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Artigo – A tokenização vai substituir o Registro de Imóveis?
Por Ian Cavalcante – conselheiro federal da OAB e presidente da Comissão de Direito Notarial e Registral do CFOAB
A tokenização imobiliária é, em termos simples, o processo de converter um imóvel – ou direitos sobre ele – em tokens digitais registrados em uma rede blockchain. Cada token funciona como uma fração digital do imóvel, podendo ser negociado em plataformas online. Na prática, é como “dividir” um imóvel em pequenas partes virtuais, representando frações do seu valor, que podem ser vendidas a diferentes investidores. Esses compradores passam a deter uma participação proporcional no bem, com direitos e obrigações definidos em contrato digital. Essa inovação tem ganhado força no Brasil e no mundo como alternativa para democratizar o acesso ao mercado imobiliário – permitindo que pessoas com menos capital invistam em imóveis – e para ampliar a liquidez desses ativos, já que frações podem ser compradas e vendidas com mais agilidade do que um imóvel inteiro. Em outras palavras, a blockchain traz a promessa de um mercado imobiliário mais dinâmico e inclusivo, reduzindo intermediários e custos operacionais, graças à automação de contratos e à transparência das transações digitais.
Apesar dos benefícios potenciais, tokenizar imóveis traz preocupações jurídicas importantes. No Brasil, a propriedade imobiliária é formalizada exclusivamente pelo Registro de Imóveis oficial – um sistema público onde ficam as matrículas que comprovam quem é dono de cada imóvel. Esse princípio, consagrado no Código Civil, estabelece que a transferência de propriedade só se opera mediante registro em cartório. Assim, se um imóvel for “vendido” via tokens fora do sistema oficial, legalmente essa venda não produz efeitos reais. O presidente do ONR (Operador Nacional do Registro de Imóveis), Juan Pablo Correa Gossweiler, vem alertando para o risco de se criarem sistemas paralelos ao registro oficial. Em recente evento, Gossweiler resumiu a questão ao afirmar: “No que tange ao Direito de Propriedade, a tecnologia deve servir ao direito e não o direito à tecnologia”. Com essa frase, ele enfatiza que, no campo dos direitos sobre imóveis, a inovação tecnológica precisa submeter-se às regras jurídicas vigentes, e não o contrário.
O ONR posiciona-se contra tokenizações feitas à margem do registro oficial exatamente porque, hoje, elas carecem de respaldo jurídico. Gossweiler salientou que, sob a ótica legal atual, não há tokenização imobiliária: o verdadeiro dono do imóvel continua sendo quem consta na matrícula do Registro de Imóveis. Ou seja, comprar um token que representa um imóvel não torna ninguém proprietário daquele bem perante a lei. Mesmo que alguém detenha 100% dos tokens de uma casa, se essa transação não passou pela escritura pública e pelo registro em cartório, a situação jurídica do imóvel não muda – o título oficial permanece em nome do antigo dono. Isso gera um risco de “dupla titulação” ou mercado paralelo de titularidade: os tokens podem dar a impressão de múltiplos “donos” ou cotistas de um imóvel, sem valor real perante o sistema legal.
Além da falta de eficácia jurídica, há também riscos práticos e regulatórios na tokenização fora do registro. Autoridades apontam a possibilidade de fraudes – por exemplo, alguém pode emitir tokens de um imóvel sem ser o legítimo proprietário ou vender frações acima de 100% do bem, enganando investidores. Existe também o perigo de lavagem de dinheiro e ocultação patrimonial, já que a negociação de tokens em blockchain sem controle público pode facilitar a circulação de recursos à margem dos mecanismos tradicionais de fiscalização. Outro ponto de alerta é a potencial evasão fiscal: transações imobiliárias tokenizadas e não reportadas oficialmente poderiam driblar tributos que incidem sobre a transferência de imóveis, como o ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis) municipal.
Importante frisar que a preocupação dos registradores não é um rechaço à tecnologia em si, mas um chamado à inovação responsável. O próprio ONR e demais órgãos públicos têm se mostrado abertos a incorporar novas tecnologias desde que respeitados os fundamentos jurídicos. Várias instituições estão debatendo soluções para viabilizar a tokenização de forma alinhada ao ordenamento jurídico. O ONR, por exemplo, solicitou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a criação de uma normatização específica para tokens imobiliários. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já se debruça sobre ativos digitais e valores mobiliários tokenizados. O Banco Central, por sua vez, incluiu o registro de imóveis tokenizados em testes do seu projeto de real digital (Drex), contando com a parceria do ONR e de grandes bancos públicos para viabilizar transações com imóveis tokenizados em ambiente experimental. Ou seja, CNJ, ONR, CVM e Banco Central já discutem caminhos para integrar a tokenização ao sistema registral de forma segura.
Apesar de toda a promessa de inovação, a tokenização não substitui o Registro de Imóveis. Sem a matrícula, não há propriedade. A tecnologia pode — e deve — somar, mas nunca poderá ocupar o lugar do sistema registral, que é o único a conferir segurança jurídica e eficácia plena ao direito de propriedade. O futuro da tokenização depende de sua integração ao sistema oficial. A verdadeira revolução virá quando a inovação tecnológica caminhar lado a lado com a segurança jurídica.
Fonte: JuriNews