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Migalhas – Artigo: O financiamento dip na recuperação extrajudicial – Por Fabiana Solano

04-04-2023

Recentemente fui instigada pela querida e super competente Juliana Biolchi a contribuir com um artigo para sua obra coletiva que será lançada em breve sobre recuperação extrajudicial, projeto que conduz com Alexandre Nasser de Melo junto ao Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial. O tema escolhido – financiamento DIP para os devedores em recuperação extrajudicial -, não poderia ser mais oportuno e instigante. Compartilho aqui algumas percepções que teci neste artigo a respeito do assunto.

Com a nova onda de ajuizamentos de processos de insolvência, impulsionada pela ressaca econômica em que nos encontramos, é a hora de testar para valer a recuperação extrajudicial.

Apesar de ser um uma simplificação da recuperação judicial, inspirada no prepacked insolvency procedure previsto no Bankruptcy Code norte-americano, e conceitualmente se lançar como um meio de recuperação menos traumático para a empresa em crise se comparado à recuperação judicial, até agora a recuperação extrajudicial ficou meio opaca.

Uma das razões declaradas para isso era a falta de segurança jurídica que rondava os seus partícipes, que ficavam inseguros quanto à aplicação de certos benefícios legais típicos da recuperação judicial também para a recuperação extrajudicial. Exemplos clássicos eram a aplicação do stay period em benefício dos devedores durante a tramitação do processo, a garantia de não sucessão do investidor na aquisição de ativos, e a falta de regulamentação do financiamento DIP na extrajudicial. Diante da omissão da lei quanto a tais pontos, e na dúvida, devedores e investidores optavam pela recuperação judicial, que acabou consolidando uma jurisprudencia mais firme sobre estes temas.
O cenário agora começa a mudar. A recente reforma implementada pela lei 14.112 com o fim de atualizar e aprimorar a lei 11.101/05 (“LFRE”) facilitou o acesso do devedor à recuperação extrajudicial, por meio de diversos estímulos. Dentre eles, a lei agora facultou ao devedor ingressar com o pedido contando com apenas 1/3 dos créditos sujeitos à recuperação extrajudicial, e concedeu-lhe um prazo de até 90 dias para chegar à anuência ao plano de uma maioria simples por valor de crédito.

Nesse sentido, a reforma veio em boa hora, apesar de ainda ser tímida para a recuperação extrajudicial.

Isso porque, sem se ater muito à técnica legislativa, muitas das alterações cirúrgicas feitas em artigos esparsos da LFRE buscaram abranger também a recuperação extrajudicial, ainda que em normas constantes em capítulos específicos sobre a recuperação judicial, o que causou uma certa confusão em termos de sistemática legal. Algumas dessas normas permanecem “escondidas” na lei e podem passar desapercebidas pelo intérprete mais afoito. É o caso do financiamento DIP na recuperação extrajudicial.

Assim é que a recuperação extrajudicial vem tratada no Capítulo VI da LFRE, que segue silente quanto ao financiamento DIP para as empresas que optam por esse caminho.

O DIP hoje, por sua vez, vem tratado nos artigos 66-A e 67 e na Seção IV-A (artigos 69-A a F), todos do Capítulo III, da LFRE, que em princípio trata exclusivamente da Recuperação Judicial.

Apesar dessa aparente segregação, o artigo 69-A abre as portas para uma interpretação sistemática da lei que conduz à aplicação do DIP também para a recuperação extrajudicial. Isso porque tal artigo prevê expressamente que “nos termos dos arts. 66 e 67 desta lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comite de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor (…)”.

Ocorre que o novo artigo 66-A, também incluído na reforma da lei, expressamente dispõe que a garantia outorgada ao financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio com o recebimento dos recursos ao devedor [1].

Lincando um artigo com o outro, conclui-se que o legislador estendeu o DIP à recuperação extrajudicial.

E, afinal, quais as vantagens do DIP para a recuperação extrajudicial?

São muitas.

Empresas em crise sofrem limitação de acesso ao crédito no mercado, notadamente após o ajuizamento de um pedido recuperacional. O financiamento é um dos fatores de maior relevância quando o objetivo é soerguer a companhia devedora, já que é uma das únicas fontes disponíveis para bem equacionar a estrutura de capital da empresa. Entretanto, trata-se de negócio de risco para os investidores, que para colocarem recursos novos numa empresa tecnicamente insolvente precisarão de estímulos extras para proteção do seu crédito, associados à maior remuneração pela concessão de crédito. A recente reforma da LFRE trouxe uma série deles, que terão o condão de estimular soluções financeiras mais estruturadas por meio da recuperação extrajudicial.

Foquemos no DIP previsto na nova Seção IV-A do Capítulo III da lei [2]. A principal proteção ao investidor é ver tutelado o seu direito ao crédito e às garantias atreladas ao crédito ao realizar o aporte mediante autorização judicial (exigência do art. 69-A), mesmo se houver posterior reconsideração da decisão de primeiro grau em sede recursal [3]. Ou seja, uma vez desembolsados os recursos ao devedor, mesmo que posteriormente o DIP seja anulado pelo poder judiciário, o investidor conserva sua garantia, mitigando o risco jurídico da operação. Isto significa que, ao submeter um plano de recuperação extrajudicial à apreciação do poder judiciário para posterior homologação, o devedor terá que obter autorização judicial para o aporte de capital na companhia, que deverá ser garantido por ativos não circulantes do devedor ou de terceiros, e ser regulado pelas normas da Seção IV-A do Capítulo III da LFRE. Assim fazendo, o investidor terá a proteção da imutabilidade da garantia que lhe foi outorgada, ao desembolsar os recursos ainda que o plano de recuperação extrajudicial não seja homologado posteriormente pelo juiz.

Seguindo o objetivo de estimular este tipo de operação, a lei também fez constar que o investidor poderá receber garantia adicional e subordinada ao empréstimo, dispensando a anuência do detentor da garantia original. Antes da reforma, havia dúvida se isso poderia representar supressão de garantia ao credor originário, nos termos do artigo 50, §1º da LFRE [4].

Hoje, acionistas ou partes relacionadas poderão financiar a empresa em recuperação com os mesmos benefícios e proteções concedidos a terceiros, sem temer que seu crédito seja considerado subordinado em caso de falência (artigos 69-E e F).

Por fim, o credor DIP na recuperação judicial recebe com superprioridade seu crédito em caso de falência do devedor, logo na segunda ordem de prioridade prevista no art. 84, I-B [5]. Ou seja, o financiador DIP receberá de forma muito mais vantajosa do que a até então prevista antes da reforma legislativa, estando atrás apenas e tão somente dos pagamentos decorrentes das despesas relacionadas à administração da massa falida e dos créditos trabalhistas vencidos nos três meses anteriores à quebra da empresa, até o limite de cinco salários mínimos por trabalhador, conforme arts. 150 e 151 da LFRE [6].

Questiona-se, apesar da aplicação do DIP à recuperação extrajudicial aqui defendida, se em caso de falência do devedor os investidores seriam também beneficiados pela ordem de prioridade prevista no artigo 84, I-B. Ou seja, caso a empresa em recuperação extrajudicial tenha sua falência decretada no meio do caminho, os créditos dos financiadores serão pagos como extraconcursais, seguindo a nova prioridade estabelecida na lei?

Uma interpretação sistemática da lei, aplicando o gênero recuperacional a ambas as espécies tratadas na LFRE (recuperação judicial e extrajudicial) nos leva à conclusão de que essa proteção também se aplica à recuperação extrajudicial, como indica a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)[7], que disciplina os critérios para a correta aplicação das normas jurídicas, e estabelece, dentre outros princípios, o do diálogo das fontes [8]. Seu art. 4º também determina que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, a fim de que seja conferida eficácia normativa à lei. Ora, nada mais coerente do que a norma protetiva prevista para a recuperação judicial também se aplicar para a extrajudicial.

Entretanto, o tema é controverso, e o fato é que uma leitura restritiva da norma poderá levar à conclusão de que essa prioridade especial não se aplica para o financiador no caso da recuperação extrajudicial. Afinal, além de o art. 84, I-B ser expresso ao citar hipótese de recuperação judicial, a não homologação do plano de recuperação extrajudicial pelo juiz não acarreta automaticamente a falência do devedor, como se dá na recuperação judicial. Ao contrário, a qualquer momento fica facultada ao devedor a possibilidade de conversão da extrajudicial em recuperação judicial [9]. Mais do que isso, na hipótese de não homologação do plano, o devedor poderá apresentar novo pedido de homologação de plano de recuperação extrajudicial [10]. Não havendo a convolação em falência nessas hipóteses, e diante da menção expressa no inciso I-B do artigo 84 apenas à recuperação judicial, essas normas podem ainda ser tidas como restritas à recuperação judicial. O intérprete, nesse sentido, poderia partir do princípio que, sendo a recuperação extrajudicial menos amarga ao devedor, não necessariamente acarretando a sua falência em caso de fracasso, o risco do investidor seria menor nessa operação, se comparado à recuperação judicial. Portanto, não se justificaria o benefício da prioridade de pagamento na falência. Justamente por ser questionável, nos parece que o investidor cauteloso não deverá considerar esse benefício em seus cálculos de risco para concessão do empréstimo.

No entanto, essa circunstância por si só não remove o brilho e a novidade do DIP na recuperação extrajudicial, com as novas proteções conferidas pela lei. Isso porque, na hipótese do DIP previsto na Seção IV-A, garantido pela alienação fiduciária de bens do ativo não circulante do devedor ou de terceiros (art. 69-A e seguintes), o credor na falência conservará seu direito à excussão da garantia fiduciária, que deixa de pertencer à esfera de propriedade do devedor e nem é passível de arrecadação pelo administrador judicial. Ou seja, o financiador DIP ainda assim será pago de forma superprivilegiada até o limite da sua garantia, que em geral cobre mais que a totalidade do crédito, sem sequer concorrer com outros credores, por mais privilegiados que sejam no concurso da falência.

Portanto, embora recomende-se ainda cautela ao investidor na recuperação extrajudicial, é certo que poderá optar por conceder financiamentos no curso do processo, agora contando com maiores proteções e incentivos. Além da imutabilidade da garantia, em caso de desembolso dos recursos, se o DIP ocorrer segundo os ditames da Seção IV-A do Capítulo III da LFRE, o investidor sequer participará do concurso de credores em caso de falência, podendo satisfazer seu crédito com a consolidação da propriedade fiduciária.

__________

[1] “Art. 66. A alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor a adquirente ou a financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor”.

[2] Além deste, há o mútuo pós concursal regulado pelo artigo 67 da lei, sobre o qual não trataremos aqui.

[3] Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado.

[4] Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: § 1º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.

[5] Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, aqueles relativos: I – (revogado); I-A – às quantias referidas nos arts. 150 e 151 desta Lei; I-B – ao valor efetivamente entregue ao devedor em recuperação judicial pelo financiador, em conformidade com o disposto na Seção IV-A do Capítulo III desta Lei; I-C – aos créditos em dinheiro objeto de restituição, conforme previsto no art. 86 desta Lei; I-D – às remunerações devidas ao administrador judicial e aos seus auxiliares, aos reembolsos devidos a membros do Comitê de Credores, e aos créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência; I-E – às obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência;

[6] Art. 150. As despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência, inclusive na hipótese de continuação provisória das atividades previstas no inciso XI do caput do art. 99 desta Lei, serão pagas pelo administrador judicial com os recursos disponíveis em caixa.

Art. 151. Os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, serão pagos tão logo haja disponibilidade em caixa.

[7] Decreto 4657 de 4 de setembro de 1942

[8] Teoria de que deve ser aplicada a melhor regra para tutelar o direito ao caso, como meio de preservação da hermenêutica jurídica e da coerência do sistema normativo. Neste sentido: “O uso da expressão do mestre, “diálogo das fontes”, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, coexistentes no sistema. É a denominada “coerência derivada ou restaurada” (cohérencedérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e a microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a “antinomia”, a “incompatibilidade” ou a “não coerência” (MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo das fontes. In: BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013)

[9] §7º do artigo 163 da LFRE.

[10] §8º do art. 164 da LFRE.

Fabiana Solano é formada pela PUC-SP e tem LLM pela faculdade de direito de Stanford – EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras.

Fonte: Migalhas