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Artigo – A alienação fiduciária de bem imóvel e suas extravagâncias – por Mauro Antonio Rocha
O instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia foi retalhado e desfigurado pelas alterações introduzidas na Lei nº 9.514/1997. O autor revela os defeitos conhecidos e convida o leitor a descortinar alguns outros que ainda não haviam sido inferidos. As lacunas legais são suficientes para “desorientar os especialistas, minar a segurança jurídica e turbinar a exposição da garantia ao crivo e às interpretações judiciais”.
A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL E SUAS EXTRAVAGÂNCIAS
O instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia chega ao final do ano da graça de 2018 retalhado e desfigurado pelas alterações introduzidas na Lei nº 9.514/1997 que, no geral, além de ressaltar os defeitos conhecidos e descortinar alguns outros que ainda não haviam sido inferidos, deixaram lacunas suficientes para desorientar os especialistas, minar a segurança jurídica e turbinar a exposição da garantia ao crivo e às interpretações judiciais.
Não bastasse isso, procedimentos anômalos de contratação e execução da garantia fiduciária foram inseridos em leis extravagantes, especialmente pela Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, que introduziu dispositivos específicos na Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009, com o intuito de adequar o instituto às operações imobiliárias no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida realizadas com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR e pela Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017, que, ao tratar das garantias constituídas em contrato de abertura de limite de crédito e operações dele derivadas, alterou radicalmente os contornos originais da garantia fiduciária imóvel.
Vencimento antecipado da dívida
No primeiro caso, o artigo 66 da Lei nº 13.465/ 2017 – resultante da conversão da Medida Provisória nº 759/2016 – acrescentou os artigos 7º A, B e C à Lei nº 11.977/2009 para o fim de:
(I) acarretar o vencimento antecipado da dívida decorrente de compra e venda com cláusula de alienação fiduciária em garantia firmado, no âmbito do PMCMV, com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, na hipótese de atraso superior a noventa dias no pagamento dos encargos contratuais e legais, inclusive tributos e contribuições condominiais que recaírem sobre o imóvel;
(II) vencida antecipadamente a dívida, intimar o devedor – por intermédio do oficial de registro de imóveis competente – para satisfazer no prazo de 15 dias previsto no § 1o do art. 26 da Lei no 9.514/97, a integralidade da dívida, compreendendo a devolução da subvenção recebida, devidamente corrigida, com a resolução automática e de pleno direito do contrato e averbação da consolidação da propriedade em nome do FAR após o decurso do prazo acima sem o pagamento da dívida.
Os procedimentos acima expostos são específicos, divergentes do rito adotado pela lei e, a rigor, excluem a possibilidade de o devedor purgar a mora para o fim de convalescer o contrato, revogando – ao menos para a operação tratada – o disposto nos parágrafos primeiro e quinto do artigo 26 da Lei nº 9.514/1977, que preveem a intimação do devedor para “satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento[…]”, após o que “convalescerá o contrato de alienação fiduciária”.
Condomínios, loteamentos – intimação ficta prescinde a pessoal?
Para além disso, a redação do § 6º do artigo 7º C contém uma particularidade que distorce e inova a lei processual vigente, ao autorizar que “nos condomínios edilícios ou outras espécies de conjuntos imobiliários com controle de acesso” a intimação ao devedor fiduciante para o pagamento da dívida seja feita diretamente ao “funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência” sugerindo, numa interpretação sistemática do artigo em questão, que a intimação ficta prescinde da tentativa prévia de intimação pessoal ou da suspeita de ocultação do devedor.
Sem a pretensão de discutir o mérito das alterações aludidas, é notável que a permissão legal de intimação do funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência nos condomínios ou loteamentos de acesso controlado requer – nos termos do artigo 252 e seu parágrafo, do Código de Processo Civil – ao menos duas tentativas de intimação pessoal e a suspeita razoável e motivada de ocultação do devedor e se perfaz com a intimação de que “voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar”. No mesmo sentido, o § 3o B do art. 26 da Lei 9.514/2017, adota o procedimento da lei processual para admitir que, naquelas mesmas condições, o agente notificador intime o funcionário da portaria de que “no dia útil imediato, retornará ao imóvel, a fim de efetuar a intimação, na hora que designar […]”, conforme previsto no § 3o A anterior.
Crédito rotativo e a garantia “guarda-chuva”
No segundo caso – operação de abertura de crédito rotativo – dispõe o artigo 7º da Lei nº 13.476/2017 que, no caso de alienação fiduciária de bem imóvel, serão inaplicáveis, naquilo que nos interessa, os incisos I, II e III do caput do art. 24 da Lei nº 9.514/1997, significando que nos contratos relativos às operações tratadas não se informará o valor do principal da dívida, bem como o prazo, as condições de reposição, taxa de juros e encargos incidentes – requisitos obrigatórios para os demais contratos que adotem a garantia fiduciária.
De outro lado, a lei requer a inclusão de cláusula contratual de “previsão de que o inadimplemento de qualquer uma das operações faculta ao credor, independentemente de aviso ou interpelação judicial, considerar vencida antecipadamente as demais operações derivadas, tornando-se exigível a totalidade da dívida para todos os efeitos legais”, excluindo, também aqui, a possibilidade de purgação da mora para o fim de convalescer o contrato, desautorizando o disposto nos parágrafos primeiro e quinto do artigo 26 da Lei nº 9.514/1977.
Finalmente, o artigo 9º da referida Lei nº 13.476/2017 dispõe que são inaplicáveis os parágrafos 5º e 6º do artigo 27 da Lei nº 9.514/1997, que regem a extinção da dívida e a prestação de contas decorrentes da realização do bem objeto da garantia.
De acordo com os dispositivos expressamente inaplicáveis, nos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel, após a consolidação da propriedade por inadimplemento de obrigação, o bem objeto da garantia é levado a leilão e quando, no segundo leilão, não se apurar lanço igual ou superior ao montante do débito, “considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º ”, isto é, exonerado da obrigação de prestar contas e entregar ao devedor a importância obtida na venda forçada do bem que sobejar ao valor da dívida, dando quitação ao devedor.
Dessa forma, dispõe o referido artigo 9º, “se, após a excussão das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito, o produto resultante não bastar para quitação da dívida decorrente das operações financeiras derivadas, acrescida das despesas de cobrança, judicial e extrajudicial, o tomador e os prestadores de garantia pessoal continuarão obrigados pelo saldo devedor remanescente”.
Mal elaborado, o texto legal denota ao menos dois problemas praticamente insolúveis para a aplicação da norma: (a) de um lado, não informa em que situação poderá despontar tal hipótese uma vez que, na conformidade dos procedimentos vigentes, especialmente do § 2o do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 – não alterado pela lei – o bem imóvel somente será arrematado por lanço não inferior ao montante total e ajustado da dívida ou, não havendo oferta que alcance o valor mínimo legalmente estipulado o credor assumirá a propriedade plena e restará exonerado de prestar contas de uma eventual e futura alienação do bem, não havendo critérios jurídicos conhecidos para a imputação de valor ao bem incorporado ao patrimônio do credor; e (b) a inaplicabilidade do § 5º do artigo 27 da lei de regência implica, por consequência, não só na manutenção da dívida e obrigação do devedor pelo pagamento do saldo remanescente mas, também, na conservação da obrigação do credor de prestar contas e entregar ao devedor o que sobejar – que remanescerá até a venda do bem objeto da garantia – evento para o qual a lei não estabelece prazo, nem condições, inviabilizando a extinção do contrato.
Ao que parece, 2019 marcará o início de um longo período de embates entre credores fiduciários e devedores fiduciantes e estas questões – entre outras muitas que emergirão da aplicação efetiva dessas mutações legais – serão submetidas ao Poder Judiciário, com consequências imprevisíveis para o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia e para a manutenção dos negócios financeiros.
Agora é aguardar para ver.
Fonte: IRIB