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Artigo – 40 anos do divórcio no Brasil: uma história de casamentos e florestas – Por Mário Luis Delgado

23-10-2017

Em 2017, o divórcio completa 40 anos no Brasil. A influência do cristianismo fez com que o divórcio estivesse banido da maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais, situação que perdurou, pelo menos entre nós, até 1977, com o advento da Emenda Constitucional do Divórcio (EC 9/77) e da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77).

O caminho até o divórcio foi extremamente árduo, uma verdadeira “batalha”, na célebre expressão consagrada na obra de Arruda Câmara. Os principais combatentes dessa batalha sempre foram os setores ligados à Igreja Católica. Nas trincheiras divorcistas não se pode deixar de fazer alusão ao deputado e senador fluminense Nelson Carneiro. Hoje, é difícil acreditar, mas se dizia que o divórcio “dissolvia a família”, “reduzia a natalidade”, “aumentava o aborto e a criminalidade infantil”, “comprometia a educação dos filhos, pela ruína da autoridade paterna e da piedade filial”. O divórcio era sintoma da decadência e do egoísmo social, dizia o padre Leonel Franca, em obra que se tornou famosa nos anos 1950.

Até 1977, o casamento era indissolúvel no Brasil, mantendo a legislação brasileira de então os resquícios coloniais das Ordenações do Reino, as quais, impregnadas pelo Direito Canônico, consideravam o casamento um sacramento, sem possibilidade de dissolução.

Há 40 anos, com a Emenda Constitucional 9, de 1977, de autoria do senador Nelson Carneiro, foi finalmente instituído o divórcio, porém com restrições que dificultavam a sua utilização, o que amenizou a ira de setores mais conservadores da sociedade, especialmente aqueles ligados à Igreja Católica. A dissolução do casamento só era possível após prévia separação judicial por mais de três anos ou prévia separação de fato por mais de cinco anos, desde que iniciada antes da data em que promulgada a emenda. O divórcio só poderia ser requerido uma única vez.

A EC 9/1977 permitiu a aprovação, no mesmo ano, da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, a chamada Lei do Divórcio, que disciplinou a matéria no âmbito da legislação civil e processual civil, promovendo as necessárias alterações no Código Civil de 1916[4] e no CPC de 1973.

A Lei 6.515/77 acrescentou o divórcio entre as causas pelas quais se dissolvem a sociedade conjugal e o casamento (artigo 2º), substituindo o desquite pela separação judicial (artigos 41 a 48). Estava regulamentado, assim, no Brasil, o chamado sistema dualista: a separação judicial põe termo à sociedade conjugal, ao passo que o divórcio dissolve o próprio vínculo matrimonial. Fazia-se a distinção entre terminar e dissolver o casamento. O casamento terminava com a separação judicial, mas só se dissolvia com o divórcio.

Quarenta anos depois, verifica-se que nem o casamento como instituição nem a família brasileira foram abalados ou enfraquecidos pelo permissivo legal, posto à disposição de todos, de livremente dissolverem o vínculo conjugal.

Isso me fez lembrar um texto do biólogo Fernando Reinach sobre a importância das queimadas na renovação e fortalecimento das florestas. Aludindo aos grandes incêndios florestais ocorridos recentemente nos EUA, o autor os relaciona com o movimento ambientalista e com a ideia de se manter as florestas intocadas e imutáveis, com normas rígidas de manejo, a ponto de até os incêndios naturais serem banidos. Com isso, se pretendeu tornar estático um ambiente dinâmico. A contenção “de quei­ma­das na­tu­rais fez com que a ca­ma­da de fo­lhas mor­tas au­men­tas­se, e quan­do as quei­ma­das acon­te­ci­am eram in­con­tro­lá­veis. Es­ses in­cên­di­os flo­res­tais pas­sa­ram a ma­tar ár­vo­res que nor­mal­men­te so­bre­vi­vem às quei­ma­das fre­quen­tes e fra­cas, que ocor­rem quan­do a quan­ti­da­de de ma­té­ria mor­ta no so­lo é me­nor. Qu­ei­ma­das fa­zem par­te da vi­da de uma flo­res­ta sau­dá­vel”.

E conclui afirmando que “fo­gos, erup­ções vul­câ­ni­cas, ala­ga­men­tos e morte parecem não so­men­te fa­zer par­te da vi­da da flo­resta, mas são necessários para sua saú­de. Ten­tar man­ter in­to­ca­do e imu­tá­vel um ecos­sis­te­ma é o mes­mo que su­fo­car sua vi­ta­li­da­de. Con­ser­var não po­de ser mais sinô­nimo de imu­ta­bi­li­da­de”.

Assim também se verifica com os casamentos e demais relacionamentos conjugais. Mantê-los intocados e indissolúveis por restrição da lei seria o mesmo que lhes sufocar a respiração, lhes retirar o ar que respiram, impedindo a sua renovação e rejuvenescimento, sugando-lhes a vitalidade. O direito fundamental ao divórcio garante a regeneração da conjugalidade.

Em um passado não tão distante, de monopólio do casamento, como forma de constituição de família, e de proibição do divórcio, muitos relacionamentos se petrificavam em um estado de infelicidade imutável e perpétuo. A indissolubilidade retirava dos parceiros conjugais não apenas a liberdade de recomeçar uma nova vida afetiva, mas também o interesse em reconstruir e transformar um relacionamento que se iniciou sob a promessa (inviável) de perdurar até o resto da vida.

O direito de se divorciar constitui um direito fundamental, emanação da liberdade no âmbito das relações de família. No Brasil, desde o advento da Emenda Constitucional 66/2010, o direito ao divórcio também deixou de ser um direito subjetivo comum, ainda que dotado de fundamentalidade, para se transformar em um direito potestativo, contra o qual nem o outro cônjuge nem o Estado-juiz podem se opor.

A facilidade atual de dissolução dos vínculos conjugais, antes de enfraquecê-los, garante o seu vigor, tornando a conjugalidade mais hígida em substância, marcada agora por uma intensidade plena de afetos, que substitui uma longevidade forçada e vazia.

A dissolubilidade, ainda que em potência, conscientiza os cônjuges sobre a importância do papel de cada um na manutenção, consolidação e fortalecimento dos laços afetivos, sabedores de que o afeto que os une constituirá, sempre e sempre, um “construído”, e jamais um “dado”. Os relacionamentos conjugais são ontologicamente finitos e sua longevidade depende da base afetiva que se constrói e que se renova no dia a dia da convivência.

Nem sempre isso é possível. Acidentes acontecem. Vulcões entram em erupção. O outono derruba as folhas, e o verão provoca as queimadas, mas um novo relacionamento haverá de emergir em substituição ao que foi soterrado pelas cinzas do tempo e da rotina. E como a floresta soterrada pela erupção do Mount St. He­lens, um vul­cão ador­me­ci­do no meio de uma das flo­res­tas mais an­ti­gas dos Es­ta­dos Uni­dos, “se­men­tes so­ter­ra­das ger­mi­na­ram e per­fu­ra­ram a ca­ma­da de cin­zas. Uma ve­ge­ta­ção ri­ca e di­ver­sa atraiu no­vas es­pé­ci­es de in­se­tos e ma­mí­fe­ros. As ár­vo­res co­me­ça­ram a vol­tar. O que im­pres­si­o­nou os eco­lo­gis­tas é que a bi­o­di­ver­si­da­de des­sa flo­res­ta jo­vem é mui­to mai­or que a en­con­tra­da nas flo­res­tas com mais de180 anos na vi­zi­nhan­ça. Aos pou­cos, os eco­lo­gis­tas es­tão con­cluin­do que es­se no­vo es­ta­do da flo­res­ta, um ver­da­dei­ro re­ju­ve­nes­ci­men­to, é in­dis­pen­sá­vel pa­ra a ma­nu­ten­ção de uma flo­res­ta di­ver­sa, ri­ca e sa­dia”.

Parece que os casamentos são como as florestas e o divórcio, como uma espécie de queimada natural, vem cumprindo o seu papel de contribuir, ora para a reconstrução, ora para o renascimento fortalecido dos vínculos conjugais.

Mário Luis Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp), presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB). Tem doutorado em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e mestrado em Direito Civil Comparado pela PUC-SP.

Fonte: Conjur