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Senhas, Segredos e Sucessão: o novo inventariante digital.

19-09-2025

Decisão proferida pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, pela ministra relatora Nancy Andrighi, em setembro de 2025, reconheceu que herdeiros podem acessar bens digitais e prevê a nomeação de um “inventariante digital” para acessar dispositivos e identificar os ativos digitais do de cujus. A ação (REsp 2124424) trata do inventário de Roger Agnelli, ex-presidente da Vale, que faleceu em um acidente aéreo em 2016, juntamente com sua esposa e filhos.

A mãe de Agnelli acionou a Apple para obter acesso a três tablets, cujo desbloqueio foi negado pela empresa — fato que motivou a intervenção judicial. No STJ, prevaleceu por maioria o entendimento da ministra Nancy — que, inclusive, possui uma tese de doutorado sobre o tema — segundo o qual o juiz pode instaurar um incidente processual autônomo, nomeando um inventariante digital para que seja analisado exclusivamente o conteúdo digital, classificando e avaliando esse patrimônio.

Criar um “incidente processual” significa gerar uma nova relação jurídica processual e, por conseguinte, aumentar a burocratização, com partes próprias, citações, intimações, entre outros atos. Com o devido respeito, entendemos tratar-se de medida excessivamente burocrática e potencialmente procrastinadora — basta reconhecer que se trata de bens patrimoniais, como quaisquer outros, mesmo porque, ao final deste “incidente”, haverá que ser requisitado ao provedor a quebra da senha do aparelho pelo inventariante.

Atualmente, o patrimônio digital mais significativo é composto pelas chamadas moedas digitais, que incluem criptoativos, moeda “virtual” e moeda digital emitida por bancos centrais. Existem ainda os tokens, que podem representar desde obras de arte até ativos imobiliários. Deve-se considerar também o patrimônio imaterial de influenciadores digitais, que consiste em audiência em plataformas online, além da propriedade intelectual representada digitalmente.

Em legislações e jurisprudências internacionais, não há distinção entre bens analógicos e digitais. Em voto divergente, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva entendeu que o tratamento dos bens digitais deve seguir as regras sucessórias — posição com a qual concordamos. Contudo, ao que parece, o tema central passou a ser a privacidade, e não o patrimônio digital.

A criação da figura do “inventariante digital” pode ser adotada por nós, tabeliães, nos testamentos daqui em diante. Entretanto, ainda assim, a solução não é tão simples. Como afirma o jurista Lawrence Lessig, na informática “o código é a lei”. E, nesse caso, os códigosfonte dos softwares impõem senhas — e não adianta alguém ser nomeado inventariante digital sem possuir as credenciais de acesso aos dispositivos e aos ativos digitais.

As senhas são os novos “molhos de chaves”, a nova carteira de identidade. A diferença é que elas habitam nosso cérebro e provam quem somos, porque — supostamente — somente nós, no universo, sabemos a resposta daquela pergunta. A morte, portanto, leva — assim como seus mais profundos segredos — as senhas, que inclusive podem revelá-los. Esse dilema está muito claro nos fundamentos da decisão do STJ: quebrar a senha pode significar dano à privacidade do falecido.

A solução deve ser pensada também nos inventários extrajudiciais, com a nomeação de inventariante convencional ou exclusivamente digital, com poderes para requisitar aocustodiante da conta ou do dispositivo digital a quebra de sigilo e o desbloqueio. A decisão do STJ prevê que o inventariante digital seja uma terceira parte neutra, “um perito que não representa o espólio, a quem será dada a faculdade de filtrar os dados, declarando o que é transmissível e o que é intransmissível — todos aqueles que possam ofender o direito da personalidade”. No inventário extrajudicial, creio que o próprio tabelião possa cumprir essa função, já que o sigilo lhe é uma imposição legal inerente à delegação pública. A escritura de testamento, por exemplo, é sigilosa, e o inciso IV, artigo 30 da Lei 8.935/94 prevê ao notário como dever: “guardar sigilo sobre a documentação e os assuntos de natureza reservada que tenham conhecimento em razão do exercício da profissão”.

É fato que devemos pensar em instrumentos mais adequados para lidar com esse tipo de problema. Podemos imaginar, por exemplo, que seja elaborado um testamento cerrado digital, no qual se declare uma senha-mestre para abrir o arquivo de senhas, com a nomeação de um responsável para a função. Esse instrumento deverá ser de simples e constante alteração, pois, como sabemos, as senhas devem mudar

Afora a questão do sigilo e intimidade do de cujus, a nosso ver, a origem de toda essa problemática está na inconsistência da classificação jurídica dos bits. Desde, no mínimo, o ano de 1998, os tribunais brasileiros vêm se digladiando sobre esse tema. Naquele remoto ano, decidiu-se que softwares vendidos em “prateleiras” — ou seja, em lojas físicas — deveriam pagar ICMS por serem considerados mercadorias (RE 199.646-SP, 1ª Turma, DJ 30.04.99), enquanto os adquiridos online seriam tributados como serviços, pagando ISS.

Posteriormente, surgiram os furtos de sinal de internet e de TVs digitais, e a jurisprudência oscilou por anos entre ambos os lados. Atualmente, o STF entende que não há crime, pois o art. 155 do Código Penal prevê o furto de “coisa” alheia, e não se pode aplicar a lei penal por analogia a fatos atípicos. Portanto, entende-se que bits não são coisa.

É possível que a origem dessa confusão remonte ao momento em que, no início dos anos 80, o cientista da computação Jaron Lanier criou um ambiente de simulação e, jocosamente, o chamou de “realidade virtual”. A partir daí, passou-se a referir-se ao digital como “virtual” — mas não no sentido de imaterialidade, de algo etéreo ou possível, como até então se definia o adjetivo “virtual”; passou-se a usá-lo para designar o universo binário computacional propriamente dito. Entretanto, muitos — inclusive juristas e magistrados — tendem a interpretar essa “virtualidade” como “não coisa” nenhuma!

E como “coisa” é, provavelmente, o substantivo com maior diversidade de significados — não apenas em nossa língua, mas também em francês, inglês, italiano, entre outras —, sendo inclusive o mais comum quando não se sabe o nome de algo, não é admissível que nosso Judiciário continue entendendo que dados (bits) não são “coisas”! Numa época em que — com perdão do trocadilho — são a coisa mais valiosa do planeta! A palavra “coisa” tem origem no latim causa, ou seja, “motivo”, mas evoluiu para um verdadeiro universo de sentidos.

Mas se os bits são vendidos e tarifados por volume, seja na transmissão ou no armazenamento, são apreciados monetariamente como dinheiro — não seriam “coisa” para fins de transmissão como bens em geral em um inventário? Não seriam “coisas” quando furtados

Quem sabe, ouvindo o samba de Paulinho Neves — Zica do Samba de Malandro — a coisa melhore:

Uma coisa é uma coisa
Outra coisa é outra coisa!
Uma coisa não tem
Nada a ver com outra
Se bem que malandragem…
Eu sei também…
Que uma coisa É que acaba puxando a outra…
Ouça aqui: https://music.youtube.com/watch?v=NXPS8mPclF0

Fonte: CNB/CF