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Os custos da escritura pública – e da falta dela: Sem cartórios, não há defensoria. Ou como os cartórios financiam diretamente o segundo maior litigante do país no STJ – Parte 2

29-05-2024

Na última coluna1,  foram apresentados estudos comparativos internacionais de Direito e economia, os quais apontam, em sentido contrário à crença comum, que a intervenção do notário nas transações imobiliárias é medida eficiente em relação a possíveis substitutos funcionais existentes em países de tradição diversa, em que ausente tal profissional.

De fato, apesar da crítica padrão à “burocracia”, “desnecessidade” e “alto custo” dos “cartórios” para a sociedade brasileira, o que se demonstra é que a ausência de “cartórios” não implica, em lugar nenhum do mundo, em ausência de custos, mas, antes, na atuação de outros entes, em sua maioria privados, os quais dominam o mercado de forma oligopolista, com uma redução na qualidade, velocidade e economicidade das transações.

Nessa toada, detalhando um pouco mais a análise de custos, o presente texto visa demonstrar que, para além dos benefícios diretos decorrentes da própria externalidade positiva gerada pelo instrumento público na transmissão imobiliária – tangenciada na última coluna -, muito do que é cotidianamente divulgado como “arrecadação dos cartórios” se constitui, em verdade, na espinha dorsal do sistema de acesso à Justiça brasileiro, em especial para a população mais carente.

De fato, em uma primeira aproximação sobre os “custos dos cartórios”, é recorrente que os números divulgados por grandes veículos de comunicação, inclusive como forma de se criar “clickbaits”, gerando engajamento nas notícias, sejam os maiores possíveis, o que se faz por meio da escolha do faturamento “bruto” publicado periodicamente no “Portal Justiça Aberta” do CNJ, sem qualquer balizamento, de modo que a comunicação passada é direcionada a ser entendida de forma equivocada pelo leitor. Como numa famosa e antiga chamada publicitária de um dos maiores jornais do país, poderíamos dizer que “é possível contar uma grande mentira, dizendo só a verdade”. Vamos aos fatos.

Em São Paulo, onde se encontram também os maiores faturamentos do país, de todo o valor lançado no “Portal Justiça Aberta” para as especialidades de notas, protesto, registro de imóveis e registro de títulos e pessoas jurídicas – o registro civil conta com repasse diferenciado -, desde logo, cerca de 40% do valor é repassado diretamente ao Estado “lato sensu”.

Nos termos dos incisos do art. 19 da lei de emolumentos do Estado de São Paulo (lei 11.331, de 26/12/02), 17,763160% são devidos ao Estado de São Paulo, 9,157894% à Secretaria da Fazenda, 3,289473% à compensação dos atos gratuitos do registro civil e complementação da receita mínima das serventias deficitárias, 4,289473% ao Tribunal de Justiça, 3% ao ministério Público de São Paulo. 

Além disso, para as especialidades do tabelionato de notas e de protestos, incide ainda 1% sobre o valor “líquido”, já descontados os repasses acima tratados, a ser repassado às Santas Casas de Misericórdia, nos termos da lei 11.021, de 28/12/01, regulamentada pelo decreto 46.700, de 19/04/02.

Ora, presumindo-se, a título meramente exemplificativo, um faturamento mensal “bruto” de R$100.000,00, ter-se-ia, pelo menos, no caso dos tabelionatos de notas e

De onde viria esse valor, se não fosse recolhido pelos cartórios?

Mais do que isso, a ideia de custeio da máquina pública por meio dos cartórios perpassa também questões de direito financeiro e constitucional que não são triviais na modelagem do Estado brasileiro. É que os valores recebidos pelas instituições em repasse dos cartórios acabam entrando na rubrica de valores “extraorçamentários”, para além daquilo que elas recebem diretamente do tesouro estadual, gerando impactos em sua autonomia funcional e administrativa.

Explica-se: Os valores aprovados em lei orçamentária anualmente pelo Poder Legislativo devem ser repassados aos demais Poderes e instituições autônomas pelo tesouro estadual – Poder Executivo – na forma de “duodécimos”, conforme previsto no art. 168 da Constituição.2 É só por meio do controle dos seus próprios recursos que instituições como o Poder Judiciário, o ministério Público e a Defensoria Pública podem efetivamente programar o desenvolvimento autônomo de suas carreiras e projetos, com alguma distância do preponderante Poder Executivo, com o qual, muitas vezes, se encontram em lados opostos nos processos jurisdicionais.

Para garantir essa autonomia, o Judiciário e o ministério Público contam ainda com a previsão da lei de responsabilidade fiscal de um percentual mínimo de repasses3, cuja extensão para a Defensoria Pública foi vetada pela presidente Dilma no PLC 114/11, após grande pressão das Fazendas Estaduais, demonstrando a clara sensibilidade do tema para o equilíbrio entre os Poderes.

Lado outro, é expediente comum do Poder Executivo, em tempos de crise, a retenção dos repasses financeiros, como medida de contenção forçada de gastos e violação à autonomia das entidades e independência dos Poderes, como se pode verificar nas diversas decisões judiciais sobre o tema.4

Ora, os repasses dos cartórios, administrados diretamente pelas entidades autônomas, sem necessidade de trânsito pelo Poder Executivo, acabam gerando uma maior autonomia das instituições, que podem então contar com tais valores sem ingerência. E, nessa toada, vários estados possuem previsão em suas leis locais sobre o financiamento extraorçamentário de tais instituições por meio dos cartórios.

Assim, a lei complementar 136, de 19/5/11, do Estado do Paraná, criando o Fundo de Aparelhamento da Defensoria Pública do Estado com uma taxa de 5% sobre os emolumentos arrecadados pelos cartórios (art. 230, inciso XII, da referida lei). No mesmo sentido a lei 15.490, de 27/12/13, do Ceará, instituindo 5% incidentes sobre o valor dos emolumentos dos serviços notariais e registrais como receita do Fundo de Apoio e Aparelhamento da Defensoria do Estado do Ceará. Igualmente a lei 4.664, de 14/12/05, do Rio de Janeiro, instituindo o Fundo Especial da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e entre suas receitas, 5% dos emolumentos extrajudiciais.

Nenhuma das Defensorias, contudo, depende tanto dos valores extraorçamentários quanto a Defensoria Pública de São Paulo.5 Conforme dados da própria instituição, em 2023, foram obtidos pouco mais de R$150 milhões de receitas diretas do tesouro estadual, ao passo que os recursos do “Fundo de Assistência Judiciária” somaram mais de R$1 bilhão, no mesmo período, num total de R$1.286.352.484,75 de receita no ano.

É que, embora não constante expressamente dos valores repassados pelos cartórios, o FAJ – Fundo de Assistência Judiciária compõe parcela de 74,07407% do total de 17,763160% acima elencado arrecadados pelos cartórios para o Estado.5 É desse valor que decorre a grande maioria do financiamento público da Defensoria. Ainda mais: Nos locais onde a Defensoria Pública não se faz presente, sendo a assistência jurídica prestada transitoriamente por advogados e entidades conveniadas, a remuneração destes últimos profissionais também é concretizada por meio do FAJ. Em síntese, não haveria acesso à Justiça no Estado de São Paulo sem os repasses dos valores arrecadados diretamente pelos cartórios.

Nos últimos 5 anos, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi a maior litigante no STJ em todo o país, com um total de 61,4 mil recursos e ações em trâmite no tribunal. Em segundo lugar, estaria o INSS, com 59,5 mil ações, seguido do Banco do Brasil, com 44 mil.7

Ora, considerando as receitas da Defensoria no ano de 20238, o FAJ foi responsável por 79,04% do total recebido pelo órgão. Nesse sentido, pode-se dizer que, grosso modo, 48,5 mil ações em trâmite no STJ teriam sido financiadas diretamente pelos cartórios – perfazendo, portanto, o segundo maior litigante de toda a Corte Superior, atrás apenas do INSS, sem que para tanto tenha sido alocado um único centavo do tesouro estadual.

Fazendo a engenharia reversa financeira, considerando que o FAJ tivesse o total de suas receitas decorrentes dos cartórios, ter-se-ia cerca de R$2.946.312.799,54 de valores que foram transferidos pelos cartórios para as mais diversas entidades – Defensoria, Tribunal de Justiça, ministério Público, Santa Casa, e o próprio Poder Executivo -, sem qualquer ônus ao Tesouro Estadual e que, não fossem eles, teriam de ser repostos de alguma maneira pela população – possivelmente via aumento da carga tributária direta.9

Veja-se que em muitas hipóteses em que a escritura pública não é obrigatória, embora ainda seja muito procurada, é comum transitarem pelos tabelionatos de notas orçamentos fornecidos por outros profissionais em que há um arbitramento dos valores a serem cobrados do cliente final, no qual se atribui ao valor do instrumento particular algo entre o valor total cobrado para o tipo de escritura na tabela estadual e aquilo que fica efetivamente com o tabelião. Vale dizer, arbitra-se um valor que faz com que o profissional liberal receba mais que o tabelião, fazendo o mesmo tipo de ato, mas com menor gasto por parte do particular, ante a ausência de qualquer repasse a entidades públicas – um verdadeiro “free rider” em relação ao custeio extraorçamentário das instituições.

Nos “custos” dos “cartórios” estão assim embutidos valores que são diretamente vinculados a instituições públicas de finalidades essenciais à democracia e ao bem comum. Qualquer debate honesto sobre esse tema deveria desde logo embutir em qualquer proposta alternativa de prestação de serviços um “penalty” que englobasse também os custos desse financiamento.

No caso dos cartórios paulistas, esse “penalty” elevaria, de início, qualquer proposta apresentada em cerca de 66%10, o qual, não fosse cobrado, ensejaria o inevitável aumento de impostos diretos sobre os cidadãos para se manter a prestação de serviços essenciais à população, em especial, a de baixa renda, que deixaria de ser financiada pelo “custo dos cartórios”.

Em outra perspectiva, quisesse o legislador desde logo reduzir em quase 40% os gastos da população paulista com os cartórios, poderia simplesmente eliminar os repasses a tais entidades, com o que os serviços dos cartórios continuariam a ser prestados com o mesmo grau de eficiência. Mas, com isso, logo em seguida se veria forçado o Poder Público a subir os impostos diretos para fazer frente à receita que deixou de ser arrecadada, sem que a população sequer soubesse de tal financiamento.

Enfim, da próxima vez que uma mensagem chamativa sobre os valores recebidos pelos cartórios for veiculada, é melhor analisar com mais atenção. A depender do estado e especialidade, os valores estarão bem longe do resultado final. Nesse sentido, é bom sempre estar atento a números para além de discursos pré-fabricados intencionalmente impactantes que acabam por divulgar uma “verdade”, construindo uma grande mentira.

Fonte: Migalhas