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ConJur – Artigo: Definição de área urbana e rural no âmbito da Secretaria do Patrimônio da União – Por Georges Humbert
O patrimônio imobiliário da União tem papel essencial na estratégia de desenvolvimento do país na medida em que provê o insumo fundamental — espaço físico — para assentamento das ações e projetos de interesse público. Esse patrimônio, descrito no artigo 20 da Constituição, pertence a todos os brasileiros e é administrado pela SPU (Secretaria do Patrimônio da União), ligada ao Ministério da Gestão e Inovação.
Entre as competências da SPU incluem-se, entre outras, a incorporação e regularização do domínio dos bens; sua adequada destinação; além do controle e da fiscalização dos imóveis, conforme Constituição, leis e decretos. Entretanto, entre elas não está a de definir se uma área é urbana ou rural, para efeitos de cobrança de taxas, foro, laudêmio, como se demonstrará a seguir.
Importa, de logo, mencionar o teor da Lei 6.766/1979, em seu artigo 53, prevê que “todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação permanente”.
Em segundo lugar, se é o Incra que detém competência, no âmbito da União, para aferir a natureza jurídica de um imóvel, quanto a vocação urbana ou rural, a competência prevalente para esta atribuição constitucional é dos municípios, através do seu Plano Diretor de Desenvolvimento urbano. Fora disso, a declaração de área urbana ou rural sem ser via Incra e lei municipal que institui o PDDU é ato inconstitucional, ilegal e abusivo, que causa prejuízo ao erário e deve ser objeto de responsabilização por quem deu causa. Isto porque, são claros os comandos dos artigos 30, inciso IX e 182 da CR/88.
Verifica-se, outrossim, do Incra, o rito para a descaracterização para fins urbanos de imóveis cadastrados no SNCR (Sistema Nacional de Cadastro Rural) é estabelecido pela Instrução Normativa nº 82/2015, artigo 19 a 30 e, de acordo com o artigo 20, deve ser feito requerimento de atualização cadastral, em virtude de descaracterização do imóvel para fins urbanos, pelo respectivo titular ou pelo município de localização do imóvel, o que também não resta presente na hipótese dos autos.
Ademais, em caso de descaracterização da área total do imóvel, o Incra envia notificação previa ao interessado, para que exerça o contraditório a ampla defesa, ao cartório de registro de imóveis e à prefeitura do município de localização da área, o que também não foi verificado na espécie. É vedado surpreender o titular do bem ou do uso e ocupação do mesmo, pena de ilegalidade e abuso de autoridade, além de violar princípios da administração, notadamente boa fé, moralidade, publicidade, eficiência, legalidade e transparência, a ensejar, por quem viola, possível ato de improbidade administrativa.
Essa exigência, inclusive, é requisito pacífico, expresso e reconhecido pelo STJ:
“AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1832117 — AM (2019/0242060-4) RELATOR: MINISTRO OG FERNANDES AGRAVANTE: MUNICÍPIO DE MANAUS PROCURADOR : DENIEL RODRIGO BENEVIDES DE QUEIROZ E OUTRO(S) — AM007391 AGRAVADO: MEMA PARTICIPAÇÕES E ADMINISTRAÇÃO LTDA ADVOGADOS: MÁRIO DA CRUZ GLÓRIA E OUTRO(S) — AM004013 ANDRÉ GUIMARÃES DA CRUZ — AM007549 BRUNO BARBOSA DOS REIS GLÓRIA — AM009432 DOUGLAS ALEIXO SANTOS DA CRUZ — AM009426 EMENTA TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PARCELAMENTO DO SOLO. ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO DO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO AO INCRA E AO CONTRIBUINTE. MODIFICAÇÃO DO ENTENDIMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. O Tribunal de origem assentou que a municipalidade recorrente deixou de cumprir o quanto determinado pelo artigo 53 da Lei nº 6.766/1979 e não comunicou ao contribuinte sobre a alteração da qualidade jurídica da área, que passou a ser urbana. 2. Alterar a conclusão a que chegou o Tribunal ‘a quo’ implicaria o revolvimento do contexto fá2co-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 7/STJ. 3. Agravo interno a que se nega provimento. Diante de todo o exposto, em comprimento de todas as exigências legais e formais, recomenda-se a revisão da natureza do imóvel, que no que tudo indica, este, possui natureza rural, embasando-se nas documentações e atual legislação, e jurisprudência aqui expostos. Portanto, recomenda-se que seja adotado os valores de referência da taxa de foro de natureza RURAL para o imóvel, como também a nulidade de aplicações de valores/débitos referentes a anos posteriores da Lei nº 241/2008 e Decreto Municipal nº 398 de 2008 (referente ao PDDU das zonas de Cairu/BA), na qual o princípio da anterioridade tributária não se aplica, já que o imóvel apresentou nos autos atividade econômica de cunho rural desde o princípio de sua ocupação”.
Vale ressaltar que o artigo 182 da Constituição e a Lei Federal 10.257/01, autodenominada Estatuto da Cidade, determinam que seja o município, via PDDU ou lei específica, que deve estabelecer as áreas urbanas, o que coaduna com a predominância do interesse e impacto local da matéria, ínsitos as competências cooperadas, comuns e concorrentes, dos artigo 23, 24 e 30 da Constituição em matéria urbanística.
Dessa forma, cabe à lei municipal descrever o perímetro urbano, observados, no mérito e como meio de controle material de legalidade, os requisitos do §1º, do artigo 32 do CTN, que não é autoaplicável, consoante interpretação sistemática e conforme dada ao tema pela doutrina e pelos tribunais.
A única exceção a esse critério geográfico é aquela prevista por decisão vinculante do STF, que conferiu ao Decreto-lei nº 57/1966, editado sob a vigência da ordem constitucional antecedente, o caráter de lei complementar restabelecendo a harmonia entre os entes federados, bem como, resolvendo a questão interna das Municipalidades que perderam a sua competência impositiva em relação a imóveis cultivados, situados nos perímetros urbanos dos Municípios.
Por esta razão, hoje é tranquila a jurisprudência do STJ quanto à competência da União para lançar o ITR sobre esses imóveis rurais até mesmo os incrustados no perímetro urbano do município, consoante se extrai, à guisa de exemplo, do teor dos REsp nº 492.869, REsp nº 738.628 e REsp nº 1.112.646.
No âmbito da própria SPU, militam, em síntese, em favor desta correta tese: a) precedente do órgão central da SPU, na orientação contida na Nota Técnica da CGCAV nº 14125/2018-MP, na qual se lê que “III – Verificar junto ao plano diretor do município, se o imóvel em questão encontra-se em área denominada rural, fazendo o devido ajuste cadastral no Siapa se necessário;” b) Despacho SPU/BA-Nucip nº 7902180, nos quais prevaleceu a posição similar a ora sustentada, ao consignar que “2. A definição da natureza do imóvel nos sistemas corporativos da Secretaria do Patrimônio da União- SPU é binária, ou seja, só se pode classificar o imóvel com dois valores possíveis, sendo eles rurais ou urbanos. Sua definição é de competência municipal e é disposto no plano diretor ou plano de uso e ocupação do solo ou outro instrumento semelhante. Para a SPU, tal classificação impacta diretamente na cobrança de taxas patrimoniais diversas, quando se usa ou a Planta de Valores Genéricos (PVG) (para imóveis urbanos) ou a Planilha de Preços Referenciais (PPR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a definição do valor do imóvel”.
Ainda no sentido ora sustentado, há orientação da CJU/AGU, em situação análoga ao Parecer nº 00084/2020/Nucjur/E-CJU/Patrimônio/CGU/AGU:
“‘Diante de todo o exposto, em comprimento de todas as exigências legais e formais, recomenda-se a revisão da natureza do imóvel, que no que tudo indica, este, possui natureza rural, embasando-se nas documentações e atual legislação, e jurisprudência aqui expostos. Portanto, recomenda-se que seja adotado os valores de referência da taxa de foro de natureza Rural para o imóvel, como também a nulidade de aplicações de valores/débitos referentes a anos posteriores da Lei nº 241/2008 e Decreto Municipal nº 398 de 2008 (referente ao PDDU das zonas de Cairu/BA), na qual o princípio da anterioridade tributária não se aplica, já que o imóvel apresentou nos autos a2vidade econômica de cunho rural desde o princípio de sua ocupação’ 17. Ademais, ainda em sede de precedentes, localiza-se, sobre o tema, o ofício nº 1091 (4155927) e o Despacho SPU/BA-Nucip nº7902180, nos quais prevaleceu a posição similar a que pretende ver aplicada ao caso o interessado, ora recorrente, ao consignar que: ‘2. A definição da natureza do imóvel nos sistemas corporativos da Secretaria do Patrimônio da União- SPU é dada como binária, ou seja, só se pode classificar o imóvel com dois valores possíveis, sendo eles rurais ou urbanos. Sua definição é de competência municipal e é disposto no plano diretor ou plano de uso e ocupação do solo ou outro instrumento semelhante. Para a SPU, tal classificação impacta diretamente na cobrança de taxas patrimoniais diversas, quando se usa ou a Planta de Valores Genéricos (PVG) (para imóveis urbanos) ou a Planilha de Preços Referenciais (PPR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a definição do valor do imóvel’.”
“Tem-se, ademais, a orientação trazida pela CGCAV na Nota Técnica nº 14125/2018-MP (doc. 6550852), quando da análise de um pedido de revisão de valor de um imóvel rural: ‘5.4 Assim sendo, à principio entendemos como vinculante a alteração do valor de domínio pleno, caso o mesmo comprove-se como rural, devendo ser adotado o valor da terra nua fornecido pelo Incra, no entanto, destaca-se que não raro, nossos sistemas corporativos, dentre eles o Siapa, apresentam não conformidades cadastrais, na medida em que os dados cadastrados não são atualizados à luz da real situação dos imóveis. Isto posto, torna-se imperioso destacar que a denominação de ‘urbano ou rural’ não será um dado absoluto e perene a ser informado pela SPU. Em verdade, quem define se tal região, área, trecho, etc., denomina-se como rural ou urbano é o poder municipal por meio de seu plano diretor, devendo a SPU acompanhar as transformações das cidades a atualizar devidamente em seus sistemas corporativos. (…) 6. Considerando a supracitada exposição, eis a orientação desta CGCAV: III – Verificar junto ao plano diretor do município, se o imóvel em questão encontra-se em área denominada rural, fazendo o devido ajuste cadastral no Siapa se necessário’.”
Como sustentamos em nossa obra em coautoria com o procurador do município de São Paulo e chefe da procuradoria de habitação e urbanismo, professor dr. Alexandre Levin (HUMBERT, Georges Louis Hage; LEVIN, Alexandre. Curso de direito urbanístico e das cidades: incluindo novo marco do saneamento, estatuto das metrópoles, regularização fundiária, estatuto da cidade· 2. ed., atual., rev. e ampl. · Rio de Janeiro: GZ, 2021, p. 63):
“É que, considerando-se a determinação de competência própria para edição de normas de Direito Urbanístico, insculpida no artigo 23, I da Constituição, bem como a existência do princípio vetorial do planejamento urbano — insertos no artigo 182 da Constituição da República e no artigo 2º do Estatuto da Cidade —, não se pode olvidar que a definição das áreas municipais em urbana e rural deve ser oriunda dos instrumentos e estudos determinados enquanto deveres ínsitos à materialização da política urbana, levando-se em consideração a vocação atual e futura de determinada área.
Ademais, deve ser levada a efeito mediante edição de lei municipal, com destaque para o plano diretor, constitucionalmente obrigatório para os Municípios com mais de 20.000 habitantes, considerando-se o seu território como um todo, as peculiaridades de cada localidade e em face mesmo da eminente preponderância do interesse local nesta matéria, da própria competência constitucional que é conferida ao Município pelo artigo 30 da Constituição, e do quanto prescreve o artigo 40 e seguintes do Estatuto da Cidade.
Numa sentença: a qualificação jurídica pertinente à propriedade urbana e rural é de suma importância, pois estabelece o regime jurídico ao qual estará submetida determinada propriedade e qual a política — se urbana ou rural — deve ser implementada em determinada área do Município, pelo que deverá, sempre, levar em consideração a vocação da área, suas reais necessidades, enfim, os seus fins precípuos, sem olvidar a ordenação planejada, melhor instrumento para compatibilizar a evolução e transformações inerentes à própria natureza do homem e seus reflexos no usar, gozar e dispor das propriedades.”
Diante do exposto, não é o servidor da SPU, nem mesmo a AGU ou lei federal, muito menos um termo de conclusão de obra, um alvará ou uma certidão ou declaração que altera ou não a natureza jurídica do bem de rural para urbano, mas sim o quanto consta do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Municipal, acompanhado ou não do devido processo legal de declaração situacional da área pelo município e Incra, respeitado o contraditório e a ampla defesa, sendo o município, jamais a SPU ou outro órgão da União, o protagonista nesta delimitação, no comprovar, por lei, certidão, fiscalização ou cooperação com o Incra, a natureza do bem, sem deixar de ser verificável a sua realidade concreta, inclusive mediante controle de legalidade, probidade e razoabilidade do ato do Poder Público Municipal, frente aos parâmetros do CTN, do Estatuto da Cidade e mesmo de prova técnica em contrário, sabendo-se, por óbvio, que os atos jurídicos, sejam públicos ou privados, se presumem verdadeiros, válidos, legítimos, legais e de boa-fé, a teor da Lindb e da Declaração de Liberdade Econômica, bem como da disciplina jurídica do Código Civil e do princípio basilar da boa fé objetiva.
Decisão da SPU diversa desta viola a Constituição e a lei, além do princípio da igualdade, impessoalidade e a garantia da segurança jurídica, podendo gerar responsabilidade por abuso de autoridade, improbidade e dano ao erário por aquele que desrespeitar o PDDU Municipal ou alterar a natureza jurídica do imóvel sem o devido processo legal, a previsão em lei municipal e o ato cooperado do Incra, gerando, inclusive, para o particular prejudicado o direito líquido de certo de reverter tal decisão junto ao Poder Judiciário, bem como ser ressarcido por eventuais perdas e danos, junto à União e seus agentes públicos.
*Georges Humbert é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal), doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, professor universitário, advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade (IbradeS).
Fonte: ConJur