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O gênero neutro e o RCPN: “A identidade de gênero é autodeclaração, não precisa ser provada”

Coordenadora do NUDIVERSIS da Defensoria Pública do Rio de Janeiro explica como foi realizada a iniciativa da instituição, em parceria com a Justiça Itinerante do TJ/RJ, na permissão para pessoas transgêneros inserirem o gênero não binarie no Registro Civil

14-12-2022

A partir de uma iniciativa entre o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (NUDIVERSIS) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e a Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, desde novembro de 2021, pessoas que não se identificam com os gêneros masculino ou feminino podem optar pela inclusão do gênero “não binarie” no registro civil. 

Pela ação da Defensoria, foi garantida decisões favoráveis para as pessoas de gênero neutro incluírem o sexo que se identificassem na certidão de nascimento. A coordenadora do NUDIVERSIS, Mirela Assad, conversou com a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen/SP) e explicou a origem da iniciativa, a importância da atuação da Justiça nos direitos da comunidade LGBTQIAP+ e como essa ação pode ocorrer nos demais estados brasileiros.

Leia a entrevista completa abaixo:

Arpen/SP – Recentemente, a Justiça do Rio de Janeiro permitiu a retificação do registro civil de pessoas transgêneros para o gênero neutro. De onde surgiu essa iniciativa?

Mirela Assad – Essa iniciativa surgiu a partir da demanda de pessoas que possuem identidade de gênero fora do binarismo, ou seja, pessoas cuja identidade de gênero não é totalmente feminina e nem totalmente masculina. 

Houve uma expressiva procura de pessoas não binaries que buscaram a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, através do NUDIVERSIS, em meados de 2021. A partir desta demanda, conversamos com juízes da Justiça Itinerante do TJ/RJ e idealizamos o primeiro mutirão de requalificação civil de pessoas transgêneros, na Fiocruz, em novembro de 2021. 

Neste primeiro mutirão, fizemos 96 requalificações civis de pessoas trans, sendo 47 para o gênero “não binarie”. Note que respeitamos o pedido destas pessoas de forma a fazer constar em suas certidões o termo “não binarie” em linguagem neutra. Atualmente, o número de pessoas requalificadas para este gênero através do NUDIVERSIS da DP-RJ chegou a 131, até novembro de 2022.

Arpen/SP – Como foi exatamente essa permissão?

Mirela Assad – A permissão legal encontra respaldo constitucional nos direitos da personalidade, em princípios dos quais somos signatários, destacando-se os princípios de Yogiakarta e, também, em toda legislação infraconstitucional que tutela a dignidade da pessoa humana. Ressalte-se, ainda, que a identidade de gênero não binária é reconhecida cientificamente, inclusive, pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

A parceria da Defensoria Pública com a Justiça Itinerante do TJ/RJ foi fundamental, uma vez que a forma de atuação das justiças itinerantes é célere e permite que as sentenças de requalificação civil sejam prolatadas na mesma hora, de forma muito simplificada, sem qualquer dilação probatória.

Arpen/SP – Qual a importância da atuação da Justiça na promoção dos direitos da população LGBTQIAP+?

Mirela Assad – É de extrema importância assegurarmos todos os direitos das pessoas LGBTQIAP+. Qualquer direito tem como ponto de partida o reconhecimento de uma existência. Pessoas que não têm a sua existência reconhecida vivem completamente à margem da sociedade. 

A postura do Poder Judiciário quando reconhece os direitos da população LGBTQIAP+ é uma postura de um verdadeiro guardião dos direitos civis. Pessoas incluídas na sociedade possuem condições de lutarem pelos avanços de seus direitos e saem da situação de vulnerabilidade e exclusão social.

Arpen/SP – As justiças dos demais estados também deveriam levar em conta o direito de escolha do indivíduo com relação ao gênero em seu registro civil?

Mirela Assad – Com certeza! A identidade de gênero é autodeclaração, não precisa ser provada. Todos os esforços devem ser empreendidos para facilitar o procedimento de requalificação civil. 

O Provimento n° 73/2018/CNJ, atualmente, permite apenas que pessoas dos gêneros feminino e masculino se requalifiquem diretamente em cartório. As Defensorias Públicas Estaduais do país, levaram um pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça, em junho deste ano, para que o referido provimento seja alterado e estendido às pessoas não binaries. 

Este pedido está tramitando e nossa expectativa é que ele seja julgado procedente, acolhendo, inclusive, nosso pedido para que o termo averbado nas certidões respeite à linguagem neutra, que faz parte da identidade destas pessoas.

Uma vez acolhido este pedido de providências, pessoas não binaries de qualquer estado da federação poderão requerer sua requalificação civil diretamente em cartório, sem a necessidade de processo judicial.

Arpen/SP – Qual a importância dos cartórios de registro civil na promoção dos direitos da comunidade LGBTQIAP+?

Mirela Assad – A atuação dos cartórios de registro civil é de fundamental importância. Sabemos o impacto que estas mudanças causaram nos cartórios, até porque os sistemas de informática das serventias não estavam preparados para averbação de gênero “não binarie” nas certidões de nascimento e de casamento. 

Mas, logo após o primeiro mutirão de requalificação civil que fizemos, tivemos uma resposta excepcional dos cartórios de registro civil. Todas as sentenças judiciais foram averbadas na forma como foi determinada pelo Juiz, usando o termo “não binarie”. Naturalmente, foi preciso um prazo de adequação para que as serventias compreendessem e se preparassem para estas mudanças. 

Me recordo de ter feito inúmeras ligações para os RCPN de várias localidades, buscando explicar a importância da averbação respeitando a linguagem neutra e pedindo apoio. Absolutamente todas as serventias cumpriram a averbação em linguagem neutra, o que nos alegrou muito. Nenhuma serventia questionou o termo, apenas pediram prazos maiores para dar cumprimento. 

Essa postura dos cartórios de registro civil demonstra um enorme avanço para a nossa sociedade. É uma postura livre de preconceito e, acima de tudo, inclusiva. Tal qual os RCPN, também recebemos apoio do sistema de identificação civil do Estado do RJ (DETRAN-RJ) que adequou os seus sistemas de informática e incluiu a opção de gênero “não binarie” – usando a linguagem neutra – para as pessoas que precisam fazer carteira de identidade civil. 

Quanto mais a nossa sociedade elimina o preconceito e as vulnerabilidades sociais, mais avançamos nas conquistas de direitos civis que são inerentes a uma sociedade igualitária.

Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/SP