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Artigo – Arrolamento de imóvel residencial do devedor pela Fazenda é medida arbitrária – Por Eduardo Moreira Reis
O arrolamento administrativo tributário, previsto no artigo 64 da Lei 9.532/1997, tem como objetivo garantir a satisfação dos créditos tributários. É uma medida preventiva de controle da evolução patrimonial dos contribuintes cujo débito para com o Fisco supere 30% do patrimônio e que, consolidado, alcance montante mínimo de R$ 500 mil (valor posteriormente elevado para R$ 2 milhões). O arrolamento tem também a função de medida preparatória da ação cautelar fiscal, criada pela Lei 8.397/1992. E embora seja um ônus administrativo pessoal e não constitua uma medida constritiva de bens em sentido estrito, é averbável na matrícula imobiliária. Torna-se, assim, um ônus obrigacional com publicidade registral.
O que defendemos no presente texto é que o arrolamento de bens procedido pela Fazenda Pública Federal sobre o único bem imóvel residencial do contribuinte, legalmente qualificado como bem de família, é medida arbitrária, que, embora não se confunda com a penhora ou outra forma de constrição patrimonial, não tem suporte legal.
A impenhorabilidade do único imóvel residencial, bem de família por definição legal, é matéria pacífica no Direito brasileiro. O alcance de tal proteção, que se funda no direito social à moradia previsto no artigo 6º da Constituição Federal, é de tal abrangência que o STJ já decidiu que se trata de direito fundamental, não admitindo nem mesmo a renúncia pelo proprietário (REsp 1.200.112/RJ, rel. ministro Castro Meira, 2ª Turma, DJe 21/8/2012; REsp 828.375/RS, rel. ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, DJe 17/2/2009).
A proteção à moradia prevista como direito social na Constituição Federal é regra de eficácia plena, e como tal deve ser efetiva. Nessa linha lógica, não se pode subtrair à família o direito de alienar o bem de família e adquirir outro, que também terá o mesmo benefício legal, descabendo falar em fraude à execução. Mesmo porque a declaração de invalidade do negócio simplesmente retornaria o bem para o seu status de impenhorável, não havendo nem sequer interesse de agir do Fisco. A jurisprudência tem afastado as pretensões fiscais de caracterização de fraude à execução na alienação do bem de família, exceto quando há prova de má-fé, como nos REsp 976.566/RS e REsp 846.897/RS, ambos da 4ª Turma do STJ.
O arrolamento administrativo tributário, como já destacado, tem como objetivo garantir a satisfação dos créditos tributários. Ora, se o objetivo da medida é garantia da satisfação do crédito, não há qualquer sentido em se manter no rol de bens controlados pelo Fisco um bem impenhorável. O acórdão a seguir, do TRF-1 ilustra bem a questão:
“TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO
Numeração Única: 0007342-56.2007.4.01.3200
REEXAME NECESSÁRIO N. 2007.32.00.007439-7/AM
EMENTA – ADMINISTRATIVO. ARROLAMENTO DE BENS. ART. 64 DA LEI 9.532/1997. BEM DE FAMÍLIA. PROTEÇÃO LEGAL. LEI 8.009/1990. EXCLUSÃO DO IMÓVEL.
1. O art. 64 da Lei 9.532/1997 trata do arrolamento administrativo tributário, cuja finalidade é garantir a satisfação dos créditos tributários. Constitui desmembramento da medida cautelar fiscal na esfera administrativa e possibilita o controle da evolução patrimonial dos contribuintes, cujo débito para com o Fisco supere 30% do patrimônio e que, consolidado, alcance montante mínimo de R$ 500.000,00.
2. Conforme disciplina a Lei 8.009/1990, o imóvel bem de família é impenhorável e não responderá por nenhum tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, ressalvadas as hipóteses legais que permitem sua oneração.
3. Remessa oficial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por unanimidade, negar provimento à remessa oficial, nos termos do voto da relatora.
Brasília/DF, 30 de setembro de 2011.
Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso – Relatora”.
O argumento fiscalista em prol do arrolamento do bem de família (que já encontrou respaldo no STJ) é que o arrolamento fiscal não implica em qualquer tipo de oneração dos bens em favor do Fisco, tampouco medida de antecipação da constrição judicial a ser efetivada na execução da Dívida Ativa. Assim sendo, o arrolamento de bens não se confundiria com a penhora.
No entanto, a nosso ver, tal argumento está superado pelas seguintes razões: o arrolamento fiscal é um ônus administrativo que passa a ter publicidade de caráter real quando é inscrito no registro de imóveis. E embora não se confunda com a penhora, a existência da averbação já evoca para um potencial comprador o risco de ter, como terceiro adquirente, que defender o imóvel numa draconiana medida cautelar fiscal, ou numa execução fiscal — o que obviamente afasta o bem do mercado imobiliário. Na prática, é improvável que um comprador escolha um imóvel objeto de arrolamento fiscal em vez de um outro sem tal ônus. E fechar os olhos para tal realidade, data venia, é ater-se estritamente à norma literal, sem avaliar o contexto social ao qual ela se aplica, como recomenda a chamada “teoria tridimensional do Direito”. Ou seja, o arrolamento fiscal não retira, mas de fato prejudica, e muito, a disponibilidade do imóvel. Trata-se de situação comparável à averbação, na matrícula do imóvel, de decreto de utilidade pública, saldo devedor de negócios antigos, penhoras, prenotações registrais caducas, citações de ações e outros ônus pessoais com eficácia real que igualmente não impedem em absoluto a venda do imóvel, mas na prática desestimulam a quase totalidade dos candidatos à compra de um imóvel, principalmente se se trata da compra de imóvel que será destinado à moradia familiar.
Outro aspecto fundamental para a questão é que em 19 de janeiro de 2015 foi editada a Lei 13.097, que para maior segurança jurídica dos negócios imobiliários no país consagrou o chamado “princípio da concentração dos atos registrais”, no seu artigo 54. Pelo princípio da concentração, somente aqueles ônus ou créditos de terceiros inscritos na matrícula registrária podem ser opostos ao adquirentes de boa-fé, inclusive para fins de evicção. Veja-se:
“Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil;
III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e
IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.
Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel”.
Após a Lei 13.097, passou a ser desnecessário, para o adquirente de imóveis, a extração de certidões de feitos ajuizados e pesquisas diversas sobre a existência de créditos de terceiros contra o vendedor, inclusive fiscais. Se tais direitos ou ações não constam da matrícula do imóvel, não são oponíveis ao comprador. A contrário senso, quaisquer ônus ou publicização de direitos de terceiros na matrícula representa para o adquirente um risco cuja ciência é presumida de forma absoluta, dado o princípio da publicidade registral. Note-se que o fato de um ônus ser inscrito antes ou depois da lei não o torna mais ou menos gravoso, apenas torna mais evidente a oponibilidade ao adquirente.
Antes da Lei 13.097, já era nítida a discrepância entre a impossibilidade de penhora do bem de família — e consequentemente o direito do titular de alienar o bem e sub-rogar o valor em outra moradia — e a averbação do arrolamento fiscal de tal imóvel no registro imobiliário, dificultando a negociação do bem com terceiros. Agora, vigente a Lei 13.097, com o princípio da concentração orientando as transferências de imóveis, a averbação de um arrolamento fiscal na matrícula, embora ainda não se confunda com a penhora ou a indisponibilidade, na prática representa uma indisponibilidade de fato perante o mercado imobiliário.
Além de tal importante aspecto, sabe-se que o Fisco federal já tem outros instrumentos para a total ciência acerca da alienação de bens imóveis do contribuinte, como a DOI (Declaração de Operações Imobiliárias), instituída pela Lei 10.426/2002 e obrigatoriamente feita pelos tabelionatos e cartórios de registro de imóveis em todas as operações envolvendo imóveis, e a Dimob (Declaração de Informações sobre Atividades Imobiliárias), instituída pela Instrução Normativa RFB 1.115/2010 e feita pelas pelas pessoas jurídicas que negociam ou administram imóveis — declarações essas cuja omissão é severamente apenada pela legislação tributária. Ou seja, para acompanhamento de eventual alienação, é totalmente dispensável, para a RFB, a inclusão do imóvel impenhorável em procedimento de arrolamento e igualmente a averbação deste na matrícula do imóvel.
Portanto, percebe-se que, na prática, o arrolamento de imóvel é um bis in idem para o Fisco, que já recebe informações de transferências imobiliárias por meio da DOI e da Dimob. E envolvendo bem de família, é obstativo do direito de sub-rogação do bem de família em outro bem, configurando sanção política do Fisco contra o contribuinte, meio oblíquo de constrangê-lo à satisfação do crédito tributário e cerceador do direito à impenhorabilidade do bem de família, afrontando o artigo 6º da Constituição Federal.
Em outros termos, se o bem de família não é penhorável, não deveria jamais compor um rol de garantias fiscais, até por total desnecessidade ou ineficácia. E se o Fisco já tem sob controle a alienação de tal bem de família por outros instrumentos, como a DOI e a Dimob, dificultar a alienação do bem ou sub-rogação do bem em outro configura meio oblíquo de constrangimento ao pagamento de tributos, ou seja, sanção política.
Por tais razões, entendemos que o posicionamento do STJ, já manifestado em algumas decisões, está superado quanto ao arrolamento de bens feito pelo Fisco federal que recaia sobre o único imóvel residencial do contribuinte. Tanto pelo princípio da concentração reforçado pela Lei 13.097, que atribuiu importância e visibilidade ainda maiores à averbação de ônus pessoais na matrícula do imóvel, quanto pela superveniência à Lei 9.532/1997, criadora do arrolamento, da Lei 10.426/2002, que instituiu a DOI e, e também da Instrução Normativa RFB 1.115/2010, que instituiu a Dimob, ambos meios de controle do tráfico imobiliário pela Fazenda Pública Federal. E ainda em face da evidência de que um bem que não se presta a qualquer garantia ou excussão em execução fiscal e cuja alienação, exceto em caso de comprovada má-fé, não configura fraude à execução, não deve compor um rol de garantias fiscais.
Eduardo Moreira Reis é advogado especializado em Direito Imobiliário e Urbanístico.
Fonte: Conjur