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Migalhas – Artigo: O saque de valores advindos da lei 6.858/80 pelos sucessores do falecido, independentemente de alvará judicial – Proposta de novos instrumentos para a desjudicialização – Por Anderson Nogueira Guedes
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da resolução CNJ nº 452, de 22 de abril de 2022, conforme tratamos em outra oportunidade, alterou o artigo 11 da Resolução CNJ 35/2007, para permitir a nomeação do inventariante em escritura pública anterior à partilha ou à adjudicação (Resolução CNJ nº 35, art. 11, §1º), bem como o seu acesso a saldos e extratos bancários de contas do de cujus e o levantamento (saque) de quantias – eventualmente existentes – com a finalidade de efetuar o pagamento do devido imposto de transmissão (ITCMD) e dos emolumentos notariais e registrais do Inventário Extrajudicial.
Trata-se de alteração de grande relevância, visando a viabilização e a devida conclusão do inventário extrajudicial.
A alteração, contudo, poderia ter sido ainda melhor se tivesse contemplado, de igual forma, o levantamento de valores eventualmente existentes em conta do de cujus para o pagamento de: 1) honorários advocatícios, mesmo que parciais, pois não há como se falar em realização de Inventário, Judicial ou Extrajudicial, sem a presença obrigatória de advogado; 2) eventuais débitos tributários existentes, a fim de se possibilitar a realização do inventário pela via administrativa, de maneira a se atender à Resolução 35/2007 do CNJ, que exige certidões negativas de débitos tributários.
Outra questão que defendemos, capaz de muito contribuir com o avanço do Direito das Sucessões e da desjudicialização em nosso país, é a concernente à possibilidade de venda de bens do espólio pelo inventariante devidamente nomeado/autorizado em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, independentemente de autorização judicial, nos casos em que as partes vierem a optar pela realização do Inventário de forma extrajudicial e inexistirem credores do espólio, pois constitui verdadeiro contrassenso exigir que as partes, capazes e concordes, que já optaram por promover o Inventário pela via extrajudicial, precisando alienar um ou mais bens para viabilizá-lo, sejam obrigadas a se dirigir ao Poder Judiciário para requerer autorização judicial.
A exigência de alvará judicial para venda de bens do espólio, nesses casos, prevista no artigo 619, I, do CPC 2015, que apenas replicou a regra do revogado artigo 992 do CPC de 1973, época em que sequer se cogitava falar em inventário extrajudicial, vai de encontro ao importante movimento de desjudicialização existente em nosso país, ferindo, ainda, o Princípio da Autonomia da Vontade, bem como os Princípios da Intervenção Mínima do Estado, da Economia Procedimental e o que chamamos de Princípio da Livre Disposição de patrimônio próprio (CC, art. 1.228), na medida em que retira das partes, capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas capacidades civis, em momento de necessidade, o poder de decisão/disposição e, assim, a possibilidade de venderem um ou mais bens que já se encontram compreendidos em sua esfera patrimonial, em razão do droit de saisine (CC, art. 1.784), obrigando-as a bater às portas do Judiciário para requerer algo que de forma simples poderia ser resolvido e evitado.
Bastaria a autorização expressa concedida ao inventariante pelo meeiro acompanhado de todos os herdeiros e respectivos cônjuges – com exceção daqueles casados sob o regime da Separação de Bens – na própria Escritura de Nomeação de Inventariante.
Em termos práticos, o inventariante devidamente nomeado e autorizado por todos os herdeiros/sucessores e seus cônjuges, bem como pelo meeiro, e que tenha prestado compromisso de bem e fielmente cumprir o seu mister, em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, com a devida assistência de advogado, já estaria apto a requerer a lavratura e a representar o espólio na assinatura da competente Escritura Pública de Compra e Venda a ser outorgada ao comprador.
A Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, nesse caso, contendo autorização/poderes especiais e expressos concedidos ao inventariante, substituiria o alvará judicial, de forma a permitir, desde logo, o devido recolhimento tributário (ITBI) e o registro do título translativo (Escritura Pública de Compra e Venda) na competente Serventia Predial, na respectiva matrícula do imóvel.
Um passo gigantesco nesse relevante e indispensável movimento de desjudicialização trilhado em nossa nação.
Para um melhor entendimento e aprofundamento da matéria, vale a leitura de artigo de nossa autoria publicado nesta Coluna, no Migalhas, intitulado: Escritura de nomeação de inventariante e a venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial.
Outra questão igualmente importante, objeto deste artigo, diz respeito ao saque das importâncias descritas na Lei nº 6.858, de 24 de novembro de 1980, pelos sucessores do falecido.
Referida lei dispõe sobre o pagamento, aos dependentes ou sucessores, de valores não recebidos em vida pelos respectivos titulares, dispensando o inventário ou arrolamento.
Em seu artigo 1º, a lei assim preconiza:
Art. 1º – Os valores devidos pelos empregadores aos empregados e os montantes das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS-PASEP, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação específica dos servidores civis e militares, e, na sua falta, aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento.
§ 1º – As quotas atribuídas a menores ficarão depositadas em caderneta de poupança, rendendo juros e correção monetária, e só serão disponíveis após o menor completar 18 (dezoito) anos, salvo autorização do juiz para aquisição de imóvel destinado à residência do menor e de sua família ou para dispêndio necessário à subsistência e educação do menor.
§ 2º – Inexistindo dependentes ou sucessores, os valores de que trata este artigo reverterão em favor, respectivamente, do Fundo de Previdência e Assistência Social, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Fundo de Participação PIS-PASEP, conforme se tratar de quantias devidas pelo empregador ou de contas de FGTS e do Fundo PIS PASEP.
O decreto 85.845, de 26 de março de 1981, que regulamenta a citada lei, por sua vez, dispõe que:
Art. 1º Os valores discriminados no parágrafo único deste artigo, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos seus dependentes habilitados na forma do artigo 2º.
Parágrafo Único. O disposto neste Decreto aplica-se aos seguintes valores:
I – quantias devidas a qualquer título pelos empregadores a seus empregados, em decorrência de relação de emprego;
II – quaisquer valores devidos, em razão de cargo ou emprego, pela União, Estado, Distrito Federal, Territórios, Municípios e suas autarquias, aos respectivos servidores;
III – saldos das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS/PASEP;
IV – restituições relativas ao imposto de renda e demais tributos recolhidos por pessoas físicas;
V – saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento, desde que não ultrapassem o valor de 500 (quinhentas) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional e não existam, na sucessão, outros bens sujeitos a inventário.
Dessa forma, os seguintes valores, não recebidos em vida por seus respectivos titulares, serão pagos aos seus dependentes habilitados perante a Previdência Social, em quotas iguais, independentemente de inventário ou arrolamento:
– quantias devidas a qualquer título pelos empregadores aos empregados (falecidos), em decorrência de relação de emprego;
– quaisquer valores devidos, em razão de cargo ou emprego, pela União, Estado, Distrito Federal, Territórios, Municípios e suas autarquias, aos respectivos servidores;
– os montantes das contas individuais do FGTS e do PIS-PASEP;
– restituições relativas ao imposto de renda e demais tributos recolhidos por pessoas físicas;
– e os saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento, desde que não ultrapassem o valor de 500 OTNs e inexistam outros bens sujeitos a inventário.
Nesses casos, os pagamentos serão feitos aos dependentes habilitados, mediante apresentação de “documento fornecido pela instituição de Previdência ou se for o caso, pelo órgão encarregado, na forma da legislação própria, do processamento do benefício por morte”, conforme prevê o artigo 2º do decreto 85.845/1981.
Da certidão ou declaração emitida pela competente instituição de Previdência constarão, obrigatoriamente, o nome completo, a filiação, a data de nascimento de cada um dos interessados e o respetivo grau de parentesco ou relação de dependência com o falecido, conforme o parágrafo único do artigo 2º do referido decreto.
Isso não significa, contudo, que a meação do cônjuge/companheiro sobrevivente e os direitos dos herdeiros poderão ser desrespeitados, pois não se trata de sucessão irregular ou anômala. Filiamo-nos à corrente que entende que as regras previstas na lei 6.858/80 e em seu decreto regulamentador são de caráter processual, e não de caráter material, não podendo prejudicar, portanto, eventual direito do cônjuge/companheiro supérstite e de herdeiros do falecido.
Nesse sentido são as lições do ilustre professor Carlos E. Elias de Oliveira:
Temos que, salvo as hipóteses de ausência de herdeiros (§ 2º do art. 1º e o parágrafo único do artigo 2º da lei 6.858/1980), o “pagamento direto” das verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas nos arts. 1º e 2º da lei 6.858/1980 decorre de regra de natureza processual e destina-se a afastar apenas o caminho burocrático dos procedimentos de inventário e de arrolamento para que o dependente habilitado levante rapidamente os valores. Não é por outra razão que a previsão de pagamento direto é prevista na legislação processual (artigo 666 do CPC), e não propriamente na legislação de direito material (ou seja, no Código Civil).
Nessa esteira, aquele que receber o “pagamento direto”, ainda que em sede de processo judicial específico (como no inventário ou em uma ação de procedimento comum proposta pelo interessado), deverá atentar para a meação do viúvo e para o quinhão hereditário dos demais herdeiros.
A lei ainda prevê que, na falta de dependentes habilitados, os pagamentos deverão ser feitos aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento.
Essa é a previsão da segunda parte do seu artigo 1º, que dispensa, nesse caso, o inventário ou arrolamento, e, também, do artigo 5º do decreto 85.845/1981, in verbis:
“Art. 5º Na falta de dependentes, farão jus ao recebimento das quotas de que trata o artigo 1º deste decreto os sucessores do titular, previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, expedido a requerimento do interessado, independentemente de inventário ou arrolamento.”
Acontece que a referida lei é da década de 80, época em que a realidade social e jurídica era outra.
Naquela época, o legislador optou por autorizar, na falta de dependentes habilitados do falecido, o saque das quantias mediante a apresentação de alvará judicial, a fim de se desburocratizar o recebimento de tais importâncias. Afinal, ainda não existia a desjudicialização de procedimentos em nosso país.
Acontece que o Direito deve servir à sociedade. Dessa forma, acompanhando o dinamismo social, também deve ser dinâmico, com vistas a dar soluções dignas, seguras e adequadas aos anseios e necessidades do homem moderno, que clama por mais celeridade e economia na realização de atos e procedimentos em seu cotidiano.
Feitas essas considerações, a pergunta que se faz é a seguinte: é pertinente, atualmente, a exigência de alvará judicial, a fim de que os sucessores do falecido façam o saque de tais importâncias?
Entendemos que não!
Frise-se que, diante da previsão da Lei nº 6.858/80 e de seu Decreto Regulamentador, podem ocorrer as seguintes situações:
a) Saque de tais importâncias, sem a realização de inventário e partilha, em razão da inexistência de outros bens deixados pelo “de cujus”;
b) Saque de tais importâncias, com a realização de inventário e partilha de outros bens deixados pelo “de cujus”.
No primeiro caso (saque sem a realização de inventário ou arrolamento), em sendo todos capazes e concordes, qual seria a complexidade a ensejar o encaminhamento das partes ao Poder Judiciário para pleitear alvará judicial?
Bastaria aqui a realização de Escritura Pública Declaratória de Únicos Herdeiros, em tabelionato de notas, com assistência de advogado, contendo: – a qualificação de todos os herdeiros e do cônjuge/companheiro supérstite; – dados de eventual casamento ou união estável do de cujus e regime de bens; – dados de qualificação do de cujus e de seu falecimento, com a indicação dos dados da certidão de óbito; – declarações, sob as penas da lei, de que são os únicos herdeiros do falecido e acerca da inexistência de outros bens passíveis de partilha; – expressa autorização concedida por todos para que um dos herdeiros ou o cônjuge/companheiro sobrevivente saque as referidas importâncias junto aos órgãos/instituições competentes.
De igual forma, sendo todos os herdeiros capazes e concordes, mesmo que o autor da herança tenha deixado outros bens passíveis de partilha, caso optem pela realização do inventário pela via extrajudicial, não há razão em se exigir que primeiro batam às portas do Poder Judiciário para pleitear alvará judicial para o levantamento das quantias descritas no artigo 1º, Parágrafo Único, incisos de I a IV, do citado decreto e, posteriormente, realizem o inventário de forma administrativa.
Se o inventário é administrativo, dever-se-á possibilitar às partes a opção por realizar todos os atos preliminares e preparatórios também pela via administrativa.
Por que não?
Não haverá prejuízo algum a quem quer que seja. Prejuízo existe, com a devida vênia a quem pensa diferente, ao se exigir alvará judicial nessas situações.
Nessa hipótese (saque com a realização de inventário e partilha de outros bens deixados pelo “de cujus”), bastaria a realização de Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, contendo a autorização de todos os herdeiros e cônjuge/companheiro sobrevivente para o inventariante sacar referidas quantias.
Por que submeter as partes a um pedido de Alvará Judicial, se estas optarem pela realização do inventário pela via administrativa?
Mister se faz frisar que, nesse caso, os valores descritos no artigo 1º, Parágrafo Único, incisos de I a IV do referido decreto não precisam ser inventariados, conforme dispõe o final do artigo 5º do citado Decreto nº 85.845/81 e o artigo 666 do novo Código de Processo Civil.
Já aqueles descritos no inciso V (saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento até o valor de 500 (quinhentas) OTNs), caso existam outros bens sujeitos a inventario, deverão constar do rol dos bens a serem inventariados, podendo, contudo, ser sacados para fins de pagamento do imposto de transmissão (ITCMD) e dos emolumentos notariais e registrais, conforme permissão contida na atual redação do artigo 11 da Resolução 35/2007 do CNJ, ressaltando-se aqui, também, a necessidade de que o saque contemple o pagamento dos honorários advocatícios e de outros tributos indispensáveis à realização do inventário pela via extrajudicial.
De qualquer forma, parece-nos, hoje, desnecessária e demasiadamente desarrazoada a exigência de alvará judicial para o saque das importâncias previstas na lei 6.858/1980 e em seu decreto regulamentador, nos casos que envolvam pessoas capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas vontades.
Permitir, assim, o saque de tais importâncias por meio dos referidos atos notariais (Escritura Pública Declaratória de Únicos Herdeiros ou Escritura Pública de Nomeação de Inventariante), independentemente de alvará judicial, é, a nosso ver, medida que se impõe e alternativa inteligente e em harmonia com o clamor e o dinamismo social, bem como com o movimento de desjudicialização existente em nosso país, na medida em que promove paz social com efetividade, previne o surgimento de inúmeros litígios, ajuda o Poder Judiciário em sua importante missão de prestar jurisdição com efetividade àqueles que necessitam, possibilita o recolhimento dos tributos devidos, e, atende, por sua celeridade e segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e à autonomia da vontade, ressaltando-se, sempre, a obrigatória participação de advogado nos citados atos notariais, assistindo as partes.
Referências:
BRASIL. Lei 6.858, de 24 de novembro de 1980. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023.
BRASIL. Decreto 85.845, de 26 de março de 1981. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023.
CNJ. Resolução 452/2022. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023.
GUEDES, Anderson Nogueira. Escritura de Nomeação de Inventariante e a venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023.
OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. A dispensa de inventário e o pagamento direto (parte 2). Acesso em: 06 mar 2023.
*Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor Jurídico, especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário, palestrante e autor de diversos artigos e coautor de obras jurídicas.
Fonte: Migalhas