivações dos investidores e analistas do mercado financeiro ao aplicarem e/ou recomendarem investimentos em empresas com Patrimônio Líquido Negativo.
[2] Caso a moeda de apresentação da entidade que reporta a informação difira da sua moeda funcional, seus resultados e posição financeira devem ser convertidos para essa moeda de apresentação.
[3] Art. 186. A demonstração de lucros ou prejuízos acumulados discriminará: I – o saldo do início do período, os ajustes de exercícios anteriores e a correção monetária do saldo inicial; II – as reversões de reservas e o lucro líquido do exercício; III – as transferências para reservas, os dividendos, a parcela dos lucros incorporada ao capital e o saldo ao fim do período. § 1º. Como ajustes de exercícios anteriores serão considerados apenas os decorrentes de efeitos da mudança de critério contábil, ou da retificação de erro imputável a determinado exercício anterior, e que não possam ser atribuídos a fatos subsequentes. § 2º. A demonstração de lucros ou prejuízos acumulados deverá indicar o montante do dividendo por ação do capital social e poderá ser incluída na demonstração das mutações do patrimônio líquido, se elaborada e publicada pela companhia.
[4] NBC TG nº 26 – Res. CFC nº 1.185/09: companhias de capital aberto deverão apresentar a DMPL. Ademais, de acordo com NBC T 10.19, reformada pela Resolução nº 1.374/11, as entidades sem fins lucrativos também são obrigadas a apresentar a DMPL.
Autores:
Leonardo Freitas de Moraes e Castro é sócio de VBD Advogados.
Thalita De Marco Vani é sócia de VBD Advogados.
Isabella Fochesatto Panisson é associada de VBD Advogados.
Lya Doria Maeda é associada de VBD Advogados.
Fonte: ConJur