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Artigo – Tirania do preço vil em leilão extrajudicial encontra seu fim: STJ consolida proteção do devedor fiduciante

13-11-2025

Por Orlando Anzoategui Junior

Em uma decisão excepcional, o Superior Tribunal de Justiça mitigou a gravidade de uma desproporcionalidade que vem assombrando os leilões extrajudiciais de imóveis — com efeito os judiciais também em todo o país. Ao anular a arrematação de um bem imóvel por valor inferior a 50% de sua avaliação, a Corte Superior não apenas reafirma sua jurisprudência, mas também envia uma mensagem inequívoca ao mercado e aos leilões desproporcionais: a execução da dívida não é um cheque em branco para o enriquecimento ilícito do credor à custa da ruína do devedor e evitando prejuízos exagerados.

A respectiva decisão, proferida no bojo do Agravo em Recurso Especial nº 2.165.101/PR, de relatoria do ministro Marco Buzzi, representa mais do que uma vitória à cidadania, mas um marco na defesa dos direitos dos devedores fiduciantes e executados — que já se encontram numa situação financeira difícil, cuja vulnerabilidade tem sido explorada por práticas predatórias, desrespeitando os limites legais. Este artigo, escrito na esteira da atuação da nossa banca de advogados como patronos da causa que culminou em tão importante precedente, visa a dissecar os fundamentos dessa decisão e a celebrar o restabelecimento da equidade em um campo tão minado e sensível do direito que tanto lutamos.

O caso concreto: a crônica de uma expropriação anunciada

O caso que chegou ao STJ é emblemático diante da distorção que a Lei nº 9.514/97 — alienação fiduciária pode sofrer quando interpretada de forma literal e desvinculada dos princípios que regem o ordenamento jurídico brasileiro. O fato jurídico em voga decorre da arrematação de um imóvel avaliado em R$ 870 mil, em segundo leilão, pelo valor irrisório de R$ 346 mil, o que equivale a meros 39,8% de seu valor de mercado.

O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR), em uma decisão chancelando o preço vil, havia considerado válida a arrematação, apegando-se à literalidade do § 2º do artigo 27 da Lei nº 9.514/97, que, em sua redação anterior, permitia a venda em segundo leilão pelo valor da dívida. Entrementes, tal interpretação ignorava a vedação ao preço vil, princípio basilar do direito processual civil, e abria as portas para a expropriação do patrimônio do devedor por valores ínfimos, em um claro desvio de finalidade do instituto da garantia e expropriatório.

Felizmente, o STJ, em sua sabedoria, corrigiu o rumo da justiça. O ministro Marco Buzzi, em sua decisão monocrática, foi assertivo ao apontar a dissonância entre o acórdão do TJ-PR e a jurisprudência pacífica da Corte Superior neste sentido. Citando precedentes como o REsp 2.096.465/SP e o AREsp 2.818.110/SC, o ministro do STJ reafirmou o entendimento de que a arrematação não pode ser realizada por preço vil, assim considerado aquele inferior a 50% do valor de avaliação, sob pena de causar um prejuízo exagerado e irreparável ao patrimônio que resta ao devedor fiduciante.

A decisão vai além, invoca princípios fundamentais do Direito Civil, como a vedação ao enriquecimento sem causa e do corolário da boa-fé objetiva, consubstanciados nos artigos 884 e 422 do Código Civil, assim como o dever de mitigar o próprio prejuízo, mais conhecida como a teoria “duty to mitigate the loss”. Tais princípios, que devem nortear todas as relações contratuais, também se aplicam à execução extrajudicial, reforçando a proteção contra arrematações desproporcionais e iníquas.

A complementação do preço: uma solução prática interessante

Um dos pontos mais relevantes da decisão em análise é a solução prática aplicando um princípio básico de uma maneira nova: a intimação do arrematante para complementar o valor ofertado, alcançando o patamar mínimo de 50% da avaliação, sob pena de desfazimento da arrematação. Tal medida, que encontra amparo na mais recente alteração da Lei nº 9.514/97 pela Lei nº 14.711/2023, equilibra a proteção do credor fiduciário, o direito do devedor fiduciante e a segurança jurídica do arrematante de boa-fé.

Embora a decisão seja alvo de arguições por devedores fiduciantes que almejam seus direitos pela retomada integral do bem imóvel diante da nulidade absoluta da expropriação vil, não há como olvidar o entendimento ser uma nuance interessante à contenção de danos e a evitar prejuízos exagerados ao devedor fiduciante, tratando-se de uma resolução criada num contexto onde a desproporcionalidade impera contra os direitos do executado, concentrando em preservar a finalidade da execução, mas sem aniquilar integralmente o patrimônio que resta ao devedor executado.

O diálogo das fontes: CPC, CC e CDC em defesa do consumidor

Nesse diapasão, a decisão do STJ prima pela hermenêutica jurídica ao promover o diálogo das fontes entre a legislação especial da alienação fiduciária, o Código de Processo Civil, o Código Civil e ditames do Código de Defesa do Consumidor. A vedação ao preço vil, prevista no artigo 891, parágrafo único, do CPC, é aplicada de forma subsidiária à Lei nº 9.514/97, em uma interpretação sistemática que prestigia a unidade do ordenamento jurídico.

O artigo 891 do CPC é cristalino ao estabelecer que “não será aceito lance que ofereça preço vil”, definindo em seu parágrafo único que “considera-se vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz ou, não havendo estipulação, inferior a 50% (cinquenta por cento) do valor da avaliação”. Essa regra, que nasceu no contexto das execuções judiciais, foi corretamente estendida pelo STJ às execuções extrajudiciais de alienação fiduciária, em uma aplicação analógica que preconiza o espírito da lei, razão pela qual a inteligência da decisão em voga produz efeito excepcional e aplicabilidade na prática em todas as formas de leilões albergados pela legislação.

Ademais, a aplicação dos princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento sem causa, do Código Civil, reforça a proteção do devedor. O artigo 422 do Código Civil estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Deste dispositivo extrai-se o dever de mitigar o próprio prejuízo – denominação original “duty to mitigate the loss”, que impõe ao credor o dever de agir de forma a não agravar desnecessariamente a situação do devedor, visando evitar o enriquecimento ilícito.

Nesse sentido, o artigo 884 do Código Civil veda o enriquecimento sem causa, determinando que “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido”. A arrematação por preço vil configura, sem sombra de dúvida, enriquecimento ilícito do credor, que se apropria de um bem cujo valor supera em muito o montante da dívida, causando prejuízo desproporcional e predatório ao devedor.

E, em se tratando de uma relação de consumo, o que é a regra nos contratos de financiamento imobiliário, a nulidade de cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas, prevista no artigo 53 do CDC, também serve de escudo contra os abusos dos credores. Embora o STJ tenha decidido que o artigo 53 do CDC não se aplica à resolução de contratos de alienação fiduciária, a proteção contra o preço vil permanece hígida, pois decorre de princípios gerais do direito e não apenas da legislação consumerista.

É importante destacar que a Lei nº 14.711/2023 veio a corrigir a incongruência existente entre o § 2º do artigo 27 da Lei nº 9.514/97 e o princípio da vedação ao preço vil. A nova redação do § 2º do artigo 27 estabelece expressamente que, no segundo leilão, “será aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela alienação fiduciária, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor fiduciário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem”.

De plano, dessume-se que a alteração legislativa representa o reconhecimento pelo legislador da jurisprudência consolidada do STJ e a harmonização da legislação especial com os princípios gerais do direito processual civil. Claramente, a vedação ao preço vil não é mais apenas uma construção jurisprudencial, mas consubstanciada por uma determinação legal expressa na própria Lei da Alienação fiduciária, o que confere ainda mais força e segurança jurídica à proteção do devedor fiduciante neste sentido.

Por isso que a decisão do ministro Marco Buzzi no AREsp nº 2.165.101/PR trata-se mais do que uma reafirmação de uma jurisprudência já consolidada no STJ, é um verdadeiro avanço.  No mesmo plano, o REsp 2.096.465/SP, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a 3ª Turma do STJ fixou a tese de que “as normas que impedem a arrematação por preço vil são aplicáveis à execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente”.

Assim, vale destacar o contido no REsp 2.096.465/SP que, categoricamente, preconizou: “mesmo antes da vigência da Lei nº 14.711/2023, é possível a invocação não só do art. 891 do CPC/2015, mas também de outras normas, tanto de direito processual quanto material, que i) desautorizam o exercício abusivo de um direito (art. 187 do Código Civil); ii) condenam o enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil); iii) determinam a mitigação dos prejuízos do devedor (art. 422 do Código Civil) e iv) prelecionam que a execução deve ocorrer da forma menos gravosa para o executado (art. 805 do CPC/2015), para declarar a nulidade da arrematação a preço vil nas execuções extrajudiciais de imóveis alienados fiduciariamente”.

No AREsp 2.818.110/SC, de relatoria do ministro Moura Ribeiro, a 3ª Turma reafirmou que consoante a jurisprudência da Corte “a arrematação não poderá ser realizada por preço vil, assim considerado aquele inferior a 50% do valor de avaliação, sob pena de causar um prejuízo exagerado em desfavor do devedor fiduciante”.

Tais precedentes, somados à decisão ora comentada, formam um arcabouço jurisprudencial robusto e coerente, que não deixa margem para dúvidas: a execução extrajudicial de alienação fiduciária está sujeita às mesmas regras de proteção contra o preço vil que regem as execuções judiciais. A tentativa de alguns credores de se valerem da literalidade do antigo § 2º do artigo 27 da Lei nº 9.514/97 para se apropriar de imóveis por valores irrisórios encontra, agora, uma barreira intransponível na jurisprudência do STJ e na nova redação da lei, o que tornam nulos e indenizáveis todos os leilões e arrematações que descumprirem a regra do preço vil.

No contexto dos leilões extrajudiciais de imóveis residenciais, os princípios elencados ganham mais densidade quando emanam proteção constitucional do direito à moradia, a função social da propriedade e do mínimo existencial das famílias, razão pela qual a alienação fiduciária não pode ser um atalho para a exclusão habitacional e ao lucro exagerado dos credores fiduciários.

Conclusão: um novo paradigma para os leilões extrajudiciais

A decisão do STJ no AREsp nº 2.165.101/PR é um divisor de águas. Ela representa a consolidação de um entendimento que humaniza a execução da dívida, colocando um freio na voracidade de credores que, sob o manto de uma interpretação literal da lei, buscavam lucros exorbitantes à custa do infortúnio alheio. Para o setor bancário e imobiliário, a decisão garante segurança jurídica e previsibilidade, ao definir parâmetros objetivos sobre preço mínimo, validade da arrematação e complementação do lance.

Como advogados que militam há mais de 30 anos na área do sistema financeiro da habitação, contratual e na defesa dos devedores executados, em prol dos mutuários, devedores fiduciantes e consumidores, celebramos esta decisão como uma vitória da justiça e da dignidade da pessoa humana. A luta contra as práticas abusivas é árdua e contínua, mas decisões como esta renovam nossa esperança e nossa combatividade. A tirania do preço vil, enfim, encontra seu limite na muralha da boa-fé e da equidade.

Fonte: Conjur