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Exceções são exceções: O provimento 172/24 do CNJ, o crédito responsável do CDC e a necessidade de escritura pública para a alienação fiduciária em garantia sobre imóveis
A alienação fiduciária, inicialmente limitada a bens móveis, agora também cobre imóveis desde a lei 9.514/97, permitindo a constituição por instrumento particular. Esta exceção visa facilitar o crédito imobiliário, mas também exige regulamentação para garantir a segurança dos consumidores e a padronização pelos bancos.
Ao longo dos anos, a alienação fiduciária em garantia, desde sua disciplina legal no Brasil com a lei 4.728/65, depois alterada pelo decreto-lei 911/69, tornou-se um dos principais meios pelos quais o credor busca assegurar o recebimento do seu crédito. Essa trajetória exitosa para o mercado fez com que, inclusive, a garantia inicialmente prevista como recaindo apenas para negócios envolvendo bens móveis (em especial, veículos), passasse a contemplar também imóveis, com a edição da lei 9.514/97.
Ao mesmo tempo, visando incentivar o Sistema Financeiro Imobiliário, o art. 38 da lei 9.514/97 não apenas previu a alienação fiduciária de imóveis como permitiu sua constituição mediante instrumento particular, com efeitos de escritura pública. Trata-se, como se sabe, de uma exceção à regra do direito brasileiro. A tradição brasileira e latina é de que os negócios que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis têm como requisito de forma sua celebração por escritura pública, dando publicidade e segurança para os consumidores.
Note-se que esta exceção, historicamente, vinculou-se ao incentivo à outorga de crédito para moradia por instituições financeiras. Assim, percebe-se pelo fato de que foi na lei 4.380/64, ao instituir o SFH – Sistema Financeiro da Habitação, onde pela primeira vez foi atribuído o caráter de escritura pública aos contratos celebrados por instrumento particular pelo Banco Nacional da Habitação ou entidades que integrem o SFH. Essa exceção específica segue corroborada pela legislação recente, caso da lei 14.620/23, que redefiniu os termos do Programa Minha Casa Minha Vida, da lei 14.063/20, sobre o uso de assinaturas eletrônicas, e da lei 14.382/22, que dispôs sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, todas se referindo às “instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública”.
De fato, em todos esses casos, o objetivo da legislação foi o de facilitar a constituição da garantia ‘à brasileira’ em favor da concedente do crédito, não de ‘facilitar’ o negócio pelas incorporadoras e intermediários para a aquisição pelos consumidores do imóvel propriamente dito, porque há de se pensar também na segurança desses consumidores, que perdem a propriedade para o credor fiduciário e, até 2009, podiam ser presos caso não pagassem a dívida (foi necessária a edição da súmula vinculante 25 do STF para alterar esta situação). Ademais, em relação às próprias instituições financeiras, estes instrumentos particulares não deixam de observar certa padronização, de acordo com exigências regulatórias e de supervisão do Sistema Financeiro Nacional.
Ocorre que, em relação à lei 9.514/97, a interpretação do seu art. 38 passou a gerar divergência entre os que consideravam que esta exceção da norma sobre forma ‘permitiria’ todo e qualquer contrato constituindo alienação fiduciária de imóvel ser celebrado por instrumento particular, com “força de escritura pública”, e os que interpretavam a exceção estritamente, compreendendo que apenas os contratos de alienação fiduciária celebrados por integrantes do Sistema Financeiro Imobiliário teriam essa permissão legal.
A despeito da clareza do dispositivo legal e sem qualquer fundamentação jurídica, a escritura pública passou a ser dispensada, em muitas situações, também nos contratos celebrados entre incorporadores e adquirentes dos imóveis, em relação aos respectivos compromissos de compra e venda ou outras modalidades com a constituição da garantia de alienação fiduciária. Afinal, ampliou-se, pela via interpretativa, uma regra excepcional, vinculada ao Sistema Financeiro Imobiliário e cujo propósito está associado à promoção da política pública de habitação, viabilizada por esse sistema. Ou seja, uma exceção à regra de ordem pública do direito brasileiro, que é a exigência de escritura pública para negócios relativos à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis.
E aí surgem vários problemas, em especial frente aos consumidores que venham a celebrar esses contratos de alienação fiduciária, os quais se submetem ao CDC e suas disposições sobre crédito para o consumo (p. ex., o art. 52), e se defrontam com muitos perigos: do assédio de consumo (Art. 54-C, IV) à falta de esclarecimento e informação (Art. 54-D), pois garantir um crédito responsável é hoje exigência do CDC, atualizado pela lei 14.181/21. A realidade é que os consumidores aderem a contratos redigidos por incorporadores, loteadoras, imobiliárias, dentre outros intermediários (até plataformas!), sem condições de negociar ou mesmo de examinar a própria legalidade de cláusulas envolvendo uma série de questões relevantes, como a taxa de juros contratada e eventual divergência sobre aquela efetivamente aplicada, a forma de sua amortização, outros custos incluídos (hoje de informação obrigatória pelo Art. 54-B), ou ainda as formas de resolução do contrato e os efeitos, os ônus e os riscos de eventual inadimplemento (Art. 54-C, III), direitos que a noção de crédito responsável imposta por norma de ordem pública do CDC visa assegurar. A forma da escritura pública aqui ajuda a reflexão, inclusive em relação ao cumprimento da oferta prévia de 48 horas (agora obrigatória pelo Art. 54-B, III) e os cuidados na adesão e na identificação de fraudes e erros (Art. 54 e 54-G, §2°).
Nesse sentido, evidencia-se que, na atual sociedade de consumo de massas, a tradicional função do notário, de garantir a higidez da manifestação de vontade das partes dos contratos celebrados por escritura pública, foi acrescida de outra, decorrente da função que é própria da atividade notarial, de assegurar a legalidade dos atos e negócios jurídicos que lhe são submetidos. Permitir que esses tão importantes contratos de alienação fiduciária de imóveis sejam celebrados por instrumento particular, elaborados pelos próprios intermediários e fornecedores, transformando a exceção em regra, além de violar normas específicas do Código Civil, conta ainda com o efeito de deixar desprotegido o consumidor e desatendidas as regras sobre crédito responsável do CDC.
Com o propósito de afastar equívocos na qualificação de títulos no âmbito administrativo dos Ofícios de Registro de Imóveis brasileiros, considerando o fato de que exceção é exceção, o Conselho Nacional de Justiça editou, recentemente, o Provimento 172/24, no sentido de que a “permissão de que trata o art. 38 da 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da lei 9.514/97), incluindo as cooperativas de crédito”. A regra é altamente salutar e conexa às da atualização do CDC, para aumentar a lealdade e cuidado na concessão do crédito (responsável!) no Brasil. Sobre seus efeitos no tempo, e de modo a preservar a situação consolidada até então, foi seguido pelo Provimento n. 175/2024, considerando regulares os instrumentos particulares envolvendo alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e os atos conexos celebrados por sujeitos de direito não integrantes do SFI, desde que tenham sido lavrados antes de 11/7/24, data na qual entrou em vigor o Provimento 172/24.
Vem em muito boa hora o provimento do CNJ a explicitar a correta interpretação do art. 38 da lei 9.514/97, marcando não apenas o sentido coerente com o sistema jurídico brasileiro em relação às formalidades que devem cercar os negócios jurídicos relativos a direitos sobre imóveis, como também a proteção do interesse dos adquirentes consumidores, sobre a legalidade do seu conteúdo, prevenindo lesões a direitos e abusividades, e com isso apontando para práticas de concessão de crédito mais responsáveis e para a redução de litígios de consumo.
Fonte: Migalhas