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Artigo – Retificação de área e o provimento CNJ 195/25 – Das hipóteses de dispensa das anuências dos confrontantes – Parte 4

22-09-2025

Por Jean Mallmann

 

Esta coluna analisa os casos de dispensa das anuências dos confrontantes no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 3º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ nº 195/2025 – Provimento do IERI-e).1

 

O § 3º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), incluído pelo provimento CNJ 195/25, prevê o seguinte:

 

Art. 440-AX. […]

 

  • 3º. É dispensada a anuência do confinante: 

 

I – no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificada pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973; e 

 

II – se o imóvel confrontante for bem público e consistir em: 

 

  1. a) águas públicas, tais como rios navegáveis, correntes ou depósitos hídricos, com respeito aos pertinentes terrenos reservados, nos termos do art. 14 do Código de Águas (Decreto n. 24.643/1934); e 

 

  1. b) bem público de uso comum, tais como estradas, rodovias, ferrovias e outras vias de circulação, respeitada a faixa de domínio público e eventual área non aedificandi. 

 

Os casos acima descrevem as hipóteses de dispensa normativa de apresentação da anuência dos confrontantes que passaram a ser regulamentadas pelo provimento do IERI-e.

 

A norma administrativa regulamenta exceções, portanto, ao disposto nos §§ 1º a 6º do art. 213 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) que estabelece como condição para o procedimento de retificação de área a anuência dos confrontantes e, no caso de não obtenção desta anuência, que haja a notificação destes, presumindo-se sua concordância do confrontante que não apresentar impugnação no prazo legal. 

 

  1. Certificação no SIGEF e confirmação no Registro de Imóveis

 

No caso de o prédio vizinho ao imóvel retificando possuir prévia certificação da poligonal no SIGEF/INCRA e tiver sua retificação de área no Registro de Imóveis já concluída, não será necessário colher a anuência do confinante. Isso porque o Provimento 195 estabelece a norma presumepresunção de que já houve a concordância formal quanto aos limites dos imóveis e que não existe discussão acerca de sobreposição com a área confrontante.

 

A ideia é simples: se o proprietário do imóvel confinante (i) realizou o georreferenciamento do seu imóvel, (ii) certificou no SIGEF que não existe poligonal que sobreponha sua área no referido cadastro territorial e (iii) teve deferido o procedimento de retificação de área perante o Registro de Imóveis, há segurança jurídica suficiente para que este mesmo proprietário não precise ser chamado a ratificar o georreferenciamento do imóvel do seu vizinho, o qual respeita as linhas divisórias do seu imóvel. Ademais, presume-se que proprietário do imóvel retificando, ele próprio, ou eventual proprietário antecessor, já deu a anuência (por anuência expressa ou tácita) para que o confinante pudesse retificar seu imóvel junto à serventia predial, sendo desnecessário, neste caso, o “câmbio ou troca de anuências”.

 

Outrossim, o dispositivo constante do Provimento 195/2025 deve-se ser interpretado de forma sistemática e teleológica, observando-se a finalidade dos arts. 176, §§ 3º a 5º e § 13 em conjunto com o art. 213, todos da LRP. Neste sentido, é importante deixar claro que não basta a mera certificação da poligonal no SIGEF para a dispensa da anuência do confrontante.

 

A certificação no SIGEF, por si só, não serve para comprovar propriedade nem tem força legal para definir os limites de um imóvel, sobretudo por se tratar de um cadastro autodeclaratório e unilateral. Além do mais, a análise jurídica da conformidade dos limites do imóvel e o controle da malha imobiliária é atribuição do registrador de imóveis, notadamente ao realizar a qualificação registral no procedimento de retificação de área. Assim, para a dispensa da anuência do confrontante deve ocorrer o cumprimento de ambos os requisitos em relação ao imóvel confrontante: certificação da poligonal no SIGEF + deferimento da retificação de área no registro de imóveis. 

 

Deve-se reconhecer, no entanto, que o texto do Provimento poderia ter sido mais claro, motivo pelo qualdeixando mais literal a exigência da norma. Diante disso, sugerimos, de lege ferenda, que o texto do inc. I, § 3º, do art. 440-AX seja melhorado, para que deixe expresso que a dispensa da anuência do confinante ocorra “”[…] no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificado pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973, ‘e, em relação ao imóvel confrontante, tenha sido concluída a retificação de área de acordo com o polígono certificadocertificado’ “.

 

De qualquer modo, mesmo sem a alteração do texto da norma do CNJ a interpretação que deve ser dada, desde logo, para a dispensa da anuência de confinante, é a exigência conjunta de certificação no SIGEF/Incra cumulado com a confirmação da retificação de área do imóvel confrontante, mediante interpretação teleológica e sistemática da Lei de Registros Públicos.

 

  1. Águas públicas

 

Outra hipótese de dispensa da anuência ocorre no caso de confrontação com bens públicos. No caso de águas públicas, tais como rios navegáveis e outros afluentes, é dispensada a anuência desde que respeitada a faixa de terreno reservado de 15 metros estabelecida no Código de Águas.3 De seu turno, no caso de rodovias ou ferrovias aplica-se regra semelhante, sendo dispensada a anuência do ente público se respeitada a faixa de domínio público e a área non aedificandi (área não edificável).

 

Nesses casos, o registrador de imóveis poderá verificar o cumprimento deste requisito ao analisar os trabalhos técnicos e a imagem de satélite da poligonal, notadamente pelo SIG-R -, conhecido popularmente como Mapa do Registro de Imóveis do Brasil4. Também é recomendável que o profissional técnico faça constar expressamente a informação de respeito aos limites e das faixas com os bens públicos na planta ou no memorial descrito ou até mesmo em laudo técnico separado, a fim de ser deferida a dispensa da anuência dos entes públicos.

 

Rios públicos são aqueles navegáveis e que são considerados bens públicos. Portanto, os rios públicos geram a divisão do imóvel por ele seccionado. Interessante notar que os rios públicos serão estaduais quando localizados apenas em um Estado da Federação; e serão Federais quando cortarem mais de uma unidade federativa ou fizerem fronteira com outros países, caso em que serão considerados patrimônio da União (art. 20, inc. III; e art. 26, inc. I, CF).5

 

Não existe uma lista oficial de rios navegáveis, motivo pelo qual deve ser analisado caso a caso pelo registrador, o qual deve ter o conhecimento da circunscrição territorial sob sua jurisdição. 

 

Navegáveis são os cursos d’água que permitem a navegação de embarcações, ou seja, possibilitam o trânsito seguro de barcos ao longo de toda ou da maior parte de seu percurso. Para ser considerado navegável, o afluente deve suportar uma embarcação de pequena proa com capacidade para pelo menos uma pessoa, independentemente do tipo de propulsão (remo, vela, motor etc.).6

 

De sua vez, os rios não navegáveis são privados, podendo fazer parte do imóvel ou eventualmente constituírem marco divisório dele, caso em que o confrontante anuente será o vizinho do outro lado da margem do curso d’água.

 

Muitos registradores, por questões de extrema cautela, exigiam notificação da Fazenda Pública (PGE – Procuradoria Geral do Estado para rios estaduais; ou da SPU – Superintendência de Patrimônio da União, para Federais) em retificações de imóveis confrontantes com rios navegáveis, mas essa exigência, de acordo com o regulamento do CNJ, pode ser considerada exagerada. O princípio da razoabilidade indica que basta comprovar, por meio de planta precisa e imagem de satélite (ex.: Google Earth), que a margem do rio navegável e a faixa pública de 15 metros (terreno reservado) foram respeitadas, sem necessidade de movimentar a máquina pública, exigindo a anuência ou a notificação do Estado ou União.

 

Conforme explica Eduardo Augusto, mesmo que haja erros técnicos na descrição, a inclusão de área pública não altera a titularidade estatal, que é inalienável e imprescritível (não usucapível). Assim, a notificação da Fazenda Pública é desnecessária, salvo se o particular contestar a existência da faixa pública, caso em que a participação estatal é essencial para garantir a segurança jurídica do registro. A retificação deve, portanto, focar apenas no necessário para assegurar a correção da nova descrição, evitando formalismos excessivos que não trazem benefício prático nem segurança jurídica.7

 

A dispensa da anuência, no entanto, não dispensa o registrador de fazer a qualificação registral dos trabalhos técnicos. Desse modo, se o registrador evidenciar que os trabalhos técnicos contêm incorreções ou que não estão de acordo com a linha de terreno reservado do curso d’água, deve, fundamentadamente, exigir a notificação dos entes públicos, a fim de evitar litígios futuros.

 

  1. Estradas públicas: Rodovias, ferrovias e outras vias de circulação

 

Em relação às estradas públicas, tais como rodovias e, ferrovias e demais vias de circulação, o procedimento de retificação de área no registro de imóveis deve respeitar a faixa de domínio e a área não edificável (área non aedificandi). Conforme dispõe o Provimento, demonstrado que o imóvel retificando não se sobrepõe à faixa de domínio público e o proprietário observa as limitações decorrentes da área não edificável, poderá ser dispensada a anuência dos confrontantes.

 

O regramento trata tanto de vias de circulação urbanas como também rurais, sendo aplicável, portanto, em ambos os casos.

 

Quando cita estradas e vias de circulação e depois especifica as rodovias e ferrovias, o Provimento 195 se utiliza de uma fórmula mais genérica seguida de exemplos, permitindo ao intérprete estender o alcance da norma a situações semelhantes, mas não expressamente listadas.  Vale-se a norma do CNJ, destarte, de uma interpretação analógica, revelando o sentido e o alcance da norma, a partir de suas próprias disposições gerais e específicas. No caso, o dispositivo visa abarcar todas as estradas públicas e/ou vias de circulação públicas, urbanas e rurais, devendo-se, em cada caso, levar em consideração o tipo de cada estrada/via de circulação confinante do imóvel retificando. 

 

Segundo o Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), as vias de circulação podem ser rurais (estradas e rodovias) ou urbanas (ruas, avenidas, vielas, ou caminhos e similares abertos à circulação pública, situados na área urbana, caracterizados principalmente por possuírem imóveis edificados ao longo de sua extensão). Cada tipo de via de circulação contém regras diferenciadas, motivo pelo qual é importante que o profissional responsável pela elaboração dos trabalhos técnicos deve observar as regras atinentes à faixa de domínio público e, quando existente, à área privada non aedificandi.

 

A faixa de domínio é a área pública onde se assentam todos os elementos que compõem a via de circulação, incluindo pista de rolamento, canteiros, acostamentos, sinalizações e faixas laterais de segurança, entre outros, até o limite que separa a estrada pública dos imóveis marginais. Constitui, portanto, bem público de uso comum do povo.

 

A superfície da faixa de domínio é delimitada conforme o projeto de engenharia da pista ou por lei específica e está sob responsabilidade do órgão ou entidade de estradas e rodagens competente com circunscrição sobre a via (p. ex. no âmbito federal, DNIT; no âmbito estadual, DAER-RS, DER-SP, DER-DF, GOINFRA etc.)8.  Normalmente, não havendo uma delimitação específica no projeto de engenharia, as legislações definem uma área mínima.  Desse modo, a largura da faixa de domínio pode variar conforme cada caso e obedece a legislação de cada estado (no caso de Rodovias Estaduais) ou da União (para Rodovias Federais), sendo definida de acordo com as características técnicas do projeto final de engenharia, mantendo largura constante e tendo as linhas limites paralelas ao eixo da rodovia. 

 

A área não edificável (non aedificandi), de outro lado, é uma faixa de terra onde é proibida a construção de edificações, situada logo após a faixa de domínio de rodovias e ferrovias. Não se trata de bem público e, portanto, não pertence ao ente público, tendo natureza de bem particular, mas em que está gravada limitação administrativa, uma restrição da propriedade, vedando que o proprietário construa sobre a área. Desse modo, a área não edificável faz parte do imóvel do requerente e deve ser descrita na matrícula do imóvel retificando.

 

A área non aedificandi ao longo das estradas rodoviárias tem, em regra, largura mínima de 15 metros de cada lado da linha que define a faixa de domínio público. Contudo, pela atual redação da lei 6.766/1979 (lei de parcelamento do solo urbano), alterada pela lei 13.913/19, dentro do perímetro urbano, os municípios podem diminuir essa faixa para até 5 metros de cada lado, desde que haja lei municipal que autorize essa redução (art. 4º, inc. III).8 

 

A lei 14.273/21 (Lei das Ferrovias), de sua vez, não especifica uma área non aeficandi para este tipo de estrada pública, sendo possível inferir de seu regramento que as instalações adjacentes, à faixa de domínio da linha férrea, inclusive, os “imóveis localizados de forma contígua” às estradas de ferro deverão respeitar a “indicação georreferenciada do percurso total […] da faixa de domínio da infraestrutura ferroviária” (art. 3º, inc. VII e art. 25, § 1º, inc. II, alínea a). Desse modo, não havendo previsão de metragem específica na legislação especial para definir a área non aedificandi, entendemos que se aplicam as diretrizes estabelecidas para as rodovias também às vias férreas: 15 metros como regra, podendo ser reduzida para 5 metros na área urbana, se houver legislação municipal autorizativa.9 

 

A área não edificável para as rodovias e ferrovias gera uma restrição à propriedade privada ex lege, ao passo que nas vias de circulação urbanas (ruas, avenidas, vielas, becos etc.), salvo quando previsto na legislação urbanística específica, não existe uma área non aedificandi. Assim, como regra, a área non aedificandi surge por uma limitação administrativa legal, visto que decorre diretamente da legislação, motivo pelo qual não precisa estar publicizada na matrícula. Nada obstante, se por razões de necessidade pública o poder público determinar a criação ou o aumento dessa área não edificável, haverá, excepcionalmente, uma limitação administrativa convencional ou estabelecida unilateralmente pelo próprio poder público, caso em que a restrição à propriedade privada deverá ser objeto de averbação na matrícula, diante da excepcional intervenção do Estado na propriedade.

 

Com efeito, para que haja a dispensa da colheita de anuência do ente público confrontante no procedimento de retificação de área, a faixa de domínio público deve ser respeitada, de modo que o imóvel retificando não se sobreponha a ela; bem assim deve constar do trabalho técnico o respeito à limitação administrativa da área não edificável.

 

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1 Este é o quarto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis.

 

2 Por esse motivo, é importante que ao final do procedimento de retificação de área, o registrador de imóveis faça o login na plataforma do SIGEF, realize o upload da nova matrícula e inclua a informação de “Confirmação de Registro”.

 

3 Art. 14, Código de Águas. Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a distância de 15 metros para a parte de terra, contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias.

 

4 4 O SIG-RI passou a ser regulamentado nos arts. 343-D a 343-J do CNN/CN/CNJ-Extra, de acordo com a redação incluída pelo Provimento do IERI-e. O “Mapa” pode ser acessado a partir do seguinte link: Disponível aqui. 

 

5 Art. 20. São bens da União: […] III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; […] Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;

 

6 GIOVANINI, Adenilson. Topografia cadastral e georreferenciamento de imóveis rurais na prática. E-book. 2023.

 

7 AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis, retificação de registro e georreferenciamento: fundamento e prática. Série Direito Registral e Notarial. Coord. PAIVA, João Pedro Lamana. Saraiva: São Paulo, 2013.

 

8 A Resolução DNIT nº 7, de 02 de março de 2021 regulamenta atualmente o uso das faixas de domínio de rodovias federais sob circunscrição do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). Disponível aqui.

 

9 Para as rodovias estaduais, cada Estado possui sua própria legislação. Como exemplo, no Estado de Goiás, a Lei Estadual nº 14.408/2003, estabelece que a largura da faixa de domínio das rodovias estaduais será definida de acordo com as características técnicas do projeto final de engenharia, enquanto a faixa de domínio das rodovias estaduais que não possuem projeto final de engenharia será especificamente de 40 m (quarenta metros), para cada um dos lados, a contar do eixo central da rodovia (art. 3º). Disponível aqui.

 

Fonte: Migalhas