Notícias
12. CSM decide sobre registro de pacto antenupcial com cláusula de renúncia recíproca ao direito sucessório
Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236
Espécie: APELAÇÃO
Número: 1000348-35.2024.8.26.0236
Comarca: IBITINGA
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236
Registro: 2024.0000961735
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236, da Comarca de Ibitinga, em que são apelantes MARIA TERESA ANTONELLI CALDAS e JOÃO ANSELMO MONTANARI DA CUNHA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE IBITINGA.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Por maioria de votos, deram provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do pacto antenupcial, nos termos do voto do Desembargador Relator Francisco Loureiro. Vencidos os Desembargadores Fernando Torres Garcia, Beretta da Silveira e Xavier de Aquino, que votaram por negar provimento ao recurso. Declararão votos divergentes os Desembargadores Fernando Torres Garcia e Beretta da Silveira.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), ADEMIR BENEDITO(PRES. SEÇÃO DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 1º de outubro de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1000348-35.2024.8.26.0236
Apelantes: Maria Teresa Antonelli Caldas e João Anselmo Montanari da Cunha
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Ibitinga
VOTO Nº 43.544
Registro de Imóveis – Escritura pública de pacto antenupcial que fixa o regime da separação convencional de bens – Cláusula que prevê a renúncia recíproca ao direito sucessório em concorrência com herdeiros de primeira classe, conforme previsão do art. 1.829, I, do CC – Desqualificação pelo Oficial e dúvida julgada procedente, sob o argumento de infringência ao art. 426 do CC, que veda contrato cujo objeto seja herança de pessoa viva – Controvérsia doutrinária acerca da validade da renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial – Validade da renúncia defendida por parte da doutrina, que não vislumbra transgressão a nenhum dispositivo legal (arts. 426, 1.784 e 1.804, parágrafo único, todos do CC) – Distinção entre pacta corvina e renúncia antecipada à herança, que não tem como objeto disposição sobre o patrimônio de pessoa viva – Discussão sobre a legalidade da renúncia antecipada de herdeiro necessário à legítima, antes da abertura da sucessão, que somente seria possível de lege ferenda – Cônjuges devidamente advertidos, por ocasião da lavratura da escritura, a respeito da controvérsia do tema e possibilidade de invalidação futura da cláusula – Registro no Livro 03 do RI obstado em razão de uma única cláusula, impedindo que o pacto como um todo surta efeitos perante terceiros – Validade da renúncia antecipada será avaliada na esfera jurisdicional se a sociedade e o vínculo conjugal terminarem pela morte de um dos cônjuges e se houver concorrência na sucessão – Registro do pacto essencial para que o regime da separação convencional de bens, em sua totalidade, tenha eficácia em face de terceiros – Registro do pacto não significa adesão à legalidade da cláusula de renúncia antecipada, aberta a via jurisdicional para discussão dos interessados, após a abertura da sucessão – Distinção entre a amplitude da qualificação do registrador para o registro constitutivo de direitos reais e para o registro de pacto antenupcial, para fins de eficácia perante terceiros – Apelação provida para determinar o registro do pacto antenupcial.
Trata-se de apelação interposta por Maria Teresa Antonelli Caldas e João Anselmo Montanari da Cunha contra a r. sentença de fls. 81/83, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Ibitinga, que, mantendo a exigência formulada pelo Oficial, negou o registro no Livro nº 3 Registro Auxiliar de escritura pública de Pacto Antenupcial formalizado pelos apelantes.
Alegam os recorrentes, em síntese, que está em vias de ser aprovada legislação que prevê expressamente a possibilidade de renúncia tanto ao direito sucessório concorrencial como à condição de herdeiro.
Pedem, ao final, o registro do pacto antenupcial (fls. 91/105).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 139/142).
Petição dos apelantes a fls. 146/150.
É o relatório.
- De acordo com o Oficial, o registro do pacto foi obstado por afronta ao art. 426 do Código Civil, que tem a seguinte redação:
Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.
Idêntico argumento foi utilizado pela MM. Juíza Corregedora Permanente para julgar a dúvida procedente (fls. 81/83).
Em suma, por conter o pacto em uma de suas cláusulas afronta a norma cogente, se negou acesso ao Livro 3 do Oficial de Registro de Imóveis.
- Respeitados entendimentos diversos, inclusive aquele lançado em precedentes deste Conselho Superior da Magistratura (apelação nº 1022765-36.2023.8.26.0100, julgada em 11/10/2023, e apelação nº 1007525-42.2022.8.26.0132, julgada em 22/9/2023), o caso é de provimento da apelação, embora com observação.
Como ressaltado nos julgados anteriores deste Conselho sobre o tema, é conhecida a controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca da validade da renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial.
Discute-se, em resumo, se no momento da lavratura do pacto antenupcial cabe renúncia dos cônjuges à concorrência com herdeiros de primeira classe, na forma prevista do art. 1.829, I, do Código Civil.
- E é justamente esse intenso debate e a qualidade dos argumentos em ambos os sentidos validade ou invalidade que justificam o registro do título.
Os apelantes buscam registrar pacto antenupcial por meio do qual optaram pelo regime da separação convencional de bens (art. 1.687 e 1.688 do CC).
Na escritura, de modo coerente com o que pretendem que vigore na hipótese de divórcio, ou seja, a total separação de bens, os interessados renunciaram reciprocamente ao direito sucessório concorrencial, por meio de cláusula assim redigida:
“Os outorgantes e reciprocamente outorgados, falando cada um por sua vez, manifestaram o desejo de renunciarem, expressamente, de forma recíproca ao direito sucessório concorrencial, razão pela qual foram devidamente esclarecidos por este Tabelião que atualmente existe grande divergência doutrinária a respeito desta possibilidade sendo certo ainda que a jurisprudência do STJ considera nula essa cláusula por ferir norma de ordem pública, contida no artigo 426 do Código Civil. Mesmo assim, após todas as ciências, desejam deixar registrado que, se a época do falecimento de qualquer um deles, a doutrina ou a jurisprudência permitir, por entenderem não se tratar de pacto corvina, optam por, de fato e de direito, não participarem de futura sucessão um do outro, quando em concorrência com os descendentes ou ascendentes, restando afastada, assim, regra de concorrência dos incisos I e II do artigo 1829 do Código Civil, uma vez que ambos tem seus patrimônios totalmente separados um do outro.
Esclarecem ainda que repita-se tudo foi devidamente esclarecido pelo Tabelião, inclusive a posição atual do STJ sobre a matéria, considerando a inegável existência e plena vigência do princípio da autonomia privada, renunciam reciprocamente ao direito sucessório concorrencial, isentando o Tabelião de todas e quaisquer responsabilidades pelo teor da presente declaração” (fls. 4).
Sucede que o registro do pacto, negado unicamente em razão do teor da cláusula acima transcrita, é necessário para torná-lo oponível a terceiros (art. 1.657 do Código Civil). Sem o registro da convenção antenupcial no Livro nº 3 Registro Auxiliar (art. 178, V, da Lei nº 6.015/73), o regime de bens como um todo escolhido produzirá efeitos apenas entre os cônjuges, gerando situação de grave insegurança jurídica frente a terceiros.
Discute-se acerca de a validade de uma única cláusula ser suficiente para impedir o registro de todo o pacto, que envolve não somente renúncia à herança futura, mas também e sobretudo a adoção do regime da separação convencional de bens.
Sabido que um dos princípios cardeais do nosso Código Civil é o da conservação dos negócios jurídicos, positivado em diversos dispositivos, com destaque para o artigo 184 (utile por inutile non vitiatur).
Disso decorre que ainda que uma cláusula isolada do pacto seja nula, tal circunstância não compromete a adoção do regime da separação convencional de bens, muito menos que sua publicidade se dê pelo ingresso do título no registro imobiliário.
Além disso, diante do teor altamente polêmico da validade da cláusula de renúncia antecipada à herança em concorrência com a primeira classe, se indaga da razoabilidade de que na esfera administrativa se reconheça sua nulidade, antecipando discussão que poderá ser travada na esfera jurisdicional.
Finalmente, se a qualificação pelo registrador de um pacto antenupcial, cujo registro lhe empresta eficácia perante terceiros, tem a mesma abrangência da qualificação de um registro de um direito real, de natureza constitutiva.
- Passa-se ao exame das razões da recusa ao acesso do título.
Embora a nota devolutiva do Registrador e a r. Sentença da MM. Juíza Corregedora Permanente tenham entendido que houve contrato cujo objeto é a herança de pessoa viva (pacta corvina), duvidosa se mostra a violação à norma cogente do art. 426 do Código Civil, como se os contratantes desejassem a morte daquele de quem a sucessão se contratara.
Na verdade, a expressão “pactos sucessórios” envolve diversas modalidades de negócios. Verificam-se três principais espécies de pactos sucessórios: o pacto positivo ou aquisitivo, também conhecido como de succedendo, segundo o qual o autor da herança alienaria o patrimônio objeto de sua herança a terceira pessoa; o pacto negativo, de non succedendo, popularmente conhecido como pacto renunciativo, em que uma pessoa poderia renunciar à sucessão de outra; e, por fim, os atos bilaterais inter vivos, chamados hereditati tertii.
No caso concreto não há propriamente contrato sobre herança de pessoa viva. A vedação legal a tal pacto (pacta corvina) repousa em duas razões. Primeiro, se houver participação no negócio do titular do patrimônio, que ocasionaria violação ao direito potestativo e permanente de revogação de testamento até o momento da morte. Segundo, o estímulo imoral do beneficiário de desejar a morte do disponente.
Na renúncia não se dispõe e nem se cria qualquer ônus sobre a herança. Apenas o potencial herdeiro abdica de tal qualidade antes da abertura da sucessão. O único óbice diz respeito ao próprio herdeiro, e não ao titular do patrimônio, qual seja, o de abdicar de avaliar quanto ao melhor momento da renúncia.
Ao renunciar à herança, o renunciante abre mão de qualquer benefício que poderia ter com o falecimento do autor da herança.
Ao contrário da pacta corvina, a renúncia à herança não deve despertar qualquer desejo de morte do autor da herança quando, do contrário, estaria em acordo com um projeto de vida e de planejamento familiar.
Sobre a necessidade de se dar interpretação restritiva ao art. 426 do Código Civil, Maria Berenice Dias, citando entendimento de Mário Luiz Delgado[1], afirma:
“Ressalta-se a relevância de distinguir, conceitualmente, herança e sucessão. Sucessão constitui o direito por força do qual a herança é devolvida a alguém, enquanto herança refere-se ao acervo de bens transmitidos por ocasião da morte. De tal maneira que a vedação do ordenamento jurídico alcança a herança, ou seja, o acervo de bens, mas não o direito sucessório em si. Não há como confundir os dois institutos. A proibição é de ser feito “contrato” que é um ato bilateral. Já a renúncia é ato unilateral de vontade. Manifestação livre e espontânea de um direito que é seu. Deste modo, não existe qualquer restrição à renúncia de direitos futuros. Até porque são expressas as vedações de renúncias antecipadas (CC 556, 424 e 1.793). E conclui: a restrição à pactuação sucessória não é absoluta e a interpretação do art. 426 do CC deve ser necessariamente restritiva, de modo a abranger apenas a proibição expressa da dicção da lei, qual seja, a de contratar herança de pessoa viva. Vale dizer, o que está vedado de maneira expressa é a cláusula contratual que tenha por objeto “herança” de pessoa diversa das partes contratantes” (Manual das Sucessões – 8ª ed., rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022 p. 266).
Segundo esse entendimento, a cláusula não infringe o art. 426 do Código Civil por duas razões distintas: em primeiro, porque a renúncia, ato unilateral por excelência, não se confunde com contrato; em segundo, porque o dispositivo veda a estipulação relativa à herança que diz respeito aos bens transmitidos por ocasião da morte , silenciando em relação ao direito sucessório disposição legal que justifica a atribuição da herança a alguém.
Sei perfeitamente que parte prestigiosa da doutrina Pontes de Miranda e Clovis Bevilacqua afirma que a vedação legal a pactos sucessórios envolve não apenas negócios onerosos de cessão de herança, como também atos abdicativos.
Nem todo pacto sucessório, porém, é nulo. A própria legislação civil autoriza que a herança de pessoa viva seja objeto de ato ou negócio jurídico, em casos como o da partilha em vida, em que o autor da herança poderá partilhar todo o seu patrimônio com seus herdeiros, ainda em vida, atendendo à sua vontade e respeitando-se a legítima, conforme assim determina o artigo 2.018 do Código Civil, que soa: É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários.
No caso de partilha em vida, expressamente admitida pela lei civil e hoje extremamente em voga sob o rótulo de “planejamento sucessório” nada impede um dos herdeiros abdique de sua quota parte, anda que integre a legítima. Disso decorre que, na prática, já é possível abdicar do quinhão hereditário em negócio jurídico de partilha em vida.
Consequência disso é que a interpretação tradicional deve ceder espaço a uma nova interpretação do alcance da pacta corvina, vedada pela norma cogente do art. 426 do Código Civil.
É por essa razão que a maioria dos modernos Códigos Civis da Europa fez um corte no sentido da milenar vedação moral e jurídica ao pacta corvina, e admite a renúncia antecipada à herança. São os casos da Alemanha (BGB, § 1941), Suíça (Código Civil Suíço, art. 468), Itália (Código Civil Italiano, art. 768, bis ss), França ( art. 929 do Code Civil e Portugal (Lei 48/2018).
Há quem defenda que a renúncia à concorrência sucessória em pacto antenupcial vai de encontro ao que dispõe os arts. 1.784[2] e 1.804, parágrafo único[3], ambos do Código Civil. Esse, todavia, não é o entendimento, por exemplo, de Rolf Madaleno:
“Ocorre que nem o artigo 1.784 nem o parágrafo único do art. 1.804 ou qualquer outro dispositivo do Código Civil brasileiro mencionam só ser possível renunciar à herança depois de aberta a respectiva sucessão, mas referem que a transmissão da herança só ocorre depois da abertura da sucessão, ou seja, em realidade, o parágrafo único do artigo 1.804 do Código Civil apenas proíbe transmitir a herança se o herdeiro renunciou, pouco importando se a renúncia foi antes ou depois de aberta a sucessão, porque o comando legal é de não transmitir a herança a favor de quem renunciou” (Separação convencional de bens, expectativa de fato e renúncia da concorrência sucessória em pacto antenupcial. In Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência, vol. 2; org. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce São Paulo: Atlas, 2021 p. 739/740).
Para essa corrente doutrinária, não há dispositivo legal que proíba a renúncia antes da abertura da sucessão. Enquanto o art. 1.784 do Código Civil preceitua que a transmissão da herança se dá logo após à morte, o parágrafo único do art. 1.804 excepciona essa regra, prescrevendo que a transmissão não ocorre na hipótese de herdeiro renunciante.
Note-se, ainda, que os interessados renunciaram por meio do pacto ora analisado apenas à concorrência com descendentes ou ascendentes (art. 1.829, I e II, do Código Civil), disposição aceita por boa parte da doutrina. Acerca de pactos sucessórios renunciativos, Rolf Madaleno, citando Daniel Bulcar[4], esclarece que “admitir a sua incidência está no cerne da autonomia sucessória, e não pode o Estado, a partir de uma proibição pouco delineada como a do artigo 426 do Código Civil, vedar tais pactos, pois se trata de situação jurídica dúplice, em que aspectos patrimoniais e existenciais se confundem plenamente” (Separação convencional de bens, expectativa de fato e renúncia da concorrência sucessória em pacto antenupcial. In Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência, vol. 2; org. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce São Paulo: Atlas, 2021 p. 742).
Enquanto o herdeiro necessário possui expectativa de direito sobre seu quinhão hereditário, o herdeiro concorrente mantém mera expectativa de fato, tornando possível, também por esse motivo, a renúncia à concorrência, que para ele seria mero benefício vidual[5].
E como ressaltado pelos apelantes em seu recurso, há projeto de reforma do Código Civil que objetiva prever, de forma expressa, a possibilidade de cônjuges ou companheiros renunciarem à concorrência sucessória.
Ou seja, a cláusula em análise, de acordo com boa parte da doutrina, é válida no atual ordenamento e há expectativa razoável de que a futura legislação coloque fim à discussão, admitindo expressamente a possibilidade da renúncia ao direito concorrencial.
A vedação da renúncia antecipada da herança parece não mais condizer com os anseios da sociedade atual. Ora, se o casal opta pelo regime de separação de bens, sua vontade seguirá a mesma lógica de não compartilhar o matrimônio com o fim da relação, seja tal fim operado em vida, ou com a morte. Com mais força ainda, revela a vontade dos cônjuges e companheiros se realiza mediante declaração expressa de vontade.
Evidente que solução de lege ferenda eliminaria toda e qualquer discussão sobre o tema. Ainda sem modificação legislativa, porém, a admissão da renúncia antecipada à herança conta com bons defensores e sólidos argumentos, não havendo, ainda, jurisprudência dominante dos tribunais vedando tal negócio unilateral.
- Nesse panorama, não parece adequado que o Oficial de Registro de Imóveis desqualifique o título, afirmando desde logo sua invalidade.
De igual modo, se mostra temerário que este Conselho Superior da Magistratura, em sede de procedimento de dúvida, cuja decisão tem natureza administrativa e normativa a todos os registradores do Estado de São Paulo, fixe desde logo a nulidade da renúncia antecipada à herança do viúvo em concorrência com os descendentes.
Em outras palavras, a decisão administrativa em caráter normativo se anteciparia à discussão que eventualmente será travada na esfera jurisdicional no momento da abertura da sucessão.
De modo bem simples, negaria em sede de dúvida e natureza normativa o que eventualmente poderá ser admitido na esfera jurisdicional.
Não é demasia ingressar na amplitude do poder qualificador do Oficial de Registro de Imóveis, ao analisar pactos antenupciais que terão acesso ao Livro nº 03.
Em atribuição que se distancia de suas funções usuais tanto é que a inscrição é efetuada em livro auxiliar destinado a atos que não dizem respeito a imóvel matriculado (art. 177 da Lei nº 6.015/73) , negaria o registro do pacto antenupcial, impedindo que toda a avença e não só a cláusula questionada produza efeitos erga omnes.
Note-se que o registro do pacto diz respeito apenas à sua eficácia contra terceiros, pois o negócio jurídico de direito matrimonial já produz plenos efeitos entre os cônjuges a partir da celebração do casamento.
Não tem o registro em questão natureza constitutiva, mas tão somente publicitária do pacto.
Essa a razão pela qual a qualificação dos pactos antenupciais deve ser feita com outro viés e menor rigor quanto a cláusulas que eventualmente possam romper as malhas da lei.
- Note-se que não se afirma e nem se nega nesta via administrativa a validade da renúncia antecipada à herança do cônjuge em concorrência com herdeiros de primeira classe.
Afirma-se, sim, que o pacto antenupcial, lavrado com todas as cautelas e informações possíveis, deve ser registrado na serventia imobiliária.
No futuro, caso o casal venha a se divorciar, a cláusula aqui discutida estará prejudicada. Na hipótese de falecimento de um dos cônjuges sem que haja concorrência com descendentes ou ascendentes (art. 1.829, I e II, do Código Civil), a cláusula também não produzirá efeito algum, pois a herança será atribuída por inteiro ao cônjuge sobrevivente (art. 1.829, III, do Código Civil).
Já em caso de falecimento de um dos cônjuges, havendo concorrência entre herdeiros de primeira classe, caberá ao Juiz do inventário, na esfera jurisdicional, decidir acerca da validade da cláusula, sem afetar as demais disposições da separação convencional de bens.
Dizendo de outro modo, o registro não significa a chancela judicial à validade da cláusula, mas tão somente que não se deve negar eficácia perante terceiros ao pacto antenupcial, até que em momento e na esfera própria a questão da nulidade eventualmente seja arguida e decidida na esfera jurisdicional.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do pacto antenupcial de fls. 3/4.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Nota:
[1] Da renúncia prévia ao direito concorrencial por cônjuges e companheiros. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-abr-07/processo-familiar-renuncia-previa-direito-concorrencial-conjugecompanheiro/.
[2] Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
[3] Art. 1.804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão.
Parágrafo único. A transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renuncia à herança.
[4] Pactos sucessórios: possibilidades e instrumentalização. In: Ana Carolina Brochado Teixeira; Renata de Lima Rodrigues (coord.). Contratos de Família e Sucessões: diálogos interdisciplinares. São Paulo: Foco, 2020.
[5] Separação convencional de bens, expectativa de fato e renúncia da concorrência sucessória em pacto antenupcial. In Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência, vol. 2; org. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce São Paulo: Atlas, 2021 p. 739/740).
DECLARAÇÃO DE VOTO Nº 39.469 (DIVERGENTE)
Registro de imóveis – Dúvida – Pacto antenupcial – Negócio jurídico sobre herança de pessoa viva – Infringência ao art. 426 do Código Civil – Nulidade – Sentido inequívoco da proibição de pactos sucessórios no direito brasileiro – Considerações “de lege ferenda” que não bastam para admitir o ingresso de negócio jurídico nulo – Inscrição que implicaria insegurança jurídica, por depender de futura apreciação jurisdicional, o que contraria a razão de ser do registro público – Sentença bem prolatada – Apelação a que se nega provimento.
Trata-se de apelação (fls. 91/105) interposta por Maria Teresa Antonelli Caldas e João Anselmo Montanari da Cunha contra a r. sentença (fls. 81/83) proferida pela MM.ª Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da comarca de Ibitinga, a qual, reconhecendo a nulidade do título, julgou procedente a dúvida e manteve o indeferimento do registro stricto sensu do pacto antenupcial (cópia da escritura pública a fls. 03/04) celebrado entre os apelantes.
Alegam os apelantes que o negócio por eles celebrado logo será admitido no direito brasileiro, por força de reforma da legislação civil, o que bem indica o desacerto da recusa impugnada (fls. 91/105).
A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento da apelação (fls. 139/142).