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ConJur – Artigo: Desconstituição do vínculo registral em proveito da paternidade biológica – Por Jones Figueirêdo Alves

02-05-2023

A desconstituição do vínculo registral diante de prevalecer o vínculo biológico da paternidade de terceiro tem sido um direito potestativo que merece menos judicialização e mais efetividade.

Esse desfazimento do vínculo registral de paternidade, por via judicial, tem sido requerido pelo genitor biológico, mais das vezes, com a exibição imediata do laudo biogenético que lhe atribui a paternidade inconteste, dissipando qualquer controvérsia e tornando indene de dúvidas o pedido para assentar a paternidade certa.

Eventual hipótese de uma paternidade socioafetiva do pai registral haveria, portanto, de ser apurada por pedido próprio, no qual o pai biológico terá de ser chamado a integrar a lide incidental, sem prejuízo do julgamento antecipado parcial de mérito (artigo 356, I, CPC/2015). Fazê-lo a um tempo protraído burocratiza um direito impostergável de o pai biológico obter, de logo, a sua paternidade reconhecida e declarada, clamando o direito pela urgência da realidade. Demais disso, é legitimo interesse de o(a) criança ou adolescente, sob o princípio de sua proteção integral, adquirir o seu vínculo genético sem maiores burocracias e com imediatidade. Cuida-se, com efeito, de técnica processual que prestigia a celeridade, sem vulnerar o devido processo legal.

Induvidosa a paternidade biológica, com as consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade, frente ao pai registral, tem-se, entretanto, que:

(1) O genitor interessado na declaração não pode se valer, da via administrativa, para a qualquer tempo comparecer em cartório de registro civil e declarar a sua paternidade biológica, não constante do assento, quando ali figure outro genitor.

É que o Provimento nº 16/2012, do Conselho Nacional de Justiça, supre, apenas, a lacuna de uma paternidade ali não informada, uma paternidade omissa, não consabida.

(2) Terá o interessado de valer-se, então, da via contenciosa (ou de procedimento voluntário), à falta de uma política judiciária capaz de desjudicializar a hipótese do caso (a de desconstituição do vínculo registral diante do vínculo biológico que se pretende reconhecer), quando, em contraponto, ao pai registral cumpriria, na hipótese, concordar com o pedido ou vindicar, ao depois, uma paternidade socioafetiva, o que exigiria maiores incursões probatórias em sede de pretensão autônoma.

Bem de ver que não inexistirá uma paternidade socioafetiva pelo pai registral em assunção instante daquela declaração; ela tem a sua construção temporal pelo convívio continuado, responsável e duradouro. Lado outro, ao pai registral presume-se, apenas, a sua paternidade biológica e não a socioafetiva.

Nessa casuística, em benefício da razoável duração do processo e em prestígio da jurisdição, tenha-se que uma eventual posição judicial contraposta (invocação da paternidade socioafetiva para além da registral) deverá ser tratada pelos meios ordinários. A regra deve ser a de a paternidade biológica autorizar, de pronto, a alteração do registro, sobrepondo-se ao pai registral.

O STF, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060, sob a relatoria do ministro Luiz Fux, em Repercussão Geral, estabeleceu o princípio da afetividade nas relações familiares, “consolidando o vínculo socioafetivo como suficiente vínculo parental”, aprovando a seguinte tese:

“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”

Em outro giro, o vínculo baseado na origem biológica, prefere, por óbvio, ao puramente registral, não se presumindo por esse último, repita-se, uma paternidade socioafetiva.

Ocorre, de fato, porém, que a simples ausência de convergência entre a paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica que se pretende cabível, não autoriza, de plano, a invalidação do registro.

Existem situações outras nas quais o vínculo da afetividade se sobrepõe ao vício de consentimento, consolidando uma filiação socioafetiva subjacente. E somente ao pai registral caberá elidir essa presunção, na hipótese, não apenas a demonstrar ter incorrido no vício, como a inexistência de uma paternidade socioafetiva superveniente.

Posta assim essa questão, vejamos que o comparecimento voluntário do genitor em cartório deveria ser preferível, e facilitado, por novos normativos do Conselho Nacional de Justiça, em situação parelha ao Provimento n. 16/2012-CNJ, quando ali se determina:

(1) no artigo 6º:

“Art. 6º. Sem prejuízo das demais modalidades legalmente previstas, o reconhecimento espontâneo de filho poderá ser feito perante Oficial de Registro de Pessoas Naturais, a qualquer tempo, por escrito particular, que será arquivado em cartório.”

(2) no parágrafo 1º do artigo 8º:

“Art. 8º. § 1º. Em qualquer caso, o Oficial perante o qual houver o comparecimento, após conferir o original, manterá em arquivo cópia de documento oficial de identificação do interessado, juntamente com cópia do termo, ou documento escrito, por este assinado.”

Ora. Suficiente bastante que o laudo de DNA ficasse mantido em cartório, em autenticidade da paternidade biológica reconhecida e, de consequência, autorizar a desconstituição do vínculo registral. Como se observa, a manutenção em arquivos cartorários de documentos ensejadores da declaração tem sido uma prática nos determinados procedimentos cabíveis, o que guarda uma perfeita adequação a essa nova hipótese, em que o genitor busca consolidar em assento registral a paternidade biológica exarada pelo resultado do exame biogenético.

Ora bem. É certo que o reconhecimento voluntário da paternidade, em via administrativa, independe de prova da origem genética, tratando-se de um ato espontâneo, solene, público e incondicional (artigo 1.609, I, do Código Civil), disso tratando provimento 16 do CNJ.

Impende refletir, portanto, que em idêntica latitude, o estado de filiação deve contemplar a hipótese do reconhecimento administrativo do filho biológico, quando antes posta uma paternidade registral, eis que munido o pai reconhecedor de um exame de DNA positivo de tal paternidade.

Seguir-se-ia apurar apenas a manutenção ou não do vínculo registral, a essa altura evidentemente não mais pressupondo uma paternidade biológica.

A jurisprudência do STJ tem assinalado, com proficiência:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PAI REGISTRAL INDUZIDO A ERRO. AUSÊNCIA DE AFETIVIDADE ESTABELECIDA ENTRE PAI E FILHO REGISTRAIS. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A controvérsia cinge-se em definir a possibilidade de anulação do registro de paternidade em virtude da ocorrência de erro de consentimento e da inexistência de relação socioafetiva entre o menor e o pai registral. 2. É possível a desconstituição do registro quando a paternidade registral, em desacordo com a verdade biológica, é efetuada e declarada por indivíduo que acredita, realmente, ser o pai biológico desta (incidindo, portanto, em erro), sem estabelecer vínculo de afetividade com a infante. 3. Não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira. A filiação socioafetiva pressupõe a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim reconhecido juridicamente, circunstância, inequivocamente, ausente na hipótese dos autos. 4. O singelo argumento de que o relacionamento amoroso do pai registral e da genitora da criança tenha sido curto e instável não configura uma presunção de que o reconhecimento da paternidade foi despojado de erro de consentimento. 5. Recurso especial provido.” (STJ – REsp: 1.930.823 PR 2020/0182853-4, relator: ministro Marco Aurélio Bellizze, data de julgamento: 10/8/2021, T3 – 3ª Turma, data de publicação: DJe 16/8/2021).

Nessa linha de entendimento, há de se entender, como corolário lógico, que:

“o estabelecimento da filiação socioafetiva perpassa, necessariamente, pela vontade e, mesmo, pela voluntariedade do apontado pai, ao despender afeto, de ser reconhecido como tal. Em outras palavras, as manifestações de afeto e carinho por parte de pessoa próxima à criança somente terão o condão de convolarem-se numa relação de filiação se, além da caracterização do estado de posse de filho, houver, por parte do indivíduo que despende o afeto, a clara e inequívoca intenção de ser concebido juridicamente como pai ou mãe da criança” (STJ – REsp. 1.330.404-RS, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 5/2/2015, DJe 19/2/2015).

A situação de erro substancial, a caracterizar o vício de consentimento, difere, portanto, daquela em que ciente de que não é o genitor da criança, voluntária e expressamente declara o ser perante o oficial de registro das pessoas naturais (“adoção à brasileira”), estabelecendo com esta, a partir daí, um vínculo da afetividade paternofilial como projeto parental predeterminado.

Pois bem. Não custa proclamar e sugerir, em benefício de mais um evento de desjudicialização, as seguintes situações:

(1) Em casos de exame de DNA afastando a paternidade do

pai registral e da ausência de seu vínculo afetivo paternal, tudo convém processar-se a alteração diretamente em cartório do registro civil, suficientes os termos de declaração do pai registral, acerca da inexistência de uma paternidade socioafetiva e do pai biológico, requerendo o reconhecimento de sua paternidade sobre o registrado, com a guarda em arquivos do cartório do respectivo exame de DNA.

A jurisprudência tem orientado que a exclusão do pai registral está a depender da necessidade de comprovação do vício de consentimento. Este não se traduz, contudo, em elemento decisivo para a exclusão do pai registral, quando, realmente, o que o tornaria pai efetivo é uma filiação socioafetiva induvidosa; circunstância tal influente pela voluntariedade desse em assumir uma relação afetiva. Em contrário, declarando não a reconhecer, desmerecem razões para uma dupla paternidade na espécie. Cai a lanço explicitar mais.

Demais disso, “sem a apresentação de dúvida razoável, a credibilidade do laudo não pode ser ignorada na constatação da paternidade. Desta forma, tem-se que a discussão acerca da paternidade encontra-se plenamente resolvida com a apresentação do exame de DNA, ainda que realizado extrajudicialmente” (TJ-GO — 1ª Câmara Cível, Apel. Cível 00362069320138090175, relator: desembargador Luiz Eduardo de Souza, j. em 23/6/2020).

(2) Em casos de exame de DNA afastando a paternidade do

pai registral, sem ocorrer a sua presença concomitante em cartório, para proceder-se a alteração, cuide-se de em tomando-se a declaração do pai biológico, vir a ser notificado aquele para que apresente demonstração idônea de reciprocidade envolvendo vínculo afetivo de paternidade entre as partes ou afirme, de logo, a inexistência do vínculo.

Objetivamente, quando o exame biogenético é pressuposto essencial para a definição da paternidade biológica, uma vez resultando comprovada, o reconhecimento tardio apenas repercutirá frente ao pai registral, cumprindo a este pronunciar-se acerca de sua inclusão ou não no círculo da parentalidade, mantendo-se ou não no registro civil.

(3) Em casos de exame de DNA afastando a paternidade do

pai registral, poderão, este e o pai biológico, requerer os acréscimos correspondentes, anuindo ambos com a existência de uma paternidade socioafetiva, pelo que se opera, de consequência, a multiparentalidade, em face de uma segunda paternidade (independentemente da ordem registral, porquanto ambas assumem sua devida equipotência).

Em casos que tais, tudo recomenda seja editado provimento disciplinando a possibilidade de a retificação do registro ser requerida, pelo pai biológico, inclusive com a desconstituição do vínculo do pai registral, por via administrativa. No seu alcance teleológico, prestigia-se a família em sua realidade existencial.

No mais, a desconstituição da paternidade registral, por mais que se apresente controversa, implicando suas especificidades, torna-se induvidoso que a manifestação do pai registral merece relevo jurídico, cumprindo ao oficial de Justiça, conforme o caso, submeter o caso ao magistrado, a exemplo do que dispõe, na mesma diretiva, o § 3ª do artigo 7º do Provimento nº 16/2012-CNJ. No ponto, situa-se, assim, o cabimento da via administrativa, no trato da questão.

A propósito, reconhece o STJ: “O registro público tem por princípio conferir segurança jurídica às relações civis e deve espelhar a verdade real e não fictícia. É consectário da dignidade humana que os documentos oficiais de identificação reflitam a veracidade dos fatos da vida, desde que a retificação não atente contra a ordem pública (…)” ( Resp nº 1.328.306/DF, 3ª Turma, relator: ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 14/5/2013).

Nesse contexto, de igual modo que se reconhece nulo o processo em que se busca a desconstituição de registro de paternidade se o pai registral não foi citado (STJ — 4ª Turma, ministro Aldir Passarinho Júnior), importa consagrar, como referido no julgado, que “em certas situações, havendo manifestação de concordância do pai registral, admite-se a excepcional dispensa da sua integração à lide, mas, sem isso, torna-se impossível a substituição da paternidade sem o devido processo legal”. Ou seja, é direito de o pai registral diante da ausência do vínculo afetivo, manifestar-se, logo, pela concordância da desconstituição do registro.

Reflita-se, de efeito, que admitida, como deve ser, a possibilidade de reconhecimento da paternidade pelo pai biológico, quando existente um pai registral, urgem necessários normativos administrativos que se prestem a oferecer uma tutela normativa, adequada e pontual. Que seja de forma exauriente, para todas as variáveis pelas quais essa suposta parentalidade dupla possa vir ser regulada, com visão prospectiva sob abrigo do artigo 227, caput, da Constituição. Designadamente, quando não estejam conciliadas, como matéria fática, as duas paternidades (registral/afetiva e a biológica) em uma pressuposta multiparentalidade, como fenômeno da vida.

É, pois, dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, em dignidade de sua pessoa, a atribuição de pai(s) determinado(s). Uma certeza absoluta não sujeita a presunções legais e que reflita a verdade real. Nesse pai certo e biológico, oferece-se a segurança de o(a) filho(a) dispor do seu direito de não apenas identificar o pai biológico, mas o de exercer o melhor convívio afetivo com ele, em acerto da desejada plenitude de vida.

Referências:

CNJ. Provimento nº 16, de 23/2/2012. Disponível aqui.

CNJ. Provimento nº 63, de 17/11/2017. Disponível aqui.

CNJ. Provimento n 83, de 14/8/2019. Disponível aqui.

*Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

Fonte: ConJur